| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 305 - 10 a 17 de outubro de 2005
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CRISE POLÍTICA

Entre a gota de azeite
e o fio da navalha


CLAYTON LEVY E EUSTÁQUIO GOMES


O presidente Lula durante cerimônia realizada no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no último dia 3 de outubro (Foto: Flavio Florido/ Folha Imagem)Há cinco meses o Brasil vive a mais grave crise política desde o impeachment de Collor. Nesse período a sociedade assistiu de tudo um pouco. Gente tida por intocável saiu de cena antes do previsto, enquanto outros, até então anônimos, foram trazidos ao centro do palco. A contundência das denúncias apontou para a necessidade de uma faxina no Congresso, mas o clima crepitante que marcou o início das CPI’s parece ter se reduzido a um fogo brando, ideal para pizza. Pior que isso: corre-se o risco de uma inversão de mão. Uma semana atrás, quando o governo emplacou a presidência da Câmara com a eleição do deputado Aldo Rebelo, o presidente Lula chegou a reclamar da “falta de concretude” das denúncias e exigiu “reparação para os inocentes”.

Nesta terça-feira, a mesa diretora da Câmara deverá aprovar a abertura de processo de cassação, no Conselho de Ética da Casa, contra 13 deputados acusados de envolvimento com o “mensalão”. Desde quinta-feira passada, porém, já circulavam boatos de que estaria em curso uma intensa movimentação nos bastidores do Legislativo para que o Conselho sugira a absolvição de pelo menos seis parlamentares. Motivo: falta de provas. Uma “pizza brotinho”, conforme já estão chamando alguns, suficiente para enganar a fome dos eleitores.

Numa outra tentativa de evitar cassações no atacado, o governo teria forçado um acordo para que seis deputados sob a mira do Conselho de Ética renunciem ao mandato. Em troca, garantiria a eles legenda para concorrerem à Câmara novamente no ano que vem. A manobra traria dois resultados imediatos: poupar os direitos políticos dos parlamentares acusados de corrupção e esvaziar a crise política. Resta saber como a população vai receber a manobra.

Para falar sobre o risco de a crise política terminar em pizza, o Jornal da Unicamp ouviu os professores Reginaldo de Moraes, doutor em filosofia, professor titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp e autor de várias obras, entre elas Neoliberalismo – de onde vem, para onde vai?; Leda Paulani, doutora em economia, professora da Faculdade de Economia da USP, presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e autora do livro Modernidade e discurso econômico; Franklin Leopoldo e Silva, doutor em filosofia, professor da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP e autor do livro Ética e literatura em Sartre; e o jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, editorialista do Jornal da Tarde, articulista do Estadão, romancista e poeta, cujo livro mais recente, O Silêncio do delator, acaba de ganhar o principal prêmio da Academia Brasileira de Letras. Leia os principais trechos da entrevista.

Jornal da Unicamp – Há menos de um mês, um extenso grupo de intelectuais assinou um manifesto pedindo rigor nas apurações. No entanto, logo a seguir as CPI’s que investigam esses episódios entraram numa fase de acomodação e, em pelo menos um caso, até de paralisia. Como o sr. (ou a sra.) está percebendo o momento atual da crise política?

Franklin Leopoldo e Silva: Atitudes truculentas, como denunciar o denuncismo, só fortalecem a oposição (Foto:Cecilia Bastos/Jornal da USP)Franklin Leopoldo e Silva – A acomodação das CPI’s deveria ser esperada por qualquer um que conheça minimamente o Congresso. Os episódios que estão sendo apurados não se referem somente aos parlamentares diretamente envolvidos no mensalão e na corrupção eleitoral. Eles trouxeram a público procedimentos tradicionais e práticas comuns a todos os partidos e a quase todos os parlamentares. Nesse sentido, a gritaria moralista da oposição nada tem a ver com a restauração da ética nas casas legislativas, hipótese desastrosa para todos e, felizmente para eles, impossível de se tornar realidade.

