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| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 375 - 8 a 14 de outubro de 2007
Leia nesta edição
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Trajetória de Sérgio Porto
Agricultura familiar
Cooperativismo na indústria
Outras lógicas
Déficit de ferro em bebês
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Câncer e agrotóxicos
Violência doméstica
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'Muitos ainda não despertaram do sono dogmático de uma filosofia tradicional'

ÁLVARO KASSAB

 Itala DOttaviano: Questões relativas à fundamentação da matemática e das ciências não podem prescindir de uma cuidadosa análise epistemológica (Fotos: Antônio Scarpinetti/Divulgação)JU – Qual o sentido, hoje, de um órgão interdisciplinar que se dedique a questões de natureza lógico-filosófica?

Itala D’Ottaviano – As universidades têm reconhecido, cada vez mais, a necessidade e relevância da retomada da interdisciplinaridade. A Unicamp, em particular, foi pioneira, na década de 80, com a criação de seus centros e núcleos interdisciplinares de pesquisa, os quais têm desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa interdisciplinar brasileira e latino-americana.

Nesse contexto, um órgão interdisciplinar que se dedique a questões de natureza lógico-epistemológica é de fundamental importância: novas teorias, novas abordagens e metodologias para a análise de problemas, e novas perspectivas se descortinam para suas áreas de atuação, garantindo que um centro de investigação como o CLE se mantenha como um fórum privilegiado para a discussão dessas questões.

Newton da Costa: O verdadeiro scholar, aquele que cria novas ciências e dirige novas linhas de pesquisas, é fundamentalmente um filósofoNewton da Costa – Um dos aspectos importantíssimos do CLE é a sua busca pela interdisciplinaridade. Isso é absolutamente fundamental, por uma razão muito simples: as diversas ciências – vou citar, por exemplo, a lógica – têm hoje um desenvolvimento tão grande que não existe pessoa que seja capaz de acompanhá-las.

Na minha opinião, para se fazer filosofia da lógica – ou a filosofia da física, que é um negócio mais complicado – é preciso que haja a colaboração de um físico, de um lógico, de um filósofo. Uma única pessoa não pode abarcar todos os aspectos. Nos últimos anos, por exemplo, tenho trabalhado muito em fundamentos da Física e sempre conto com auxílio de filósofos da ciência e de físicos, especialmente.

A interdisciplinaridade, portanto, não é apenas uma coisa a ser almejada. Na minha opinião, sem ela, não se fará nada em filosofia da ciência, em epistemologia e na compreensão da ciência no seu todo.

Oswaldo Porchat Pereira – A existência e o desenvolvimento de tais órgãos são sempre extremamente necessários. Isso porque, infelizmente, se encontra ainda muita resistência no meio filosófico brasileiro, por parte de certas pessoas e grupos, aos estudos de lógica, de filosofia da lógica e de filosofia da ciência. O CLE abriu um caminho, mas uma longa estrada tem ainda de ser percorrida.

Ubiratan D’Ambrósio – A atribuição da responsabilidade das ciências no desenvolvimento tecnológico inadequado e no desacerto do modelo econômico prevalecente vem ganhando intensidade. Há, inclusive, indícios de demonização das ciências. Não é a primeira vez que isso ocorre na história.

Mais do que uma posição defensiva, é necessário uma análise, na verdade uma autocrítica da ciência, a partir de uma reflexão sobre a essência do conhecimento. Em particular à sua geração, sua organização intelectual e social, e sua transmissão e difusão. Essa análise é, essencialmente, o objeto da lógica, da epistemologia e da história.

JU – A lógica é vista muitas vezes como uma ciência abstrata. Entretanto, sua aplicabilidade é ampla, embora desconhecida pela maioria das pessoas. Qual a sua importância no mundo contemporâneo?

Itala D’Ottaviano – Até o final do século XIX, a lógica era uma disciplina eminentemente filosófica. Importantes questões relativas aos fundamentos da matemática, a criação da teoria de conjuntos, a formalização da lógica clássica aristotélica, entre outros fatores, caracterizaram a lógica como uma disciplina matemática, a lógica matemática. A utilização de métodos matemáticos em seu estudo e desenvolvimento constitui uma das marcas da lógica contemporânea.

Com o desenvolvimento de suas várias áreas de atuação, em particular com a criação das lógicas não-clássicas – área em que a Escola Brasileira de Lógica e, em particular, os pesquisadores do CLE são referência internacional –, é muito difícil caracterizar a lógica contemporânea como filosofia ou matemática, o que na verdade não é relevante para o seu desenvolvimento e aplicações.

Além de servir de base e fundamento para as ciências dedutivas e para a ciência em geral, como é o caso da mecânica quântica, a lógica tem importantes aplicações na teoria dos sistemas ou sistêmica, teoria das probabilidades, teoria de circuitos elétricos, em inteligência artificial, ciência da computação, lingüística, teoria do direito e nas ciências cognitivas, entre outras.

