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Publicada pelo Centro de Memória, obra é resultado
de pesquisas feitas para tese de doutorado

Livro dá voz aos mapuche do Chile

LUIZ SUGIMOTO

Elba Guillermina Soto Veloso, autora do livro:" Espero levar uma contribuição para o avanço na interlocução entre os mapuche e os chilenos" (Foto:Antoninho Perri/Divulgação)Mapu significa terra e che, pessoa. Os mapuche são pessoas da terra. Suas terras iam do Chile à região de Buenos Aires. Na sua viagem por terra ao Brasil, a chilena Elba Guillermina Soto Veloso identificou denominações mapuche em placas indicativas até as proximidades da cidade gaúcha de Uruguaiana. "Com a criação das repúblicas do Chile e da Argentina, passamos a ser um povo separado em dois países. Não somos mais considerados uma nação".

Antropologia e análise do
discurso embasam a obra

Elba Soto fala dos mapuche na primeira pessoa do singular e do plural. Explica que seu povo dá muita importância à palavra, mas que isso não implica ser ouvido e compreendido pelos chilenos. Por isso, ela decidiu buscar a força da palavra na academia.

Elba Guillermina Soto Veloso, autora do livro: "Espero levar uma contribuição para o avanço na interlocução entre os mapuche e os chilenos" (Foto:Divulgação/Antoninho Perri)Depois de sete anos na Unicamp, onde obteve o doutorado pela Faculdade de Educação (FE) e o pós-doutorado pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Elba Soto voltou à terra natal. Na mochila, seu livro Sonhos e lutas dos mapuche do Chile, publicado pelo Centro de Memória da Unicamp e a Editora Arte Escrita.

"A idéia do livro é dar voz aos mapuche. Tentei mostrar a nossa versão da história no contato com os winka (os espanhóis e depois os chilenos). É uma história que os chilenos não conhecem, embora tudo o que lemos seja a interpretação dos outros sobre o que seríamos. Espero levar uma contribuição para o avanço na interlocução entre os mapuche e os chilenos", afirmava a autora dias antes do retorno.

Ela percebeu a falta de conhecimento dos winka sobre os mapuche quando ainda trabalhava como agrônoma em comunidades indígenas e camponesas. Logo, tornou-se crítica do pragmatismo dos projetos de desenvolvimento do Estado, que aposta exclusivamente na geração de recursos econômicos como forma de suprir as necessidades de comunidades que apresentam realidades diferentes. "Os projetos fracassam porque não fazem sentido para nós".

Elba Guillermina Soto Veloso, autora do livro: "Espero levar uma contribuição para o avanço na interlocução entre os mapuche e os chilenos" (Foto:Divulgação/Antoninho Perri)Durante seu mestrado em desenvolvimento rural, Elba Soto defendeu a prioridade de ouvir as comunidades indígenas e camponesas para que os projetos atingissem seus objetivos. No entanto, algo mais a incomodava. "Mesmo nos discursos aparentemente melhor intencionados, o sentido das palavras é o de ajudar um povo "primitivo", incapaz de se sustentar".

Segundo a autora, seu povo rejeita a definição de "índio" justamente por causa da carga preconceituosa que o termo carrega na América e no mundo. Lembra que os mapuche ostentam uma história de séculos de luta para preservar a sua filosofia de vida e uma cultura simbolizada no mapudungum, que é falado até hoje, apesar da imposição da língua oficial.

Para escrever o livro, Elba Soto muniu-se de ferramentas da sociologia, filosofia, antropologia e lingüística. Assim, numa ótica transdisciplinar, ela criou uma metodologia baseada na antropologia e na análise de discurso que permitisse mostrar como são os mapuche – o pensamento, a espiritualidade, a organização, as lutas sociais e as especificidades da língua. Interpretou o discurso dos mapuche para que eles sejam reconhecidos pelos chilenos.

A autora é grata à professora Suzy Maria Lagazzi-Rodrigues, do IEL, pelo apoio na caminhada e pelo alerta contra o uso de um discurso militante que poderia diluir o valor do seu trabalho acadêmico. O resultado é uma obra densa, que mostra porque a lógica ocidental de desenvolvimento não cabe no pensamento mapuche.

Séculos de luta – "Os mapuche nãoCenas do cotidiano mapuche: povo rejeita a definição de "índio" em razão da carga preconceituosa que o termo carrega (Foto:Divulgação/Antoninho Perri) seguem a lógica das hegemonias, em que uns dominam e outros se submetem. As pessoas tendem a pensar que o mundo sempre se organizou sob esta ótica, o poder em torno das hegemonias – que hoje vivemos no sistema capitalista. Meu povo submete-se a Deus (Ngünechen), mas não a outras pessoas", explica Elba Soto.

Vem daí a capacidade de resistência dos mapuche, primeiro diante das investidas dos incas e depois dos espanhóis, durante séculos. "Sempre fomos à guerra para nos defender, nunca tentamos dominar um povo. Havendo tantos grupos diferentes na humanidade, defendemos a idéia de buscar espaços para coexistir".

No mapudungum sequer existe a palavra "chefe". Os mapuche organizavam-se em agrupamentos de comunidades em torno do número nove – considerado poderoso – e tem os seus lonkos (que não são chefes e sim os guias). "Nos parlamentos [negociações], a ausência de um chefe único representava uma grande dificuldade para os espanhóis, que eram obrigados a convencer muitos lonkos".

