ÁLVARO KASSAB
Duas semanas transcorreram entre a concepção e a finalização desta matéria. Neste período, uma seca antecipada e de proporções inéditas atingiu mais da metade dos 62 municípios do Amazonas, isolando milhares de pessoas em comunidades ribeirinhas o governo local decretou estado de calamidade pública; o furacão Stan fez milhares de mortos e desabrigados na Guatemala e em parte da América Central; as regiões de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto enfrentaram temperaturas recordes; e, entre outros fenômenos, a pior notícia: dados divulgados no último dia 13 (quinta-feira) pelo Instituto para Estudos Espaciais Goddard, da Nasa, revelaram que a média da temperatura global em 2005 superou em cerca de 0,055º C a de 1998, que detinha o recorde anterior de ano mais quente desde que as medições passaram a ser confiáveis. As causas e os efeitos de ocorrências semelhantes às relacionadas acima são analisadas nesta e nas próximas três páginas pelos especialistas Carlos Alfredo Joly (Instituto de Biologia/Unicamp), Carlos Nobre (Inpe), Luiz Gylvan Meira Filho (USP) e Hilton Silveira Pinto (Cepagri/Unicamp).
Jornal da Unicamp Coletas sistemáticas de dados sugerem que a temperatura média da superfície terrestre elevou-se 0,6º C no século XX. Períodos de aquecimento já fustigaram a Terra há milhões de anos. Na linha do tempo, o que significa o aumento da temperatura hoje e o que ele pode ocasionar?
Carlos Alfredo Joly As mudanças climáticas que ocorreram no passado geológico foram, em sua grande maioria, lentas e graduais, sendo medidas em milhares de anos. A única mudança abrupta bem conhecida aconteceu no final do Cretáceo, possivelmente em função da conjunção dos efeitos decorrentes do impacto de um grande meteoro e de uma intensa atividade vulcânica. A conseqüência desta brusca mudança é o que conhecemos como a quinta extinção em massa do planeta Terra, e que tem no desaparecimento dos dinossauros sua característica mais emblemática.
Os mecanismos biológicos envolvidos no processo evolutivo, geralmente, atuam de forma lenta e gradual, ao longo de dezenas de gerações de indivíduos de uma dada espécie. Mudanças rápidas de temperatura, bem como na freqüência, distribuição e volume de chuvas truncam o processo evolutivo e resultam na extinção de espécies. O efeito dominó que o desaparecimento de uma espécie desencadeia resulta em um crescimento exponencial da curva de extinção. Alguns expoentes da área de biologia da conservação (como Edward Wilson, John Lawton e Normam Myers) postulam que o processo que resultará na sexta extinção em massa do planeta Terra já está em curso, e que nas próximas décadas até 2/3 das espécies poderão desaparecer.
Carlos Nobre As análises do Painel Intergovernamental Sobre Mudança do Clima (IPCC) indicam que a temperatura média da superfície terrestre elevou-se entre 0,6º e 0,7º C nos últimos 120 anos. Há grande variabilidade espacial, com algumas regiões (como, por exemplo, nas margens da Antártica e no Ártico), com aumentos de temperatura acima de 1,5º C, enquanto algumas poucas áreas registraram até mesmo diminuição da temperatura. Numa escala geológica, já houve grandes variações da temperatura da Terra, mas normalmente ocorrendo em dezenas a centenas de milhares ou milhões de anos, ainda que o registro paleoclimático mostre variações de temperatura ocorrendo em poucas décadas, mas não de dimensão global.
Com a quantidade de gases de efeito estufa já injetada na atmosfera, e lembrando que eles têm longa vida média na atmosfera (10 anos para o metano e século a milênio para o gás carbônico, por exemplo), pode-se projetar que as temperaturas à superfície continuarão a se elevar por séculos, mesmo que milagrosamente pudéssemos manter a concentração dos gases nos níveis atuais. Este aumento da temperatura ocasiona uma mudança nos padrões climáticos globalmente e não temos certeza ainda dos impactos regionais e locais.