A informática e a computação, quase nascidas da lógica, fazem extenso uso da mesma, no que concerne por exemplo à recursividade de funções, complexidade, linguagens formais e de programação, bases de dados, processos, redes, etc; e promovem permanentemente seu desenvolvimento, com o desafio de novos problemas e idéias.

É interessante também citar aplicações recentes da lógica em tecnologia, como é o caso, por exemplo, de aplicações de lógicas polivalentes, lógicas fuzzy e lógicas paraconsistentes em transmissão de informações por satélites, circuitos elétricos, máquinas “inteligentes” e controle de tráfego aéreo.

Newton da Costa – Há muitos anos, o filósofo norte-americano Willard Quine disse que a lógica era o denominador comum das ciências especiais. Eu acrescentaria que é também da filosofia e da tecnologia. Hoje em dia, a lógica encontrou aplicações nas mais variadas áreas. Ela se desenvolveu tanto, no nosso tempo, que não é nem sombra do que era há um século.

A lógica encontra hoje as aplicações mais surpreendentes. Certos tipos de lógica, por exemplo, têm sido usados para o controle do tráfego aéreo. Ela é usada também para o controle de semáforos em grandes cidades, em inteligência artificial e em cérebros eletrônicos – não é possível, por exemplo, haver computação sem lógica. Em resumo, a lógica encontrou as mais variadas aplicações, desde as abstratas – em matemática, por exemplo – até nas coisas absolutamente concretas.

Costumo citar um exemplo interessante: hoje em dia, quando aparece um vírus no computador, a pessoa pode se indagar se não haveria um programa que destruísse qualquer tipo de vírus. Pois bem: existe uma parte da lógica, a teoria da redução, em que se prova que isso não é possível – cada família de vírus necessita de um programa específico. Trata-se de um resultado prático extraordinariamente importante.

Oswaldo Porchat Pereira – Muitos ainda não despertaram do sono dogmático de uma filosofia tradicional que se recusa a reconhecer o impacto dos estudos de lógica e de filosofia da lógica sobre o pensamento contemporâneo. Autores da importância de um Frege, um Bertrand Russell, um Quine – para citar apenas uns poucos nomes–, que influenciaram extraordinariamente o panorama filosófico do século XX, são absurdamente ignorados em muitos cursos de filosofia. Os estudantes de muitos cursos nada ou quase nada ouvem sobre eles.

Temas importantes, que amplamente se discutem no cenário filosófico mundial, muitas vezes nem são mencionados nas salas de aula. Aqui e ali se tem, no entanto, em nosso país, desenvolvido uma salutar reação. Newton da Costa no campo da lógica, assim como Luiz Henrique Lopes dos Santos, Luiz Carlos Pereira e Osvaldo Chateaubriand no campo da filosofia da lógica, entre muitos outros, têm dado uma importantíssima contribuição, com seus trabalhos e atividade docente e institucional, para que se reverta aquele triste estado de coisas.

Ubiratan D’Ambrósio – Acho uma certa ingenuidade falar em ciência abstrata, bem como ciência pura. Embora não explicitado, está se pensando em antonímias: ciência abstrata versus ciência concreta, ciência pura versus ciência aplicada.

A reflexão a seguir, um parêntese, é pessoal e não se aplica ao contexto acadêmico no qual se situa o CLE, mas acho conveniente esclarecer que vejo ciência, no seu sentido amplo, como uma reunião de explicações, de descrições, de entendimentos, de maneiras de saber e fazer, estruturada e formalizada, mas não necessariamente segundo os padrões dominantes de validação e de rigor de uma cultura. Em outras palavras, vejo o conhecimento como transcultural e transdisciplinar. Fecho o parêntese dessa reflexão, e situo-me na cultura que prevalece no mundo acadêmico no qual se situa o CLE.

A ciência é, por sua natureza, abstrata e pura. Parte de primeiras noções, idealizadas e organizadas segundo normas. Não entrarei na discussão sobre como as noções são idealizadas nem como as normas são acordadas. O corpus de enunciados e narrativas, os mentefatos, que assim resulta, é abstrato, mas se torna conveniente como um sistema de explicações, de descrições, de maneiras de fazer sobre o material, sobre artefatos. A aplicabilidade depende da maneira como se dá a passagem de mentefatos para artefatos.

A lógica não difere. Como todo conhecimento, encontra sua aplicabilidade no cotidiano. No mundo moderno, estruturado de acordo com obediência a delimitações de espaço e tempo, e a normas e regras, e a um sistema de valores, todos resultantes da lógica clássica. Desvios e opções a essa obediência, sujeitas a punições (de natureza diversa) podem, no entanto, ser validados por outros modos de pensar, ou, num abuso de linguagem, por outras lógicas.

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