A oposição está se servindo daquilo que o PT fartamente lhe ofereceu: argumentos construídos através da separação hipócrita entre ética e política. Apanharam com avidez essa oportunidade porque não podem, sem contradição, criticar a política econômica do atual governo, mais tucana e mais pefelista do que nunca, e também não podem, sem cair no ridículo, reclamar do desmonte da esfera pública e da marginalização do social. O propósito não é investigar e punir, porque a grande maioria dos parlamentares, principalmente os que agora são da oposição, concorda com os métodos empregados e já se utilizou muito bem desses instrumentos, de forma mais habilidosa do que o PT, é verdade. O propósito é desgastar moralmente o governo, com finalidades eleitorais, isto é, tirar o PT do governo para continuar o que o PT vinha fazendo naquilo que realmente importa, isto é, política econômica. E o próximo governo pode até se dar ao luxo de não ser tão radical quanto o atual, tendo em vista a distância que o governo do PT já percorreu na trajetória neoliberal.

“Waldomiro Diniz continua solto e o presidente age
como se não tivesse nada com a hora do Brasil”
José Nêumanne

José Nêumanne – Percebo que agora está havendo uma espécie de refluxo. Houve a onda de denúncias, muitas foram comprovadas, caíram várias pessoas, inclusive políticos de muito poder, casos do chefe da Casa Civil e do terceiro nome na sucessão presidencial, o presidente da Câmara dos Deputados. Mas, ainda assim, as pessoas se comportam como se esperassem novos escândalos, sempre maiores e piores, para se convencerem de que a crise é grave. Essa expectativa, somada à vitória governista na sucessão da presidência da Câmara, é que motivaram o presidente Lula a fazer aquele discurso absurdo na Fiesp contra o “denuncismo”, exigindo desculpas dos denunciantes aos inocentes. Waldomiro Diniz continua solto e o presidente age como se não tivesse nada com a hora do Brasil. Não é mesmo de amargar?

José Nêumanne: A aposta pela oposição no desgaste do presidente é sua melhor blindagem (Foto: Luciana Prezia/AE)Leda Paulani – Como disse o professor Francisco de Oliveira em artigo recente na Folha de São Paulo (com Laymert G. Santos), a adesão sem peias do governo de Lula aos valores e interesses do mercado e do capital, particularmente do capital financeiro, matou a política enquanto algo substantivo. A crise é produto disso. Sem projeto para o país, o resultado de sua ascensão ao governo federal foi o fatiamento fisiológico do poder e a compra, por todos os meios, de apoio parlamentar. A incompetência no manejo desse processo abriu as comportas para uma atuação feroz da oposição meramente partidária que ele enfrenta. A intenção óbvia é enfraquecer Lula e os seus pares para que cheguem sem fôlego a 2006, desde que isso não comprometa o andamento da economia, em tudo favorável aos interesses rentistas das elites.

Por isso não faz nenhum sentido falar em “golpe” das elites contra Lula. Como foi dito num editorial do New York Times, se golpe há é para manter Lula no poder, mesmo com todas as denúncias, não para tirá-lo de lá. Veja-se que a operação é complicada e caminha sob um fio de navalha. É preciso enfraquecer Lula ao máximo, para enterrar qualquer perspectiva de sua continuidade no poder, mas não se pode esticar demais a corda, exacerbar a crise política a um ponto em que a economia seja abalada. O aparente refluxo que agora presenciamos é parte desse jogo, pois toda vez que ele se aproxima de uma zona perigosa, entram em cena os bombeiros para evitar que a queimadura passe do ponto.

Reginaldo de Moraes – Não creio que as CPIs tenham entrado em fase de acomodação. O fato é que nunca se preocuparam, de fato, em investigar os fatos. O que vimos foi uma volúpia de encenações diante das câmeras, discursos, perguntas sem sentido e uma enorme incapacidade, preguiça ou má-vontade com relação ao exame dos fatos e provas. Digo que talvez haja má-vontade e não apenas preguiça ou má-vontade por uma razão muito simples: o governo não tem grande interesse, por suposto, nisso tudo, mas, por outro lado, uma investigação mais funda chegaria onde a oposição também não quer chegar. O caso Eduardo Azeredo, abafado e escondido, é escandalosa demonstração desse fato. E ele é apenas uma das caixas paralelas da oposição, aquela que apareceu por acaso. Quantas outras apareceriam? A quem interessaria esse tipo de revelação? E como evitar esse transbordamento?

‘Não se pode descartar o triunfo eventual de um aventureiro’


JU – Como é natural, o governo tem pressa de acabar com a crise, enquanto à oposição interessa prolongá-la até os limites do processo eleitoral. Quais deverão ser os próximos lances dessa queda de braço?

