A sobrevivência dos povos indígenas e a preservação de suas culturas dependem apenas de seu confinamento em terras demarcadas? Não é o que pensa a antropóloga e pesquisadora Regina Polo Muller, que há mais de 30 anos estuda e trabalha junto aos assurinis do Xingu.
A especialista caminha na direção contrária da opinião corrente. Regina entende que, depois do contato, se inicia uma transformação sem volta na cultura das comunidades indígenas. “O convívio com o branco e sua respectiva influência tornam-se inevitáveis”, afirma Regina, que defende uma nova forma de preservar valores éticos e culturais e de garantir a subsistência digna dessas comunidades.
Ao longo dessas três décadas, a pesquisadora conviveu com o perigo de extinção dos assurinis, vitimados por doenças. Acompanhou a morte sucessiva dos mais velhos, além do risco constante da perda dos valores éticos e culturais por parte das novas gerações, cada vez mais identificadas com o mundo não-índio.
Daí surgiu a idéia de juntar fotos, filmes, vídeos e áudios, produzidos principalmente entre 1976 e 1982, reunindo-os em uma coleção de DVDs e CDs que, inseridos nos currículos das escolas assurinis, constituam subsídios para que os jovens possam aprender com a cultura e principalmente com a arte de seu povo.
A coleção foi digitalizada com financiamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e sua implantação nas escolas assurinis envolve projeto financiado pelo CNPq.
Todo o material coletado estava acumulado. São objetos, gravações de músicas e de vídeos. Fotografias registram rituais, danças, posturas corporais e cenas do cotidiano. Documentam também a construção da casa, as tecnologias de tecelagem, de confecção de banco e de cerâmicas, além das pinturas corporais e de objetos.
“Achei que destiná-lo a museus fosse o melhor. A minha esperança é que eles o assumam”, diz a antropóloga, que observa que os assurinis se recuperaram demograficamente, venceram as doenças, se reproduziram, mas muitos velhos e homens maduros morreram. “Hoje, mais da metade da população é jovem e infantil, tem menos de 20 anos, o que conduz a uma relação de negação e de confronto entre gerações, agravada pelo fato do jovem estar voltado para o mundo não-índio, principalmente na Amazônia”.
Regina se emociona quando lembra os desencantos vividos nesses mais de 30 anos dedicados aos índios. Os obstáculos, porém, não foram suficientes para que ela desistisse. A antropóloga constata que o trabalho foi sempre difícil, principalmente hoje. “Jovens e crianças são criados em uma sociedade permeada pelo não-índio, cuja postura sugere diuturnamente que ‘isso era do tempo do índio bravo’”.
Paradoxalmente, observa Regina, o branco distante da problemática do índio o idealiza e considera que índio bom é índio puro, segregado. A docente defende que a tecnologia pode ajudar as novas gerações a dar continuidade à sua cultura, não como antes, mas em novo contexto, que se revela inevitável.
Considera as sociedades indígenas vivas e em constantes transformações, como quaisquer outras, e em condições de capacitar suas novas gerações a equilibrar a tradição com a tecnologia, desenvolvendo uma relação de respeito e de igualdade com as sociedades não-índias.
A especialista entende, ainda, que se a pesquisa acadêmica possibilita uma reflexão crítica sobre a problemática indígena, reafirma, paralela e igualmente, a importância do retorno desse conhecimento como subsídio para a comunidade estudada, através, por exemplo, da escola indígena. Com isso, no seu entender, cria-se a possibilidade dos jovens se envolverem com a cultura e a visão ética do seu povo.
Professora de antropologia no curso de dança do Instituto de Artes da Unicamp (IA), Regina teve intensa convivência com os assurinis de 1976 a 1982, época em que desenvolveu sua tese de doutorado de que se originou o livro Os Asuriní do Xingu: história e arte (Editora da Unicamp).
No trabalho, a autora procurou entender o momento histórico desse povo que, de mais ou menos cem pessoas na época do contato, estava reduzido a 52 em 1982, devido a doenças como tuberculose, pneumonia e gripe, o que ocorreu durante a sua pesquisa.
