O enunciado acima não deve ser motivo de comemoração para os defensores do direito ao aborto, nem de sobressalto para os contrários. No entanto, trata-se de trecho com todas as letras de um anteprojeto de lei enviado à Câmara dos Deputados no último dia 27 de setembro. É um documento de peso político, elaborado pela Comissão Tripartite integrada por membros do Governo Federal, Sociedade Civil e Congresso Nacional, e coordenada pela própria Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres da Presidência da República, com o objetivo de elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez. A expectativa é de que a votação comece ainda neste ano.
“O peso deste anteprojeto está no caminho que ele percorreu e no respaldo que lhe é dado. O Brasil é signatário dos documentos de duas conferências da ONU, que incluem esse assunto: a de População em 1994, em que o aborto inseguro pe visto como um problema de saúde pública, e a da Mulher, em 95, que considera que os Estados devem levar em conta a possibilidade de revisar as leis que incriminam as mulheres que praticam abortos. Em 2004, a referida Secretaria de Políticas para as Mulheres organizou uma Conferência Nacional, com a presença de duas mil participantes em Brasília, mas levando propostas de 120 mil mulheres de todo o país. A partir das resoluções dessa conferência e da elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres foi criada a Comissão Tripartite que se reuniu por quatro meses. O texto não é consensual, mas aprovado pela maioria”, afirma a professora Maria Isabel Baltar da Rocha, pesquisadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp.
Faz muitos anos que Maria Isabel Baltar analisa o debate sobre a questão do aborto no Brasil, atenta ao papel dos poderes Executivo, Judiciário e principalmente Legislativo, e à atuação das duas forças que mais se empenham nessa luta, a Igreja Católica e o movimento feministass. “Com o anteprojeto subimos a outro patamar de uma discussão que se arrasta desde 1940, quando se incluiu no Código Penal um dispositivo prevendo a não-punição do aborto em duas situações: risco de vida da gestante e estupro. Mas é preciso situar essa legislação na época de Vargas, em que esse dispositivo foi formulado sem o menor sentido progressista. Ele estava relacionado à defesa da honra da família e a valores outros que nada tinham a ver com o que chamamos hoje de direitos reprodutivos”, ressalva a professora.
Segundo a pesquisadora do Nepo, findo o Estado Novo e reaberto o Congresso, viria a primeira tentativa de retirar do Código Penal aqueles dois permissivos em relação ao aborto, em 1949. “A proposta era do monsenhor e deputado Arruda Câmara, já colocando a Igreja Católica como ator importante neste campo”, observa.
Passadas épocas em que o tema apareceu com maior ou menor ênfase, a discussão ganharia um caráter cada vez mais público a partir dos anos 1980, quando os movimentos sociais fizeram outra leitura do que estava escrito na lei. “Se não é proibido, é permitido; sendo permitido, o Executivo deve ser pressionado para que atenda ao que é permitido o aborto em caso de risco de vida da gestante e de estupro. Re-significada, a velha norma passou a se denominar aborto legal, o que implicava na criação de serviços públicos de saúde para oferecer esse atendimento”, afirma.
Cabo-de-guerra Movimento feminista e Igreja Católica travam um cabo-de-guerra sem vencedores até a atualidade. No processo da Assembléia Constituinte (1987-88), a Igreja preparou emenda popular contra o aborto, seguindo a idéia do direito à vida desde o momento da concepção. Imediatamente, as mulheres reuniram signatários para sua emenda defendendo o direito ao aborto. Uma vez que a nova Constituição deveria ser um documento de consenso, e havendo duas emendas absolutamente opostas, julgou-se conveniente tratar a questão do aborto em legislação ordinária posterior, e não como preceito constitucional.
Na opinião de Maria Isabel da Rocha, a redemocratização do país representou um elemento fundamental para tornar a questão do aborto mais visível. “Há um estudo junto à mídia mostrando que o assunto ganhou outro status, saindo das páginas policiais para as páginas de política”, ilustra. Cuidadosa, a professora conferiu os dados para esta entrevista. “Desde o início das discussões no Congresso em 1949, até a última sexta-feira [30 de setembro], foram apresentados 85 proposições sobre o tema. Foram 31 projetos até 1991, a maioria com uma perspectiva contrária ao aborto como direito. Nas duas legislaturas dos anos 90 (91-95 e 95-99), há 23 projetos, a maioria favorável, visto o período de início de forte atuação feminista no Congresso. Nos 31 projetos de 1999 até agora, nota-se nova reação dos segmentos religiosos, com predomínio de projetos que buscam conservar a legislação ou mesmo incriminar ainda mais a prática do aborto”, compara.