Leda Paulani: Alguns personagens serão blindados para evitar que entorne o caldo (Foto: Jefferson Coppola/Folha Imagem)Franklin Leopoldo e Silva – Como resultados de uma investigação séria não interessam a ninguém, a questão é como encenar a comédia. O governo quer final rápido, a oposição quer prolongar porque precisa da carona que o PT lhe deu sob os holofotes. Afinal todos agora têm aparição gratuita garantida na TV quase diariamente. O governo poderá prevalecer se (ainda) tiver o que barganhar. Atitudes truculentas, como denunciar o denuncismo, só fortalecem a oposição, que pode assim acusar o governo de tentar obstruir. Por outro lado o governo não tem nada que possa usar para desviar a atenção. Por fim as novidades vão acabar envelhecendo, a imprensa vai procurar notícias mais frescas e vendáveis e o telespectador das sessões das CPI’s vai se cansar ou cair no sono. Então, como sempre aconteceu, eles vão se entender entre eles, dividir lucros e prejuízos, e nós vamos ficar aguardando o próximo espetáculo. Se ainda fosse preciso provar a falência da Política, aí estaria um testemunho eloqüente.

José Nêumanne – O velho Lênin dizia que a gente sabe como começa uma revolução, mas nunca sabe como ela termina. O mesmo vale para uma crise dessas dimensões. Não dá para prever nada. Tendo a concordar com o deputado ACM Neto, que, segundo escreveu Diogo Mainardi na Veja, disse que a oposição perdeu a chance de desalojar Lula do poder ao não entrar com o impeachment no dia do depoimento do Duda Mendonça. A aposta pela oposição no desgaste do presidente é sua melhor “blindagem”. Mas acho que Lula chegará forte à reeleição, embora não esteja mais praticamente reeleito, como estava, antes das denúncias de Jefferson.

Leda Paulani – Creio que observaremos vários momentos como esse, entremeados de outros em que a temperatura subirá muito. Se se conseguir manter esse clima até o período eleitoral, o objetivo maior terá sido alcançado. Mas é claro que isso pode não dar certo. Como se trata de uma operação delicada, que envolve a opinião pública e a dinâmica do Congresso, o qual eventualmente pode ter algum laivo de vida própria, a crise pode sair do controle produzindo ou sua própria morte e a ressurreição política de Lula, ou seu exacerbamento vital e o envolvimento da economia. Evidentemente nenhum desses resultados interessa à oposição e tudo será feito para evitá-los.

“O PT está fazendo mais ou menos o papel de ‘gente nova’
que quer entrar em território já ocupado por vetustas ‘famílias’”
Franklin Leopoldo e Silva

Reginaldo de Moraes – De fato, existe essa queda de braço e isso revela os objetivos que estão sendo jogados nessas CPIs: não há, de fato, preocupação com “acabar com a corrupção” ou com modificações de fundo na legislação partidária, eleitoral, etc. O que se tem é, de fato, uma disputa que tem como horizonte a eleição do ano que vem. É isso o que está em jogo. Até uma criança percebe. Por isso, os passos serão determinados por esse objetivo: o calculo com relação às eleições do final de 2006. Corrupção não é o principal problema do governo Lula, na minha opinião. Longe disso. E corrupção não é problema inventado no governo Lula. Passamos por oito anos de governo FHC, com o maior programa de privatizações do planeta, com mais de 100 bilhões sendo negociados em processos suspeitíssimos, em que até uma parte do governo “grampeou” a outra para tirar proveito – o governo conseguiu abafar qualquer investigação, porque detinha maioria no Congresso e porque a grande mídia tinha todo interesse em preservar o programa de privatizações. Se a memória não me trai, também não houve espaço em mídia para manifestos de intelectuais da universidade a esse respeito, mesmo que eles os tivessem produzido.

JU – Até aqui, só o denunciante foi cassado. As CPI’s tendem a fracassar?

