“Este livro é o segundo de uma coleção que a editora intitulou O Ateliê do Artista o primeiro foi Cézanne, escrito por Adrien Goetz, professor da Sorbonne e conhecido romancista. Eu me tranquei em casa de dezembro ao início de março para redigi-lo, normalmente na madrugada, quando minha cabeça funciona melhor”, diz Jorge Coli, crítico e historiador da arte e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
A exigüidade do prazo foi compensada com o conhecimento que Coli acumulou de Courbet e que motivou o convite da Hazon. “Já tenho escrito sobre o pintor e inclusive já havia dado um curso sobre ele na Universidade de Provence, na França. Também dei um outro, de seis meses, na Unicamp, abordando sua obra. Busquei apenas o que havia de novo em termos bibliográficos”.
O projeto apresentado por Jorge Coli e aprovado pela editora resultou em um texto contínuo, com imagens ladeadas por comentários do autor que servem como chaves para interpretação das obras. “Gostei muito do resultado. A impressão das imagens está ótima, sendo que elas não ilustram o texto, o texto é que dá sentido às imagens. É um projeto intelectual e ao mesmo tempo claro”.
O professor da Unicamp oferece uma leitura renovada da obra de Courbet, muitas vezes contestando as principais vertentes interpretativas, sobretudo a que insiste em associar os quadros do artista com a sua militância política. “São vertentes que enriqueceram a visão que se tem de Courbet, mas que não levam a um olhar sobre sua obra”.
Segundo Coli, o pintor era um militante socialista e amigo próximo de Pierre Proudhon, o anarquista que escreveu A Filosofia da Miséria e também A Filosofia da Arte, sobre o próprio Coubert, cuja edição brasileira está sendo preparada pelo historiador. “A militância e a relação com Proudhon levaram a um vício de interpretação da obra do pintor, que também teria de ser socialista, republicana, subversiva”.
O barulhento O crítico de arte ressalta que a obra é muito diferente do artista, um personagem exuberante e barulhento, gordo, que bebia e comia muito, e que morreu inchado pela hidropisia (acúmulo de líquido no corpo). “Ao mesmo tempo, aquele corpo enorme era invasivo. Ele falava muito para se impor no seu círculo, queria todas as atenções”.
Uma citação de Alexandre Dumas, o autor de A Dama das Camélias, que tinha ódio mortal por Courbet, abre o livro: “De que cópula fabulosa de uma lesma e de um pavão, de que antíteses genéticas, de que suor sebáceo pode ter sido gerado essa coisa que se chama senhor Gustave Courbet? Embaixo de que redoma, com a ajuda de qual esterco, em conseqüência de qual mistura de vinho, de cerveja, de mucos corrosivos e de edema flatulento pôde crescer essa abóbora sonora e peluda, esse ventre estético, encarnação do Eu imbecil e impotente?”.
A violência do escrito de Dumas, observa Coli, mostra quão polêmica era a figura de Courbet. “Por outro lado, todos os ataques eram pessoais, corporais, nunca à sua arte. De fato, Courbet virou um símbolo e se tornaria bode expiatório no momento da Comuna, em 1870, sendo preso, processado e morrendo em seu exílio na Suíça. Tudo isso oferece a interpretação tentadora de ver em sua obra os reflexos destes elementos, o que é falso”.
Os camponeses E a série dos camponeses? Diante da pergunta freqüente, Jorge Coli argumenta que Courbet era realmente de uma família de camponeses, mas de proprietários abastados. “São essas pessoas que ele representa na série: camponeses em cenas provincianas, nunca trabalhando, membros de sua família, de seu círculo de amizade, mas que não trazem um mínimo de denúncia social”.
Na opinião do professor, apenas dois quadros apresentam algum traço de um “Courbet social”. Um deles é Os quebradores de pedra, transformado em emblema desta corrente interpretativa. “É uma obra formidável do ponto de vista pictórico, mas não vejo ali trabalhadores de um mundo moderno. Trata-se de uma cena rural, com um velho e um jovem, o que traz a idéia de ciclo de vida que tanto fascinava o artista”.
O segundo quadro que poderia ser associado ao Courbet militante é anticlerical, e por isso chocou o público da época. “Ele sabia organizar sua carreira em cima de escândalos formidáveis”, comenta Jorge Coli. Na tela, um grupo de padres aparentemente bêbados, retornando de uma conferência certamente regada a vinho.