Entre guerras e parlamentos, os espanhóis avançaram por várias vezes sobre as terras do sul, chegando a fundar cidades, algumas destruídas pelos mapuche. O período mais Cenas do cotidiano mapuche: povo rejeita a definição de "índio" em razão da carga preconceituosa que o termo carrega (Foto:Divulgação/Antoninho Perri)doloroso, porém, começaria com criação da república do Chile, em 1810. "A Espanha reconhecia os mapuche como nação e, passado longo tempo de tentativas de conquista e resistência, chegou-se a estabelecer uma fronteira. Depois da independência, essa fronteira acabou".

De acordo com Elba Soto, o governo republicano procurou "chilenizar" os mapuche, incorporando-os como indivíduos a pretexto de fundar uma nação de irmãos, onde todos seriam iguais. "O conceito da unidade na igualdade era então disseminado na América Latina. Somente nos dias atuais passamos a trabalhar com o conceito da unidade na diversidade".

A "pacificação"– Os primeiros anos de república foram de calmaria, mas a partir de 1859 o governo chileno declarou uma guerra violenta, com investidas para nacionalizar seu território mapuche. Houve uma aliançaCenas do cotidiano mapuche: povo rejeita a definição de "índio" em razão da carga preconceituosa que o termo carrega (Foto:Divulgação/Antoninho Perri) entre o Chile – que acionou a campanha pela "pacificação da Araucania" – e a Argentina – com sua "guerra do deserto".

Abrindo parênteses, a autora explica que até recentemente não se falava nos mapuche em seu país, apenas em araucanos. "Arauco vem de ragko, região argilosa. Os espanhóis entenderam ragko como arauco e, desde então, nós viramos araucanos".

Segundo Elba Soto, o governo chileno incitou a pior das guerras, enviando uma laia de marginais que adquiriam a posse do gado e de outras riquezas que conseguissem tomar em território mapuche. "Estão vivas na memória do meu povo as queimadas dos cultivos e das pessoas trancadas em suas casas. Foi um aniquilamento".

Perdida a guerra em 1881, os mapuche foram oficialmente incorporados à república do Chile e radicados em pequenos espaços distantes das terras férteis. A autora não encontrou registros da população mapuche de antes da guerra e de quantos sobreviveram. Segundo o censo de 1992, eles eram cerca de 1 milhão para um total de 15 milhões de chilenos; em 2002, eram 600 mil.

Elba Soto observa, entretanto, que o povo mapuche não diminuiu. "Entre os critérios utilizados no censo, apenas quem carrCenas do cotidiano mapuche: povo rejeita a definição de “índio” em razão da carga preconceituosa que o termo carrega (Foto:Divulgação/Antoninho Perri)egasse sobrenome indígena ou tivesse nascido em comunidade indígena poderia se declarar como tal. Isso influiu para que quase metade dos mapuche acabasse identificada como de chilenos".

Em tempos de globalização,
a luta continua

Mesmo depois da "pacificação da Araucania", os mapuche nunca aceitaram a perda do seu território e da sua identidade como nação, duas questões fundamentais de uma existência inteira, assim como da cultura que persiste e, dentro dela, o mapudungum. "A autodenominação mapuche só ficou conhecida pela população chilena com as lutas do meu povo nas últimas décadas do século 20", reitera Elba Soto.

A pesquisadora admite que os outros movimentos indígenas nas ACenas do cotidiano mapuche: povo rejeita a definição de “índio” em razão da carga preconceituosa que o termo carrega (Foto:Divulgação/Antoninho Perri)méricas e o próprio processo de globalização – que tem acirrado as diferenças e feito com que muitos povos subjugados ganhem visibilidade – contribuíram para um olhar mais respeitoso aos mapuche por parte de muitos cidadãos chilenos.

"Mas no país ainda prevalece o discurso da unidade na igualdade: que o indígena é mais um chileno. É importante que o mapuche seja identificado como outro e não como igual. Essa alteridade – uma relação em que mapuche e chilenos reconheçam a diversidade – é fundamental para tornar a interlocução possível", observa a autora de Sonhos e lutas dos mapuche do Chile.

Nesse sentido, Elba Soto lembra a história contada pelo antropólogo José Bengoa, sobre a primeira festa da república do Chile, quando todas as damas ligadas ao poder vestiram roupas e jóias das mulheres mapuche. "É difícil para o chileno de hoje imaginar que tínhamos roupas e comidas de qualidade e um bom estiA capa do livrolo de vida. Tendo perdido muito da nossa cultura e riqueza, hoje somos discriminados e vistos como os pobres do país".

Também em relação ao território, a lógica dos mapuche nunca foi compreendida, na opinião de Elba Soto. As terras do seu povo não eram de uso pessoal, cabendo à comunidade decidir onde plantar e onde morar. Esta lógica ainda se manteve na reforma agrária com Allende, mas a ditadura de Pinochet acabou por dividir a terra entre as pessoas da comunidade. "Esta partilha afetou bastante a nossa maneira de pensar e se organizar".

A luta permanente inclui a ocupação de fazendas no território que era dos mapuche, em um esforço reivindicatório sem violência. Como forma de conter o movimento, as lideranças são levadas ao cárcere sob acusação de "atentado contra a segurança nacional" e lá mantidas sem julgamento, por anos. "Isso demonstra a violência com que são tratados os mapuche pelo Estado chileno, que na verdade está a serviço dos grandes empresários tidos oficialmente como os donos da terra".

No seu livro, Elba Soto buscou uma outra forma de compreensão do que os chilenos vêem como "o problema mapuche". "Ele permite perceber uma inter-incompreensão entre o meu povo e os chilenos. A interpretação do discurso mapuche mostra que, para nós, o mapuche não é chileno e o chileno não é mapuche. Para possibilitar o processo de mudança social dos mapuche, é preciso o seu reconhecimento pelos chilenos. Este livro oferece elementos para que isso aconteça".

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