Reginaldo de Moraes: "A assim chamada sociedade brasileira já passou por várias pizzas e fraudes" (Foto: Antoninho Perri)Franklin Leopoldo e Silva – Talvez as negociações envolvam novas cassações. A evolução dos acontecimentos vai depender das relações entre Executivo e Legislativo, que, como se sabe, não são políticas, mas de negócios. É o peso relativo de vantagens de indivíduos e de grupos que deverá determinar a quantidade de cabeças a rolar – ou a quantidade de renunciantes que vão ganhar fôlego até a próxima eleição. O denunciante foi cassado porque praticamente pediu a punição e, em todo caso, ficou mais conhecido e popular nessa condição do que como deputado.

José Nêumanne – É uma injustiça jogar toda a culpa pela “pizza da impunidade” nas CPIs. A CPI dos Correios prestou um grande serviço à cidadania ao encaminhar os 18, que viraram 16, e depois 13, deputados “cassáveis” à Mesa da Câmara. A dos Bingos também, ao exibir o nível da escumalha que freqüenta o poder na acareação da GTech com Waldomiro Diniz e Rogério Buratti. Os donos da pizzaria estão no Planalto e na direção do PT. E os “pizzaiolos” são os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Aldo Rebelo. As CPIs têm feito o que podem, mas não podem muito contra a desqualificação organizada empreendida pela maioria governista no Congresso.

Leda Paulani – Como todo mundo sabe, as CPIs constituem, antes de mais nada, um grande teatro público, extremamente importante para os parlamentares, que acabam ganhando um “tempo gratuito” extra de televisão. Mas também desse ponto de vista, é preciso que algum resultado objetivo apareça, para que o teatro valha a pena e conte positivamente para os melhores atores. Uma CPI completamente fracassada, como foi a do Banestado, pega mal para os parlamentares. Hoje em dia, por exemplo, todos atribuem ao deputado José Mentor (seu presidente) o fracasso dessa Comissão. Isto posto, o grau de “sucesso” das CPIs vai depender da habilidade na condução da operação delicada de que falamos acima. Mais alguns serão cassados para que as CPIs não sejam vistas como um fracasso e passem para o grande público a idéia do dever cumprido. Mas alguns personagens serão blindados para evitar que entorne o caldo.

Reginaldo de Moraes – O denunciante foi cassado por que confessou, em primeiro lugar. E foi cassado, ao que parece, por acusar sem provas, o que também seria ferir o tal decoro parlamentar. Ora, se acusou sem provas e se a CPI não produzir provas, de fato, inclusive identificando quem corrompeu, isto é, quem forneceu o numerário para o golpe... então vai ser difícil cassar. A não ser que se opte por uma lista de nomes para “dar uma satisfação” ao distinto público, depois do alarde. O que é pior?

“Uma CPI completamente fracassada, como foi a do Banestado, pega mal para os parlamentares”
Leda Paulani

JU — Vê-se que a crise é permeada por uma batalha secundária, de caráter semântico. Até há pouco era impossível ao governo negar a gravidade das denúncias, diante da força da linguagem empregada pela oposição. Agora, entretanto, o discurso presidencial já se permite enfatizar a palavra “denuncismo”, caracterizar a crise como “barulho” e até pedir “reparação” ou “retratação” das denúncias feitas. Até que ponto isso pode influir no andamento das CPIs?

Franklin Leopoldo e Silva – Tudo que podia ser provado já foi. Não interessa a ninguém ir mais aquém, mais além ou mais alto. Nem todas as provas, no entanto, são tecnicamente procedentes para provocar processo jurídico. Portanto ninguém tem muito com que se preocupar – e ninguém vai precisar devolver dinheiro. O governo endurece o discurso na medida em que as CPI’s – e as oposições – dão sinais de acomodação. É claro que os negócios hão de prosseguir: o Legislativo vai custar cada vez mais caro e o governo vai ter de pagar, até porque já mostrou que o faz sempre que necessário. E essa despesa, ao contrário de investimentos sociais, é o tipo de gasto ao qual o ministro da Fazenda não opõe qualquer restrição.

José Nêumanne – Ao vencer a eleição para a presidência da Câmara e sentir aquilo que chamei de “refluxo” no início, o governo passou a “cartar marra”, como se diz na gíria. Pode ser um erro muito grande. Talvez semelhante ao da oposição, que está achando que pode eleger um poste contra Lula apenas por causa das denúncias de Jéferson e termina por se queimar nessa fogueira de vaidades, na qual qualquer um acha que pode ser o tal do poste. É melhor esperar para ver. Numa situação como essa, não se pode descartar o triunfo eventual de um aventureiro tipo Collor. Garotinho está por aí rondando, como um espectro, a eleição e representa um perigo danado. Quem vai garantir que ele seja uma carta fora do baralho?

