“Apesar dos avanços no conhecimento da doença, pesquisadores e mídia devem ter cuidado para não transmitir aos pais a idéia de que a cura já existe”, solicita Maria Júlia, antes de discorrer sobre sua linha de pesquisa no Departamento de Anatomia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. O mesmo cuidado é seguido à risca por importantes revistas científicas da área, atentas ao uso de termos dúbios nos artigos que publicam.
A docente do IB e seus alunos de pós-graduação usam como modelo experimental o camundongo “mdx” (sigla em inglês para distrofia muscular com mutação no cromossomo X). O animal apresenta mutação genética espontânea e é utilizado mundialmente para estudos das distrofinopatias.
Descrita por pesquisadores ingleses em 1984, esta linhagem apresenta degeneração muscular e falta de distrofina uma proteína da fibra muscular ausente também em pacientes distróficos.
Maria Júlia ressalta que o animal não reproduz exatamente a distrofia muscular de Duchenne. Ele apresenta a degeneração muscular no início da vida, mas há uma regeneração das fibras na fase adulta, o que este modelo experimental interessante para o estudo das distrofias. “Só quando idoso, com 1 ou 2 anos de idade, nota-se predomínio da degeneração e fibrose muscular, tornando-o mais próximo da distrofia humana”.
Segundo a docente do IB, o mdx é importante em pesquisas sobre o papel da distrofina nos fenômenos de degeneração e regeneração muscular. “A utilização de terapias genéticas, celulares e farmacológicas no animal, nos fornece dados que podem ser significativos para o desenvolvimento de futuras terapias para a doença humana”.
A herança A forma mais comum e severa de distrofia muscular humana foi descrita pelo neurologista francês Guillaume Duchenne, em 1861. A distrofia muscular de Duchenne é determinada por uma mutação no gene da distrofina, situado no cromossomo X. A criança, depois de começar a andar, vai apresentar dificuldade para correr e subir escadas, instabilidade na marcha e tendência a cair.
Para se compreender os fenômenos biológicos da distrofia, o leigo deve saber que a fibra muscular é envolta por uma membrana, o sarcolema. Na distrofia, o sarcolema é instável devido à falta da distrofina e das proteínas a ela associadas. Com o uso normal do músculo, acredita-se que o sarcolema sofra pequenas rupturas, implicando em morte (necrose) da fibra muscular.
No início da doença, as fibras musculares do paciente também se regeneram. Porém, com o passar do tempo, a necrose das fibras musculares se sobrepõe à regeneração e o músculo vai sendo substituído por tecido fibroadiposo. A progressão da doença leva o paciente à cadeira de rodas entre os 8 e os 12 anos, e ao óbito por falência cardio-respiratória em torno dos 20 anos.
Progresso Desde a descrição do paciente com distrofia muscular feita por Duchenne, houve grande avanço no conhecimento das moléculas que compõem o sarcolema das fibras musculares. Inúmeras delas já foram relacionadas e, de acordo com a molécula ausente, associa-se um tipo de distrofia muscular no caso da de Duchenne, a distrofina.
“Os resultados obtidos com o camundongo mdx contribuem de forma significativa para este avanço”, assegura Maria Júlia Marques. O modelo animal viabilizou a hipótese aceita atualmente, em que a ocorrência de micro-rupturas no sarcolema favorece o aumento da entrada de cálcio na fibra muscular, provocando a sua necrose. “Em qualquer célula, a concentração de cálcio em grande quantidade é nociva”.
A professora explica que a fibra muscular possui mecanismos para tamponar excessos de cálcio, o que evita a sua necrose. “Os estudos com o mdx permitiram conhecer, por exemplo, a interação dos canais de cálcio da fibra distrófica com as demais proteínas do complexo distrofina-glicoproteínas, tais como as sintrofinas, que parecem desempenhar papel regulador desses canais”.
Terapêuticas Ao entrar na seara das terapêuticas possíveis, a pesquisadora da Unicamp realça, novamente, que os resultados obtidos com o modelo animal não se reproduzem, necessariamente, no paciente humano. Lembra que os mecanismos da distrofia muscular no organismo humano são mais complexos e que a terapia gênica é incipiente. “Podemos sugerir estudos com o aumento da expressão de certas proteínas que talvez protejam a fibra muscular”.
A docente do IB informa que terapias farmacológicas também são estudadas no mdx. “Em geral, são utilizados antiinflamatórios, agentes anti-oxidantes, doadores de óxido nítrico e inibidores de cálcio. Todas essas pesquisas oferecem novos dados sobre outros fatores que contribuem para a degeneração da fibra, como por exemplo, o envolvimento de células inflamatórias e de radicais livres”.
Atualmente com três alunas de doutorado, três de mestrado, duas de iniciação científica e a colaboração de outros docentes, a pesquisadora segue estudando os mecanismos das distrofinopatias, levantando novas hipóteses e publicando trabalhos que possam ser utilizados por outros grupos para desvendar a distrofia muscular.
As nuances da doença
no foco do microscópio
A junção neuromuscular, local em que se dá a comunicação entre os nervos e os músculos, sempre foi objeto de estudo de Maria Júlia Marques. Quando retornou do pós-doutorado nos Estados Unidos, em 1995, a professora se interessou pelo camundongo mdx por causa da alteração no sarcolema. “Queria saber como era a junção neuromuscular do animal”.
Maria Júlia inaugurava assim a linha de pesquisa que coordena no Departamento de Anatomia do Instituto de Biologia, que tem como uma das ferramentas a microscopia confocal. O equipamento permite realizar cortes ópticos no músculo, sendo que as estruturas de interesse são evidenciadas com marcadores fluorescentes.
Na tela do computador, a pesquisadora vai mostrando e explicando as imagens das fibras musculares e das moléculas que compõem a junção neuromuscular, e como elas se modificam na fibra muscular distrófica. “Trabalhos que realizamos permitem sugerir que a falta de distrofina não explica as alterações observadas na junção neuromuscular. A regeneração muscular tem papel importante para determinar essas alterações”.
O grupo de Maria Júlia volta-se agora aos músculos usados para mover o globo ocular (extra-oculares) no camundongo distrófico, que não se degeneram, embora não expressem a distrofina. “Saber por que esses músculos são protegidos o que ocorre também no paciente é motivo de pesquisa mundial. Entendendo esses mecanismos, talvez seja possível proteger as fibras afetadas por meio de terapias gênicas”.
O grupo do IB endossou uma das hipóteses da literatura, segundo a qual estes músculos teriam melhor capacidade para tamponar o excesso de cálcio da fibra muscular distrófica. “Demonstramos que os músculos extra-oculares têm expressão aumentada de proteínas que ligam o cálcio, o que não ocorre em músculos afetados. Adicionalmente, verificamos que os extra-oculares possuem aumento de utrofina e beta-distroglicana, proteínas do complexo distrofino-glicoproteínas, o que poderia explicar a sua proteção”.
A utrofina é uma molécula semelhante à distrofina. “Uma das terapias no camundongo mdx, utilizada por alguns grupos de pesquisa no exterior, é promover o aumento da utrofina a fim de se compensar a falta da distrofina, o que parece impedir a degeneração muscular.”
Maria Júlia e seu grupo também estudam os músculos intrínsecos da laringe do camundongo distrófico, que apresentam muitas semelhanças com os extra-oculares. “São músculos pequenos e estudamos os principais. A maioria está protegida, ou seja, não apresenta degeneração muscular. Isto oferece outro modelo para estudar os mecanismos de proteção. Foi o primeiro trabalho publicado sobre este assunto, na Muscle & Nerve, agora em 2007”.