É esta história que o jornalista Paulo Cesar Nascimento conta no recém-lançado “Crônica de um Sonho: 40 anos do Instituto de Química da Unicamp”, livro comemorativo aos 40 anos da unidade. Numa linguagem saborosa, quase romanceada, o autor conduz com maestria uma viagem no tempo, resgatando personagens, cenários, situações, e fatos que marcaram a fase de implantação e consolidação do IQ. “O livro tem alma”, comemora o diretor do Instituto, Ronaldo Pilli, principal incentivador do trabalho. “Há algum tempo estávamos preocupados em resgatar a história inicial do IQ, mas queríamos algo com estilo jornalístico”, conta.
Em suas 221 páginas, o que não falta é “tempero”. Sem fugir à verdade dos fatos nem perder a sobriedade jornalística, o autor primou pelo tom literário, descrevendo cenas e personagens, relacionando detalhes e reconstituindo diálogos. “Isso não teria sido possível sem o apoio da direção do IQ, que me deu total liberdade para escrever”, conta o jornalista.
Foram exatos sete meses de trabalho. Nesse período, Nascimento registrou treze depoimentos em mais de vinte horas de gravação. Ouviu docentes, funcionários e familiares dos pioneiros já falecidos. Só a transcrição das fitas consumiu cerca de 350 páginas. O autor também percorreu arquivos históricos, dentro e fora da Unicamp, para levantar documentos e imagens relacionadas aos primórdios do Instituto.
“As únicas fotos do prédio alugado que abrigou o IQ no início das atividades, por exemplo, só foram encontradas no Museu da Imagem e do Som (MIS) de Campinas”, conta. Ele destaca, ainda, o acervo do Arquivo Central da Unicamp (Siarq). “Encontrei farta documentação que me auxiliou a reconstituir episódios e até diálogos”. Foi através de uma gravação guardada pelo Siarq, por exemplo, que Nascimento pode descrever o tom de voz e o sotaque italiano do primeiro diretor do IQ, Giuseppe Cilento.
Cilento, aliás, ganhou um capítulo à parte no livro, juntamente com seu braço direito e um dos pilares do IQ no início das atividades, o professor Jayr Campello. “Eram personalidades diferentes, mas que se completavam”, descreve o atual diretor do Instituto. Segundo Pilli, ambos tiveram clareza em buscar corpo docente de qualidade, oferecer condições de trabalho e fazer o sonho virar realidade.
“Criador da fotobioquímica sem luz e pesquisador de reputação mundial que chegou a ser cogitado para o Prêmio Nobel de Química, o introvertido Cilento chancelava os projetos do Instituto com seu talento e prestígio científico, cabendo ao dinâmico e inquieto Jayr a missão de empreendê-los, o que realizava com energia e dedicação incomuns”, escreveu o autor no capítulo dedicado aos dois pioneiros.
“Foi uma verdadeira saga”, resume Nascimento, relembrando a dedicação dos pioneiros para superar as dificuldades e consolidar o sonho. “Eram pessoas completamente abnegadas, que não economizavam tempo e energia para garantir os bons resultados”, diz. O jornalista ficou impressionado, por exemplo, com a criatividade de professores como Aécio Pereira Chagas e Cláudio Airoldi. “Eles chegavam a construir equipamentos para realizar as pesquisas”.
Para a diretora associada do IQ, Heloise de Oliveira Pastores, a humanização dos personagens e a reconstituição de suas trajetórias é um dos diferenciais do livro. “Não é apenas um livro sobre o IQ, mas sobre as pessoas que passaram por aqui”, diz ela. “Boa parte dos professores, funcionários e estudantes que atuam hoje no Instituto desconhecem os detalhes dessa história, que resultaram no legado deixado pelos pioneiros”, diz Pilli ao analisar a importância do trabalho.
Segundo ele, o livro também interessa à sociedade como um todo. “Os resultados mostram que os recursos públicos aplicados no IQ serviram para transformar a instituição num dos pólos de excelência em química no Brasil e na América Latina”. Não é exagero. Funcionando 24 horas por dia, todos os dias do ano, o Instituto tem a maior produção científica per capita em química no Brasil. Seus pesquisadores publicam 4,5% artigos por ano em revistas indexadas, contra a média 2,3% no país.
Desenvolvendo cerca de quarenta linhas de pesquisa, o IQ tornou-se líder nacional em algumas áreas, como biocombustíveis, materiais, nanotecnologia, química analítica e síntese orgânica. “Atualmente estamos consolidando um grupo para atuar na área de química biológica, que é mundialmente reconhecida como prioritária”, explica o diretor. Unidade também é campeã em registro e licenciamento de patentes. Só nos últimos dez anos, foram registradas 201 patentes, das quais 21 já estão licenciadas.
Grande parte das patentes evidenciam a posição de vanguarda do IQ. Na década de 1980, por exemplo, quando ainda não se falava em biodiesel, o professor Ulf Schuchardt, hoje aposentado, escrevia um capítulo importante na história do desenvolvimento científico e tecnológico nacional, ao estruturar a tecnologia que resultaria no combustível.
Depois dele, outros inventos ganharam destaque nacional e internacional. Um deles é o Biphor, pigmento branco desenvolvido em 2005 pelo pesquisador Fernando Galembeck, a partir de nanopartículas de fosfato de alumínio, um feito tão extraordinário que promete revolucionar o mercado mundial de tintas à base de água.
Os resultados não deixam dúvida quanto à excelência das atividades, mas Pilli diz que ainda há muito por fazer. “Do ponto de vista acadêmico, precisamos buscar maior inserção internacional. “Temos de olhar particularmente para a formação dos estudantes e prepará-los tanto para a vida acadêmica quanto para o setor empresarial, pois a economia só vai avançar se tivermos inovação tecnológica”, completa. “ Temos de olhar para o que acontece no cenário mundial e tirar proveito das nossas vantagens estratégicas”, defende. Isso , porém, é assunto para os próximos capítulos da história do IQ.
Trecho
“Alto, esguio, de fala pausada e ainda levemente marcada por um peculiar sotaque que revelava a origem italiana, Cilento considerava a pesquisa quase como um sacerdócio. Apaixonado por seu ofício, argumentava que o cientista tinha de abrir mão de muitas coisas em nome de suas hipóteses. Por isso, era integralmente dedicado ao trabalho de pesquisa e considerava natural passar horas a fio no laboratório. Chegava a admitir que não tinha capacidade e habilidade para executar qualquer outra tarefa que não fosse a atividade científica. Ao ser abordado por Zeferino, impôs uma condição: aceitaria o convite de organizar o Instituto, mas não se desligaria da universidade paulistana. O reitor consentiu.
A minha inclinação sempre foi para a pesquisa, atividade que desenvolvi toda no Instituto de Química da USP. E embora tivesse uma certa ojeriza em relação a funções administrativas, aceitei com entusiasmo a missão de criar um Instituto de bom nível dentro da realidade e das possibilidades que tínhamos confidenciou Cilento em entrevista a Eloi José da Silva Lima, do
Arquivo Central da Unicamp (Siarq), em abril de 1989”.