Leda Paulani – Essa reação do governo resulta de seu fortalecimento com a vitória na eleição da presidência da Câmara, que lhe deu uma sobrevida e criou o espaço para um revide. Claro que do lado deles, eles farão todo o possível para reverter completamente o quadro e, de preferência, abortar completamente o processo. Pedir reparação depois de ter assumido a culpa é uma demonstração de que esses movimentos não se determinam pelos móveis que parecem determiná-los (a apuração da verdade sobre a corrupção, a compra de parlamentares, o caixa dois, o movimento escuso de milhões de reais, a evasão de divisas), mas pelo puro jogo partidário e de interesses que comanda a política brasileira há muito tempo, e para o qual o governo Lula, infelizmente, está dando uma enorme contribuição.

Em suma, não interessa a apuração da verdade, mas o resultado do jogo. É de fato lamentável que esse governo, do qual se esperava uma espécie de refundação da sociedade e o resgate da soberania do país, tenha se enredado nesse jogo mesquinho. Mas ele não é vítima. Simplesmente sofre agora os constrangimentos das escolhas que fez.

Reginaldo de Moraes – A política também vive desse tipo de batalha semântica. Quem define os termos, define o julgamento. Um presidente de partido, do PT, faz empréstimos bancários via um cidadão, o tal Valério, que oferece em garantia seus contratos de serviços ao governo. Chama-se a isso de grave indício de corrupção. Pode ser, de fato. Um outro presidente de partido, do PSDB, faz o mesmíssimo tipo de empréstimo, com o mesmo indivíduo e as mesmas garantias. O governador de São Paulo chama a isso de “problema eleitoral”. Conhecemos esse problema vocabular. Crime de branco não é crime, é deslize. Garoto rico é “dependente”, pobre é pivete maconheiro. É claro que essa batalha verbal influi no andamento das CPIs, até porque diz até que ponto cada lado quer que a investigação vá, qual o nome que deve ser dado a cada coisa.

JU – Não há o risco de a sociedade enfadar-se com a crise, as denúncias caírem no vazio e os crimes presumíveis passarem por normais dentro da dinâmica política?

Franklin Leopoldo e Silva – Isso de certa forma já acontece. Não há, da parte da população, tanta indignação quanto faz crer a imprensa e certos grupos de pressão, que trabalham por interesses próprios, fazendo lobby a pretexto da ética. A imprensa inflou o clima do “basta”. Afinal, todos estamos acostumados com corruptos espertos, que se locupletam durante anos e anos de mandatos legislativos e executivos, e aos quais nada acontece. Todos sabem, também, que se por trás das fraudes estivesse a competência dos partidos mais tradicionais e de gente que faz isso há muito mais tempo, tudo estaria na mais absoluta normalidade. O PT está fazendo mais ou menos o papel de “gente nova” que quer entrar em território já ocupado por vetustas “famílias”. Ou mostra cacife que o habilite a participar, ou é expulso.

“Pode ser também que as pessoas vejam nesse embate
um jogo em que os contendores se equivalem”
Reginaldo de Moraes

José Nêumanne – Não é propriamente um risco. Esta é a história recorrente do Brasil. Um dia destes, meu amigo Roberto DaMatta, antropólogo maior, escreveu um artigo nos jornais exatamente sobre nossa mania de purgar, purgar, purgar e nunca punir. É por aí. Faz parte de nossas mais “caras” tradições republicanas, destas que o PT adora reproduzir. Radicalizando.

Leda Paulani – Esse risco existe, claro, mas ele é parte de um risco maior e muito mais danoso. Desde o fim da tutela militar, o país viveu de esperança em esperança, sempre seguida de frustração: com a volta dos civis ao poder, porque o primeiro presidente foi o presidente do partido que apoiara a ditadura; com a Constituinte, porque a maior parte de seus princípios não saiu do papel; com a volta das eleições diretas para Presidência, porque o primeiro presidente democraticamente eleito teve de ser afastado por corrupção; com o Plano Real e a farsa do real forte, porque ela se desfez numa enorme crise cambial; com a vitória do PT em 2002, porque não só não foram efetivadas as mudanças que se esperavam, como se demonstrou que esse partido faz política do mesmo modo fisiológico e antiético que ele sempre criticara nos demais.