A professora preocupa-se em distinguir o grupo católico parlamentar como aquele que segue a orientação da hierarquia da Igreja. “Ha outras organizações religiosas atuantes, como a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que questionam a Igreja em temas como relações de gênero, reprodução e sexualidade”, esclarece. Quanto aos evangélicos, Maria Isabel Baltar afirma que, em geral, eles têm posição contrária ao aborto. “Mas chamou a atenção, recentemente, que um senador pastor da Igreja Universal do Reino de Deus tenha apresentado projeto de lei permitindo a interrupção da gestação quando for atestada ausência de vida no feto, o que incluiria o aborto nas situações de anencefalia”, destaca.
Sutilezas Manuseando uma lista com todas as proposições que tramitam no Congresso, a pesquisadora do Nepo mostra as sutilezas empregadas para ataques e contra-ataques no cabo-de-guerra. Um projeto de lei dos deputados Eduardo Jorge (PT-SP) e Sandra Starling (PT-MG), por exemplo, está parado desde fevereiro de 1991, propondo atendimento pelo SUS dos casos de aborto previstos no Código Penal. Esses mesmos deputados, em outubro de 91, tentam mudar a redação do Código Penal, permitindo o aborto em caso de risco à “saúde física e psíquica” da gestante. José Genoino (PT-SP), em março de 95, apresenta projeto que oferece a opção de ter ou não ter filhos, incluindo o direito de interrupção da gravidez até 90 dias.
Em contrapartida, o deputado Francisco Silva (PPB-RJ), em projeto de lei de agosto de 1998, tenta incluir como crime hediondo o aborto provocado pela gestante ou por terceiro. Osmânio Pereira, do grupo católico, sugere em junho deste ano a convocação de plebiscito sobre a interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação, tirando a decisão do âmbito individual. Projeto de Elimar Damasceno (Prona-SP), de abril de 2003, autoriza o Executivo a criar uma central de denúncias de abortos clandestinos. Ainda na Câmara, Luiz Bassuma (PT-BA) e Ângela Guadagnin (PT-SP) pedem punição do aborto no caso de gravidez resultante de estupro, e Severino Cavalcanti também se dá a sutilezas, escolhendo 25 de março como o “Dia do Nascituro”.
Na legalidade Ainda que o Congresso nada tenha decidido em 65 anos de discussão, mudanças vêm ocorrendo por pressão dos movimentos de mulheres e de profissionais da saúde comprometidos com a questão. Maria Isabel Baltar cita um exemplo no âmbito do Judiciário: “Embora o aborto em caso de anomalia fetal não esteja previsto na lei, calcula-se que houve cerca de 250 autorizações de interrupção da gravidez em tais situações na década de 90”, informa, baseada em pesquisa do médico Marcos Frigério. No momento, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprecia uma ação para se considerar que não se constitui crime de aborto a antecipação do parto realizado por médicos no caso de gestantes de fetos com anencefalia - ação apresentada pela Confederação dos Trabalhadores de Saúde, com apoio técnico da organização feminista Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
No âmbito do Executivo, a pesquisadora guarda 1989 como o ano em que se implantou o primeiro programa de aborto legal no país, no Hospital Municipal do Jabaquara, em São Paulo. “O atendimento ao aborto previsto em lei já era feito por alguns hospitais universidários, mas esse hospital foi pioneiro em implantar um programa envolvendo médicos, psicólogos e assistentes sociais. A partir dos anos 90, outros serviços começaram a funcionar, respaldados por norma técnica do Ministério da Saúde, em 1998, ampliada em 2004. Atualmente o atendimento é feito em 24 hospitais de onze Estados, mas 56 equipes já passaram por uma capacitaçã”, informa, baseada em pesquisa da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.
Maria Isabel Baltar explica que o anteprojeto da Comissão Tripartite apresentado pela ministra Nilcéa Freire, foi recebido pela deputada Jandir Feghali (PCdoB - RJ), que já incorporou seu conteúdo no substitutivo do projeto de lei 1135, de maio de 1991 - do qual é realatora. Isto evitará que o documento entre no final da fila de proposições em trâmite. O projeto da Comissão Tripartite vem sendo apoiado pelas Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, e criticado pela hierarquia da Igreja Católica. “A discussão no Congresso é um grande jogo político, onde idéias entram e nunca sabemos como saem. Convém dizer apenas que a apresentação do projeto significa um fato novo, que provocará mais polêmica”.
Uma mulher morre a cada três minutos
O anteprojeto da Comissão Tripartite enumera uma série de justificativas para a descriminalização do aborto voluntário. Segundo o documento, a Organização Mundial de Saúde estima que mais de 30% das gravidezes no Brasil terminam em abortamento, significando que, anualmente, ocorrem perto de 1 milhão de abortamentos inseguros, atingindo mais as mulheres de baixa renda, particularmente as negras. As complicações imediatas mais freqüentes são a perfuração do útero, a hemorragia e a infecção. As estatísticas mundiais indicam que uma mulher morre a cada três minutos em decorrência do aborto inseguro causa de 13% das mortes maternas. Ainda de acordo com a Comissão, em 2004, cerca de 240 mil internações pelo SUS foram motivadas por curetagens pós-aborto, a um custo de R$ 35 milhões.
|