Por coincidência, os dois quadros “sociais” de Courbet desapareceram. Os quebradores de pedra foi destruído num bombardeio ao Museu de Dresden (Alemanha) na Segunda Guerra. A outra obra (dos padres) foi comprada por uma indignada senhora católica decidida a dar-lhe o mesmo fim.
Auto-afirmação - Coli ressalta que a obra de Courbet apresenta, sim, um perfil militante, mas pela afirmação do artista na sociedade moderna. É um aspecto não observado por outros estudiosos. “Naquele momento de transformação, os artistas passavam a contar menos com os velhos mecenas como os reis e a Igreja e o mercado das artes se afirmava como nunca antes”.
De acordo com o professor, embora se pense que os artistas sempre foram completamente livres para criar, a idéia da autonomia nasce somente no século 19. “É uma idéia que se afirma com Courbet e seus auto-retratos, nos quais ele se pinta superior ao público, olhando de cima para baixo”.
Em Bom dia, senhor Courbet, o artista vai se retratar de mochila, cavalete e telas nas costas, diante de um mecenas e seu criado que se curvam, como devotos. Na leitura de Jorge Coli, vê-se um esforço para a instrumentalização da idéia de gênio, que veio ao mundo trazer sua arte elevada.
“Esta idéia é utilizada por outros nomes da arte, como Wagner, Victor Hugo e Rodin. Gaguin pintou um quadro correspondente ao Bom dia de Courbet, que para mim é o criador do território do artista de vanguarda”, afirma o professor.
A meditação Outro aspecto observado somente por Jorge Coli é o convite à meditação. Ele atenta que nos quadros de Courbet não aparecem sinais de modernidade; não há figuração da metrópole industrial, ao passo que a presença da natureza é muito forte. “Há uma meditação sobre a matéria, o tempo, a dimensão geológica, o repouso. É uma pintura extremamente grave, que exige concentração do espectador. É uma pintura silenciosa”.
O historiador associa esta veia da meditação ao da contemplação da mulher, uma figura obsessiva para o pintor. “As mulheres de Courbet geralmente estão dormindo ou digerindo. Tornam-se, por assim dizer, puramente orgânicas. Podem ser olhadas tranquilamente. Uma das questões do século 19 era a ameaça do desejo trazido pelo feminino. Inertes, elas não ameaçam”.
Para Coli, um dos quadros mais belos é O sono, onde duas magníficas mulheres aparecem enlaçadas, dormindo. “É uma tela de grande qualidade, onde as personagens têm praticamente o tamanho natural. Foi comprada por um milionário turco, Khalil Bey, que morava em uma mansão imensa em Paris”.
A radicalização Foi o mesmo milionário que encomendou a Courbet um quadro estranho e surpreendente: A origem do mundo, que representa um órgão sexual feminino. “Parece-me a radicalização deste processo de transformar a mulher em um objeto orgânico, pois ele esconde a cabeça (pensante) e os braços e as pernas (elementos da ação). Vemos a ponta do seio e, sobretudo, o sexo”.
O crítico considera o quadro formidável, de grande investimento pictural. “Além disso, Khalil Bey colocou a pintura em seu banheiro, que deveria ser suntuoso, oculta por uma cortina. Mostrava-a apenas para amigos próximos. Era uma visão confidencial de algo absolutamente proibido”.
O psicanalista Jacques Lacan, último proprietário da obra, fez o mesmo. Pediu ao surrealista André Masson um outro quadro, uma espécie de paisagem estilizando a forma feminina para cobrir A origem do mundo. Lacan colocou a pintura de Courbet em uma edícula fora da casa, revelando-a apenas a privilegiados.
A família do psicanalista doou a obra ao Museu d’Orsay. Jorge Coli lembra que especialistas tentaram aproximar fotografias de prostitutas na mesma posição, mas que as fotos têm sempre algo de sórdido. “As prostitutas se mostram num oferecimento canalha, enquanto a mulher de Courbet repousa e se oferece apenas para o olhar, com uma tranqüilidade que traz novamente uma dimensão meditativa, quase sagrada”.
Ferida amorosa Na vida real, Gustave Coubert separou-se da mãe de seu filho, uma modelo, e teve poucos casos sentimentais. Mas Coli conta o caso extraordinário de O homem ferido, um auto-retrato. “No quadro um tanto romântico, o artista aparece deitado ao lado da espada, como depois de um duelo, ferido no coração. Nos anos 1970, quando se fez uma radiografia da pintura para sua restauração, descobriu-se que no lugar da ferida havia antes uma mulher aninhada nos braços de Courbet”.