De modo geral, o nível do mar se eleva por expansão térmica da água e por degelo de geleiras e o ciclo hidrológico se acelera, aumentando a freqüência de fenômenos extremos climáticos, como secas e inundações, ondas de calor, tempestades severas, etc. Para o Brasil, os cenários de mudanças climáticas futuras ainda apresentam grande incerteza, mas, de modo geral, até o final do século as temperaturas podem aumentar de 2º a 5º C, dependendo do cenário de emissões de gases de efeito estufa que se tome. A incerteza é ainda maior com respeito às mudanças no ciclo hidrológico na escala regional, porém pode-se dizer que um aumento da evaporação irá acompanhar o aquecimento. A região semi-árida poderá ter menos disponibilidade de água.
Luiz Gylvan Meira Filho O aumento da temperatura média global este século não tem precedente na história recente, nos últimos cerca de dez mil anos. E esta é uma razão importante para preocupação. Os danos são de uma certa forma proporcionais à taxa de mudança, mais do que à magnitude da mudança em si, já que nos adaptamos lentamente ao clima, sempre que a taxa da mudança não seja maior do que a nossa capacidade de adaptação. O mesmo vale para os ecossistemas. As variações naturais do clima tendem a ter uma média nula, ou seja, mesmo as eras glaciais são variações nos dois sentidos, e a média se mantém. A mudança do clima devida ao aquecimento global, por outro lado, é uma mudança sem precedentes, repito num só sentido. Quanto aos efeitos da mudança do clima, prefiro dizer de forma geral porém correta que, por definição, estamos adaptados (bem ou mal) ao clima atual. Uma mudança nos deixará mal adaptados ao clima, e isso é mais sério do que normalmente imaginamos.
Hilton Silveira Pinto De fato, as coletas sistemáticas feitas em cerca de mil estações ao redor do mundo, mostraram que, globalmente, essa variação foi da ordem de 0,6º C. Mas, se for considerado apenas esse fato, veremos que a variação não é estatisticamente significativa. Ela pode ser obra do acaso, e não há nada que comprove que foi provocada por mudanças climáticas efetivas. Não é uma boa medida. Até quatro ou cinco anos atrás, essa medida era aceita por uma parte da comunidade científica, mas não por toda, justamente porque, estatisticamente, não significava muito.
Em Campinas, onde há uma série longa de análises, o aumento das temperaturas mínimas, nos últimos cem anos, é de 2,7º C graus; em Pelotas e Sete Lagoas é da ordem de 1,0º C. Aí vem a explicação maior: o fato de a temperatura média global ter subido 0,6º C não é significativo; mas o fato de todas as medidas estarem subindo em conjunto, ou seja, nenhuma revela decréscimo, a credibilidade deste 0,6º C aumenta. Foi o que revelou o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental Sobre Mudança Climática) em 2001. Resta saber se essas variações são de fato indicações de uma mudança climática definitiva ou se trata apenas de variações cíclicas não detectadas pelas amostras relativamente pequenas de temperaturas disponíveis.
JU Até pouco tempo atrás, boa parte dos cientistas via com reservas previsões que davam conta de que algo estava mudando. Não raro os responsáveis pelos alarmes eram vistos como “catastrofistas”. Hoje, entretanto, há uma percepção quase consensual de que algo está acontecendo. O que mudou?
Carlos Alfredo Joly O acúmulo de evidências científicas, que vão da diminuição da espessura das calotas polares a alterações significativas no ritmo sazonal de animais e plantas, fez com cientistas de áreas tão distintas como biologia reprodutiva de plantas e climatologia passassem a interagir. Esta integração resultou em um aumento exponencial de discussões sobre esta temática em congressos especializados e, conseqüentemente, de “papers” publicados sobre o assunto. Portanto, a percepção quase consensual de que “algo” está acontecendo com o clima, foi construída passo a passo e hoje está consolidada no meio acadêmico.
