Machado de Assis, mestre também nesse gênero, disse que as crônicas tratam de “cousas doces, leves, sem sangue nem lágrimas”. Com a mesma elegância, o crítico Antonio Candido, inclusive quando se referia a esses escritos como um “gênero menor”, ressaltava seu propósito de informar, comentar e sobretudo de divertir, insistindo “no papel da simplicidade, brevidade e graça da crônica”. Em que pesem as manifestações simpáticas, sobre a crônica prevaleceram definições como “filha bastarda da arte literária”, “textos ligeiros e sem importância a serem esquecidos nas páginas dos jornais velhos”, “um misto híbrido de jornalismo e literatura” ou, na afirmação de José de Alencar, coisas surgidas “ao correr da pena”, sem obedecer a nenhum impulso criativo mais elevado.
Lidas por historiadores de hoje, as crônicas do período que vem de meados do século 19 e avança pelo século 20, resultaram no livro História em cousas miúdas (Editora da Unicamp), organizado pelos professores Sidney Chalhoub, do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) do IFCH, Leonardo Affonso de Miranda Pereira, do Departamento de Teoria Literária do IEL, e Margarida de Souza Neves, do Departamento de História da PUC-Rio. Para os organizadores, que pinçaram da história literária as impressões acima, a crônica não é um gênero simples: “Ao cronista cabia a responsabilidade de buscar, dentre os acontecimentos sociais de maior relevo e divulgação, capazes de formar entre escritor e público códigos compartilhados que viabilizassem a comunicação, temas que lhe permitissem discutir as questões de seu interesse”, escrevem na apresentação.
Ainda na apresentação do livro, os organizadores atribuem também a Machado de Assis uma reflexão “sobre as diferenças que separariam a História, ‘uma bela castelã, muito cheia de si’, da crônica, ‘uma boa velha patusca’ que ‘fareja todas as cousas miúdas e graúdas, e põe tudo em pratos limpos’”. Os professores acrescentam que “ao contrário do historiador, supostamente superior e desinteressado, ao cronista caberia interagir com as coisas de seu mundo, meter-se onde não era chamado para transformar o que via e vivia”.
Sidney Chalhoub, em entrevista, informa que o livro é fruto da colaboração entre dois grupos de pesquisa, da Unicamp e da PUC-Rio, ambos financiados pelo Programa de Núcleos de Excelência (Pronex) do CNPq. “Há vários trabalhos em andamento nessa interface entre literatura e história. Eu e Leonardo Pereira já tínhamos organizado uma coletânea, História contada, explorando a aproximação entre literatura e história social, mas tratando de romances e contos. Agora adotamos a crônica, gênero que possui uma história muito rica no Brasil. Desde meados do século 19, quase todos os grandes literatos militaram na imprensa, mantendo uma atividade regular como cronistas”, explica.
Ler as crônicas a partir do ponto de vista do historiador, segundo Chalhoub, implicou na estratégia de buscá-las nos jornais onde foram originariamente publicadas e não em coletâneas posteriores. “A leitura da crônica fora do contexto cria de imediato uma grande distância e um estranhamento, por causa da dificuldade em entender os eventos aos quais ela alude, geralmente correlatos à cobertura dos jornais”, observa. Em quase seiscentas páginas, História em cousas miúdas traz artigos de 17 autores e está dividido em três partes: “crônicas em série”, que permitiram o estudo de variados recursos literários empregados pelos escritores; “crônicas no plural”, que analisa a especialização temática do gênero, com o surgimento de séries dedicadas especificamente à política e ao esporte; e “crônicas singulares”, que mostra como outros tipos de interlocução com o tempo proposto pela crônica - caso das caricaturas, correspondências e até letras de samba.
Caráter literário Leonardo Pereira aponta a busca do caráter literário das crônicas como um tom comum em todos os capítulos do livro. “Por ser vista como um misto de jornalismo e literatura, a crônica foi frequentemente encarada como um documento transparente, capaz de retratar diretamente a realidade. Nosso esforço foi atentar para a elaboração narrativa existente em tais escritos, sem o que seu sentido pode se perder para o leitor da posteridade”, diz.