Durante e depois dos estudos, a antropóloga se envolveu em projeto de recuperação do grupo, que tinha como objetivos o controle das doenças, a garantia de condições mínimas de saúde e a demarcação do território em uma época em que poucas terras indígenas tinham sido delimitadas.
Desde então, buscou alternativas que permitissem aos assurinis a relação com o novo mundo em que se encontravam, porque considera inevitável e sem volta as transformações que ocorrem na organização social e na estrutura econômica, além de incontroláveis as novas necessidades daí advindas.
Já no final dos anos 70, Regina estava preocupada em descobrir formas desse povo sobreviver que possibilitassem a reafirmação da sua organização social, dos seus valores e da sua cultura e que, ao mesmo tempo, promovessem as relações de convivência no ambiente social e econômico com o não-índio. A saída que vislumbrou foi a comercialização da arte indígena.
A docente considera que esta forma de sustentabilidade preserva a autonomia política e social, reafirma a cultura e garante sua transmissão pelas gerações, possibilitando aos índios uma atividade adequada, desvinculada dos brancos e que não os transformem em mão-de-obra barata e miserável como normalmente ocorre , mas que os levem à condição de artistas com produções valorizadas.
Arte e educação Para as sociedades indígenas, explica Regina, a arte não constitui um campo autônomo, à parte de outras dimensões da vida social, a exemplo do que ocorre na sociedade contemporânea, na qual existe um espaço institucional em que o artista é um indivíduo dedicado à criação.
Entre os povos indígenas, a arte permeia a educação, as relações, estabelece hierarquias. Por meio dela, são transmitidos o conhecimento e os valores. “A arte é a experiência de vida”, enfatiza. “Nessas organizações sociais, a arte não está à parte dos principais assuntos, ela é o assunto. Minha tese diz isso: os assurinis constituem um povo que se estrutura e se fundamenta na estética”.
Nessa sociedade, reforça a especialista, a arte se manifesta no cotidiano, na religião, na organização social e permeia todas as esferas da vida social. Os conhecimentos se perpetuam através do fazer artístico, da experiência estética manifesta através da flauta, das músicas, das danças, dos desenhos, da postura corporal etc.
“Esse é o entendimento que temos da arte indígena”, diz a docente. Entre os objetos de arte e manifestações artísticas, Regina cita a cestaria, a cerâmica, a tecelagem, o banco de mogno, rituais, músicas e danças.
Regina destaca também nesse povo as relações humanas de respeito, que sugerem a existência de uma etiqueta de comportamento. A delicadeza no trato é acompanhada de um grande espírito de humor que se revela nas mais simples e variadas situações.
Outra questão que coloca é o respeito às crianças. Até uma certa idade, ela é a coqueluche da tribo recebe o que há de melhor. Até os dois anos, permanece no colo da mãe e todas as mulheres do grupo doméstico se responsabilizam por ela. “É educada sem repressão, sem lhe tolherem a liberdade. É simplesmente cuidada”, destaca.
O trabalho A antropóloga explica que o kit destinado aos assurinis foi organizado para ser utilizado nas escolas, inserido na grade curricular. Adotou-se uma tecnologia moderna como forma de possibilitar a reafirmação dos valores estéticos, fundamentais nessas sociedades. “E isso não vale apenas para povos indígenas. Aposto e acredito que a tecnologia é fundamental na transmissão desses valores”.
De posse do acervo cultural e artístico que lhe está sendo passado, a pesquisadora espera que os próprios assurinis decidam o que desejam. Considera que o mais importante e lhes permitir o acesso a esse patrimônio, porque muitas das peças deixaram de ser feitas e muitas das técnicas deixaram de ser usadas.
Regina afirma que se propôs a esse trabalho, que vem sendo conduzido com a cooperação dos pesquisadores Fabíola Andréa Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Eduardo Néspoli, Alice Martins Villela Pinto e Rafael Franco Coelho, além de contar com o apoio da Secretaria de Educação, Cultura e Desportos de Altamira, no baixo-médio Xingu, onde se situa a terra indígena.