Carlos Nobre O aquecimento global tem uma base física muito sólida, isto é, a física quântica do efeito estufa ao nível molecular não deixa dúvidas de que, ao colocar mais moléculas que apresentam esta propriedade na atmosfera, a superfície irá ter sua temperatura aumentada. Com o sistema climático é muito complexo e não-linear, houve e ainda há muita incerteza sobre a magnitude da resposta do sistema climático a este forçamento radiativo, isto é, ele suscita complexos processos de re-alimentação positiva (aumento ainda maior da temperatura) e negativa (diminuição da temperatura).
A ciência do aquecimento global cresceu enormemente nos últimos 20 anos e duas coisas contribuíram para tirar as projeções das mudanças climáticas do terreno especulativo. Em primeiro lugar, nossa capacidade de quantificar as complexas interações no sistema climático cresce exponencialmente. Hoje, os modelos matemáticos do sistema climático fornecem simulações que não deixam dúvidas de que o aumento dos gases de efeito estufa pela ação humana é o principal responsável pelo aumento da temperatura da superfície nos últimos 100 anos e não alguma forçante natural.
Em segundo lugar, as evidências observacionais das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento tornam-se dia a dia mais evidentes, seja a acelerada diminuição das geleiras continentais e da área coberta com gelo no Oceano Ártico, seja o aumento do nível do mar (cerca de 2 mm por ano), ou a freqüência de fenômenos extremos que começa a dar sinais de que está aumentando. Confrontados com esta montanha de evidências, a maioria absoluta dos cientistas percebe que algo está mudando.
Luiz Gylvan Meira Filho A comprovação da hipótese da mudança do clima devido à ação do homem pode ser feita por partes. Não há dúvidas de que a concentração de gás carbônico e outros gases na atmosfera está aumentando, e que isso se deve ao homem. Também não há dúvida de que esse aumento ocasiona um aumento progressivo do aquecimento da superfície, cerca de 4 watts por metro quadrado. O que se sabe com menos precisão é quanto dessa energia adicional se transforma em aumento da temperatura e, conseqüentemente, de outros elementos do clima.
Muitos sugerem que uma comprovação melhor seria comparar o aumento da temperatura observado com o aumento previsto com os modelos usados para a simulação do clima. É o problema da detecção da mudança do clima e da atribuição de causa, ou seja, a separação entre o efeito do aumento dos gases de efeito estufa e outras variações naturais. Ocorre que essa tarefa vem ficando mais fácil pelo próprio aumento da mudança do clima já observada.
Além disso, a melhora na qualidade dos modelos de simulação do clima permitiu que se representasse melhor todas as variações. Hoje, os modelos climáticos reproduzem muito bem a evolução do clima nos últimos cem anos, incluindo efeitos de vulcões, da variabilidade solar, dos aerossóis, bem como do aumento dos gases de efeito estufa. Estes modelos, validados pela comparação com as observações, por sua vez não conseguem reproduzir a evolução do clima nos últimos cem anos se não for incluído o efeito dos gases de efeito estufa. Daí a afirmação, no terceiro relatório científico do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU (www.ipcc.ch), no sentido de que essencialmente não há mais dúvida sobre a validade da hipótese. O quarto relatório, já em fase de revisão para ser publicado em 2006, será necessariamente ainda mais categórico.
Hilton Silveira Pinto Como disse anteriormente, pelas novas normas adotadas pelo IPCC, foram associadas outras variáveis na questão da temperatura. Por exemplo: novos estudos sobre o aumento dos fatores causais e novos modelos de estimativa que mostram mais claramente os efeitos antropogênicos e naturais. Hoje fica difícil não acreditar que esteja havendo uma mudança climática, mesmo que ela seja temporária.
Entretanto, não se pode afirmar que essa mudança é definitiva. Pode ser que estejamos num ponto de aquecimento que acabe daqui a uns 10 ou 20 anos, retornando à normalidade depois. Mas tudo indica, porém, que realmente está havendo esse aquecimento.
Continua nas páginas 6 e 7