Pereira assina no livro um artigo sobre Coelho Netto, autor que a história literária deixou de lado, talvez porque tenha feito da crônica um de seus principais meios de expressão. “Ao longo da carreira, ele criou inúmeros narradores com diferentes pseudônimos. O pseudônimo, na crônica, muitas vezes é visto como simples artifício para esconder a identidade, mas Coelho Netto, na verdade, construía personas literárias tão elaboradas quanto às de qualquer romance. Ele falava pela crônica, obviamente, mas pelo viés literário de um narrador ficcional”, observa.
Sidney Chalhoub, por sua vez, analisa no livro uma série curta de Machado de Assis, intitulada A + B. São sete crônicas totalmente em diálogos, assinadas por um tal João das Regras, cujo único papel é ouvir e reportar os comentários de A com B sobre as notícias da véspera. “Machado transforma João das Regras num expositor da indeterminação que o leitor sente diante do que lê no jornal: ‘Aconteceu isto ontem, mas e agora? O que o deputado vai fazer depois dessa denúncia?’. Seja qual for o protocolo narrativo que adote, o cronista tem sempre de lidar com a indeterminação dos acontecimentos, problema que não aflige os romancistas”, compara.
Variedade São analisados no livro textos de Justiniano José da Rocha, importante político do século 19 e autor de várias séries a serviço dos gabinetes conservadores. O desconhecido Leo Pardo, cronista de Porto Alegre, ganha o mesmo espaço que as crônicas de Graciliano Ramos e os Macaquitos na Bruzundanga de Lima Barreto. O capítulo Balas de estalo lembra uma série invariavelmente associada a Machado de Assis, embora fosse criação coletiva, reunindo outros autores como Capistrano de Abreu e Ferreira de Araújo. “Cada literato criava uma personagem que tinha suas peculiaridades, temas favoritos e estilos próprios de abordagem. Por vezes, debatiam entre eles, numa espécie de fórum de discussão pública. Era um experimento literário. Publicam-se crônicas isoladas de Machado como Balas de estalo, sem que se atente para o sentido muito diferente que elas adquirem se colocadas no contexto desta série coletiva”, critica.
De sua parte, Leonardo Pereira destaca um estudo das crônicas esportivas de José Lins do Rego, autor reconhecido por seus romances. “É uma parte de sua produção completamente ignorada. No caso, duplamente esquecida, pois além de serem crônicas, tratam de futebol, tema por tempos menosprezado pelos círculos letrados. Apesar disso, esses textos apresentam ainda hoje grande interesse, por evidenciarem a leitura do Brasil que o autor fazia através do jogo. Flamenguista, ele estava distante de qualquer imparcialidade, o que tornava sua prosa particularmente divertida”, comenta.
Entre as Crônicas singulares, estão os desenhos de Raul Pederneiras (que reproduzimos nesta página), a correspondência de Luís da Câmara Cascudo, relatos sobre a Amazônia e os sambas de Sinhô. “José Barbosa da Silva, o Sinhô, narrava a vida dos sambistas cariocas e das classes populares do Rio no início do século 20. Era época em que os compositores pegavam o que se cantarolava nos botequins e apenas surgia a noção de autoria na música popular”, informa Sidney Chalhoub. “Esses autores, mesmo distantes do mundo das belas letras, tratavam a seu modo de interagir com o tempo a partir de sua produção, utilizando códigos de escrita próprios que devem ser decifrados pelo pesquisador”, complementa Leonardo Pereira.
Miudezas Literárias
Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a cousa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
(Machado de Assis)
Quando me jogo numa arquibancada, nos apertões de um estádio cheio, ponho-me a observar, a ver, a escutar. E vejo e escuto muita coisa viva, vejo e escuto o povo em plena criação.
(José Lins do Rego)
O que sinto é morar numa terra onde só se pode conseguir alguma coisa com muito reclamo. Aqui tudo se resume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. Um indivíduo que é burro fala em voz alta, de papo, grita, diz asneiras e às vezes chega a fazer figura diante de outros que são mais burros do que ele. Um animal que tem algum talento afeta uma atitude ultra-humana, quase divina não conversa: prega; não dá opinião sobre coisa nenhuma: afirma, assevera, pontifica. É dogmático e é intolerante. Não admite que se diga nada que vá contrariar suas doutrinas. É como os padres da Igreja. Enfim tudo reclamo.
(Graciliano Ramos)
Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, se não pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha. (...) Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse simpático animal.
(Lima Barreto)
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