O trabalho da pesquisadora, apresentado ao programa de pós-graduação em História Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, concentrou-se na cidade de São Paulo, no período compreendido pelos anos de 1765 a 1822. Durante a investigação, Alessandra valeu-se de fontes como listas nominativas de população [equivalentes ao atual censo demográfico], testamentos, inventários, processos, cartas de adoção etc, sendo que alguns desses documentos pertencem a acervos mantidos em arquivos portugueses.
O material foi analisado pela historiadora com o objetivo de identificar a presença de filhos alheios nos lares da cidade, assim como analisar as diferentes formas de incorporação sócio-familiar das crianças e jovens. De acordo com essa análise, a historiadora concluiu que a prática do acolhimento domiciliar e da criação de filhos alheios menores de 25 anos era particularmente importante para órfãos pobres e expostos, como eram denominadas à época as crianças abandonadas.
Em 1765, por exemplo, Alessandra identificou que 11,7% dos domicílios situados no que era a área urbana da cidade de São Paulo acolhiam os também chamados enjeitados. Em bairros rurais situados nos limites do município, esse índice era de 3,9%. No período de 1765 a 1822, conforme a pesquisadora, 29,5% dos acolhidos nos lares paulistanos eram crianças e jovens expostos. Ocorre, porém, que esses indivíduos não eram os únicos alcançados por essa prática sociocultural. A eles também se juntavam órfãos, afilhados, sobrinhos e aprendizes, sendo que muitos deles eram bebês. Esse dado é importante, sustenta a autora do trabalho, porque ajuda a confrontar a tese segundo a qual a principal motivação da adoção ou acolhimento era de ordem financeira.
Ou seja, alguns autores acreditam que boa parte dessas crianças era acolhida com a finalidade de ser transformada mais tarde em mão-de-obra barata. “Penso que isso não correspondia totalmente à realidade, pois naquela época a taxa de mortalidade infantil era muito alta. Assim, adotar ou criar um bebê alheio com esse objetivo era um projeto arriscado, pois não havia qualquer garantia de que o acolhido sobreviveria para compensar o investimento com trabalho”, analisa Alessandra. De acordo com ela, embora a motivação financeira possa ter existido, outras também devem ser consideradas, como princípios de solidariedade, tradição familiar, laços de parentesco e orientação religiosa. “A complexidade dessa prática nos leva a crer que ela não estava voltada somente à infância desvalida. Tudo indica que se tratava de um sistema mais amplo, cujo cerne envolvia responsabilidades em torno da criação e educação infanto-juvenil”.
Justamente por ser complexa e envolver inúmeros aspectos, a criação de filhos alheios também proporcionava o estabelecimento de diferentes relações entre acolhedores e acolhidos, segundo a historiadora. Enquanto alguns eram tratados como agregados, outros mereciam a qualificação de afilhados ou filhos de criação. Outros, ainda, eram considerados como filhos adotivos ou adotados formalmente, tornando-se dessa forma herdeiros universais de eventuais bens. Um caso emblemático nesse sentido é relatado na tese de Alessandra. Em 1765, o casal formado pelo capitão mor Manoel de Oliveira Cardozo, um dos homens mais ricos da cidade de São Paulo, e dona Manoela Angélica de Castro acolheu o exposto José Joaquim, de apenas 5 anos.
Este foi enviado ao Rio de Janeiro e depois para Coimbra para realizar seus estudos. Além dele, o casal também criou os enjeitados Francisco, Patrício, Joaquim José e mais um sobrinho de 15 anos. Em 1781, dona Manoela redigiu seu testamento nomeando o “amado esposo” como herdeiro dos bens. O sobrinho e os expostos Joaquim José, Francisco e Patrício receberam legados em iguais proporções. Ao se referir a eles, a mulher omitiu quaisquer relações de parentesco e de assistência, declarando-os apenas como seus “filhos adotivos”. José Joaquim, por seu lado, também foi nomeado “filho adotivo”, mas recebeu um tratamento diferenciado no testamento, sendo elevado à condição de herdeiro universal dos bens de dona Manoela em caso de morte do marido.
Anos depois, em 1795, o ex-capitão Manoel, já viúvo e agora mestre de campo, é mencionado nas listas nominativas de população como chefe do domicílio, no qual o ex-exposto José Joaquim, então com 32 anos, é nomeado “doutor” e “filho”. Dois de seus quatro “irmãos adotivos”, Joaquim José e Patrício, também estavam na residência, mas na condição de simples agregados. “Essa é uma evidência da diversidade de relações entre acolhedores e acolhidos. Embora todos tivessem sido nomeados ‘filhos adotivos’ no testamento de Dona Manoela de Castro, eles não receberam o mesmo tratamento”, afirma Alessandra, que foi orientada pela professora Leila Mezan Algranti e contou com bolsa de estudo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Atualidade De acordo com a autora da tese, o costume de criar filhos alheios não foi uma exclusividade do período colonial. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil contava em 1996 com 49,5 milhões de crianças e adolescentes na faixa de 0 a 15 anos. Desses, aproximadamente 5 milhões viviam longe dos pais. “Essas crianças e jovens participam de um sistema denominado pela antropóloga Claudia Fonseca de ‘circulação de crianças’ ”.
“Tal parcela da população engloba filhos de criação e adotivos, crianças e jovens ‘de rua’ e ‘na rua’ e aqueles que vivem em instituições de assistência pública”, explica Alessandra. A respeito dos serviços oferecidos pelo poder público, a historiadora lembra que a primeira instituição criada nesse sentido na cidade de São Paulo surgiu em 1825, sob a denominação de Casa de Órfãos e Expostos, administrada pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia. Em toda a Colônia portuguesa na América, apenas as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife contavam com esse tipo de instituição à época da independência.
Família que ‘resgatar’ filho terá recompensa
Na véspera do último Dia da Criança, 11 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou um programa voltado à reinserção familiar de crianças que vivem em abrigos destinados a vítimas de violência. Para estimular a iniciativa, o governo federal pagará, a partir de 2008, em cota única, R$ 1,5 mil às famílias que “resgatarem” seus filhos dessas unidades de atendimento. A medida faz parte de um pacote idealizado pela União para enfrentar a violência cometida contra crianças e adolescentes. Um dos objetivos da medida é reduzir o ritmo de encarceramento de adolescentes infratores.
A identificação das famílias passíveis de receber o dinheiro será feita por meio de um censo encomendado ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O governo pretende exigir contrapartidas ao pagamento, mas os critérios ainda não foram definidos. De acordo com estimativas da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, algo como 24% das 120 mil crianças que vivem atualmente em abrigos foram levadas para essas instituições em virtude da pobreza das famílias.
Ao mesmo tempo, dados da própria Secretaria mostram que praticamente quadruplicou o número de adolescentes internados por prática de violência entre 1996 e 2006. Conforme divulgou a imprensa recentemente, hoje faltariam 3 mil vagas no sistema e haveria mais de 600 adolescentes mantidos em cadeias públicas. A intenção do governo é agir para que o internamento seja uma prática excepcional e transitória.