Por tudo isso, o risco não é de que os crimes passem a ser encarados como coisa normal dentro da política, mas é o risco da descrença total e cabal na democracia. Se a mudança dos governantes pela via democrática nada altera, então tanto faz e a política e a democracia mais atrapalham que ajudam. Com isso está aberto de vez o caminho para que o fascismo econômico que ora presenciamos se perpetue como coisa natural e com ele fascismos de outra espécie. Anomia política somada à anomia social já existente é uma equação que não traz nada de bom como resultado.

Reginaldo de Moraes – Há esse risco, claro. Esses “crimes presumíveis” já foram tidos por normais muitas vezes, no passado. Pode ser também que as pessoas vejam nesse embate um jogo em que os contendores se equivalem. Ou seja, que a “sociedade” veja nisso uma disputa eleitoral. Será tão difícil imaginar que isso aconteça? Não.

JU – Tal como estão colocadas, as denúncias tipificam um crime financeiro-eleitoral que inclusive teria influído nos resultados da última eleição, tornando-a portanto ilegítima. Contudo, essa tese contra o governo não parece prosperar. Tal como existe o argumento da “conspiração da direita”, não haveria também a hipótese de as forças econômicas – e por extensão as forças políticas – estarem interessadas numa “conspiração pela blindagem”, desde que o governo chegue exaurido à próxima eleição?

Franklin Leopoldo e Silva – Se crime financeiro-eleitoral fosse motivo para anular eleição, o Senado, a Câmara Federal, as assembléias estaduais e as câmaras municipais, bem como a maioria dos governos estaduais e prefeituras ficariam todos praticamente vazios. Quem elege é o poder econômico. E, atualmente, quem decide se governante em apuros permanece ou sai, também é o poder econômico. Banqueiros e empresários herdaram essa função que já foi desempenhada por militares. E como a moralidade da comunidade econômica se define pelo lucro, é este o único critério que vai apontar se o rei está nu ou está blindado.

José Nêumanne – A “blindagem” é uma realidade e já ultrapassou o estágio de conspiração há muito tempo. A plutocracia, que você descreve claramente na pergunta, faz parte dela, mas é apenas um elemento a mais num conjunto de freios ao prometido e desejado processo de apuração e investigação “até o fim”, “duela a quien duela”, “cortando na própria carne”, etc. De certo modo, até a oposição participa da tal da “blindagem”, um pouco por cegueira, um pouco por safadeza. Da cegueira já falamos acima. Os oposicionistas, tucanos principalmente, acreditam que se beneficiarão na eleição de um presidente debilitado pelas denúncias disputando a volta ao cargo. A safadeza está no noticiário cotidiano.

O PSDB ainda não percebeu que não pode cobrar de Lula o comportamento que o próprio partido não consegue ter com Eduardo Azeredo, seu presidente nacional. O alto tucanato não entendeu a vantagem que levaria na troca: o presidente da República pelo presidente nacional de um partido meia-boca. E aí “blindam” o presidente, vendendo essa idéia idiota de que ele não sabia de nada. Na verdade, na “República da Conceição” ninguém sabe, ninguém viu mesmo. Não apenas Lula e Eduardo Azeredo, mas todos nós. Depois dos casos Celso Daniel e Toninho do PT, das denúncias de César Benjamin, Paulo de Tarso Venceslau e Fernando Gabeira, nem o cego Jatobá tem o direito de se surpreender com as maracutaias do PT.

Aliás, não sejamos injustos: na vida real e na novela, o único brasileiro que enxerga as coisas é aquele cego. O resto tem dois olhos, mas não consegue enxergar nada. Os denunciantes da malandragem petista generalizada e cínica são todos esquerdistas históricos e ficam falando de golpismo de direita. E o ministro da Justiça prega que “caixa dois” é “coisa de bandido” e esquece que os “recursos não contabilizados” são o pretexto usado pelos petistas de seu governo para minimizarem a própria culpa, desde que foram acusados por Jefferson de comprar apoio no Congresso com o tal do “mensalão”, cujas evidências são mais notórias que o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor.

Leda Paulani – Isso é exatamente o que eu penso, conforme já expliquei anteriormente.

Reginaldo de Moraes – Denúncias não tipificam crime. Provas, sim. Quanto a prosperar ou não a tese da “invalidação” das eleições, agora, é algo engraçado: vamos então revogar tudo aquilo que o governo “ilegitimamente eleito” fez? Vamos também revogar todas as votações do Congresso? Bom, isto vai ficar pior do que o Campeonato Brasileiro de futebol, que pelo menos só teve onze partidas anuladas... E se seguirmos esta lógica, vai ser difícil de deixar de lado as eleições anteriores, igualmente suspeitas de irregularidades (inclusive a da reeleição). aqui a pouco vamos rever a Proclamação da República. Talvez seja o caso. Seria bom rever os contratos assinados pelos governos ilegítimos, ditatoriais ou não. Empréstimos, cartas de intenções com o FMI, etc. A quem interessaria isso? O jogo em andamento é bem menos ambicioso.

JU – Qual seria o impacto (emocional e cívico) na sociedade brasileira de uma possível “pizza”? Acredita que ela possa vir a acontecer?

Franklin Leopoldo e Silva – Uma pizza assada em forno brando, massa média, com recheio que satisfaça vários gostos e que não tenha assinatura ostensiva de um ou de alguns pizzaiolos, mas que seja verdadeiramente “da Casa” não é de se descartar. E não creio que haja grande impacto cívico. Pizza tornou-se algo tão trivial nesse país que a maioria das pessoas já está indiferente – até mesmo àquelas que saem mais caras.

José Nêumanne – Quando li o discurso de Lula na Fiesp exigindo desculpas para os inocentes, um enorme desânimo me invadiu. Deu-me vontade de largar tudo e ir criar bode no sertão. Depois, me animei mais quando vi que a Corregedoria da Câmara, pressionada pela sociedade, não serviu a pizza, mas encaminhou ao Conselho de Ética os processos contra os deputados citados pelo excelente (e direito) relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). Assim, entre um beijo na bochecha e um chute no traseiro, aos trancos e barrancos, vamos seguindo.

Acho que há uma enorme possibilidade de vir alguma pizza de impunidade aí. Mas espero que ela não seja total. Que pelo menos o comissário José Dirceu, com aquele sotaque de caipira cínico, não seja poupado. Nem esse tal de Luizinho, que não é professor primário, mas professor e primário. Não sei se a pressão da opinião pública evitará que a pizza seja servida. Mas tenho certeza de que só essa pressão poderá evitar a impunidade ampla, geral e irrestrita.

Leda Paulani – A pizza completa com todos os temperos só sairá do forno se não houver outra alternativa para ”blindar” a economia. Isso só acontecerá se não houver como conciliar de um lado a manutenção in totum da política econômica e do projeto neoliberal e de outro o enfraquecimento profundo de Lula e de seus acólitos. Uma enorme pizza contribuirá para aprofundar o processo de anomia política em curso e seu impacto sobre a sociedade é aquele sobre o qual já falei.

Claro que os interesses em jogo não perderão a oportunidade para tentar rifar por umas boas décadas qualquer idéia, ou projeto, ou princípio que tenha algum parentesco com o lado esquerdo do espectro ideológico. Esse é outro resultado de efeitos danosos não só para a esquerda verdadeira, mas para a própria democracia pois contribuirá decisivamente para desmoralizar a política, implantar um espírito fascista e deixar os interesses e preconceitos das elites soltos na arena. Talvez seja esse o maior crime de Lula e do PT.

Reginaldo de Moraes – Não creio que seja tão grande esse impacto. A assim chamada sociedade brasileira já passou por várias pizzas e fraudes. Está escolada. O governo militar e seus planos mirabolantes, a Nova República, a novela Tancredo, uma falsa constituinte, a eleição de Collor, um festival de fraudes nos anos 70 e 80. A campanha das privatizações, o maravilhoso cambio do real-dólar, a hipoteca do país diante do FMI, na véspera das eleição de 1998 – tantas outras fraudes nos anos 90. Alguém quer mais fraudes do que a honra da grande imprensa brasileira, que apoiou até mesmo a tortura (e não apenas na palavra, mas na ajuda material)? Que apoiou tudo quanto foi engodo vendido à plebe esfolada?

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