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Jornal da Unicamp - Setembro de 2000

Página 12

VERBAS

As vozes do Beija-flor

JACQUES VIELLIARD

Entre todas as aves, os beija-flores são notáveis por várias das suas
características de vida: eles se alimentam do néctar das flores pairando no ar e
são os únicos seres capazes de voar à ré; eles podem enxergar a luz ultravioleta
que sinaliza certas flores; eles apresentam um metabolismo altíssimo, com as
asas batendo num ritmo de até 90 vezes por segundo e o coração de até 2.000
pulsações por minuto; eles precisam ingerir açúcar regularmente para
manterem-se ativos e entram em torpor noturno quando suas reservas energéticas
se esgotam; eles têm um tamanho diminuto, até menos de dois gramas em
algumas espécies, mas um cérebro relativamente grande; eles apresentam
comportamentos extremamente elaborados e uma variedade ímpar de
vocalizações, com uma enorme diversificação entre as espécies.

São aproximadamente 320 espécies da família dos troquilídeos ou beija-flores,
todos vivendo no Novo Mundo, a grande maioria nas regiões tropicais das
Américas, mas também no Alaska e na Patagônia. No Brasil foram registradas
pelo menos 80 espécies, das quais um quinto exclusivas do país, particularmente
Mata Atlântica e campos rupestres do Brasil Central. Fora essas espécies de
distribuição restrita, muitos beija-flores ocupam grandes áreas e alguns executam
amplas migrações.

Um aspecto pouco conhecido da vida dos beija-flores é seu sistema de
comunicação sonora. Apesar de ter uma siringe – o órgão de produção vocal das
aves – simplificada, eles são capazes de emitir uma variedade extrema de
estruturas sonoras. Esses sons são geralmente muito agudos e rápidos, e
portanto pouco percebidos pelo nosso ouvido. O registro dessas vozes requer o
uso de gravadores e microfones de alta sensibilidade e fidelidade.

Pesquisas iniciadas no Brasil em 1973, por mim, com o apoio de Aristides
Pacheco Leão, então presidente da Academia Brasileira de Ciências, e Augusto
Ruschi, fundador do Museu de Biologia Mello Leitão em Santa Teresa (ES) – até
hoje o único centro de estudo dos beija-flores no país –, resultaram no maior
acervo existente sobre as vocalizações dessas aves. Essas gravações incorporam
o Arquivo Sonoro Neotropical no Laboratório de Bioacústica da Unicamp, onde são
analisadas.

Desta maneira, já foi descoberto que espécies de beija-flores são capazes, por
exemplo, de emitir dois sons ao mesmo tempo (fenômeno da "voz dupla" até então
conhecido em poucas aves), variar individualmente a seqüência de notas de seu
canto (modalidade do canto "versátil" até então conhecido somente em sabiás) e
apresentar variações regionais de canto ou "dialetos", indício de aprendizagem. De
fato, como o Homem, certos beija-flores desenvolveram também a característica,
rara entre os animais, de aprender sua "língua", ou seja, eles adquirem seu
repertório vocal por imitação e não por instinto.

A pesquisa aqui resumida e publicada na edição da revista Nature, que circula
desde 10 de agosto, baseou-se na observação de duas espécies de beija-flores da
Mata Atlântica vivendo em liberdade no parque do Museu de Biologia Mello Leitão:
o Balança-rabo-de-bico-torto (Glaucis hirsuta) e o Beija-flor-cinza (Aphantochroa
cirrhochloris). Usando a manifestação de um gene ligado ao comportamento, ficou
evidenciado que eles têm sete estruturas encefálicas distintas que são ativadas
durante o canto; isto representa a primeira demonstração da existência de núcleos
cerebrais controlando a voz de beija-flores.

Essas estruturas são extraordinariamente similares às sete regiões telencefálicas
que estão envolvidas na aprendizagem vocal e na produção de sons em pássaros
canoros e em papagaios, os outros dois únicos grupos de aves conhecidos por
terem cantos aprendidos. Tal similaridade é surpreendente, já que pássaros
canoros, papagaios e beija-flores não são parentes próximos e devem portanto ter
evoluído a aprendizagem vocal e a organização cerebral correspondente de
maneira independente.

A vantagem do Brasil – A publicação de mais este artigo assinado por brasileiros
na Nature confirma que a pesquisa científica realizada no Brasil tem a capacidade
de participar dos avanços de ponta do conhecimento humano. Aliás, o país tem a
vantagem de dispor de uma invejável biodiversidade, o que permite escolher as
espécies mais adequadas ao assunto a ser estudado.

Esta pesquisa só foi possível graças à iniciativa de alguns cientistas de colaborar
livremente entre eles. De um lado, este pesquisador, com o Laboratório de
Bioacústica da Unicamp, onde são arquivados os dados relativos à biodiversidade;
Maria Luísa da Silva, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Neurociências e Comportamento da USP, especializando-se em estruturas
complexas de comunicação sonora; e Dora Ventura, cujo laboratório, no
Departamento de Psicologia Experimental da USP, já obteve resultados notáveis
sobre a visão e o comportamento de alguns beija-flores.

De outro lado, um grupo de pesquisadores da Rockefeller University,
especializados em aprendizagem vocal, que também trocam dados e idéias há
vários anos. Há cerca de dois anos atrás, esses colegas – Erich Jarvis,
norte-americano, Sidarta Ribeiro e Claudio Mello, de nacionalidade brasileira –
anunciaram o domínio de uma nova técnica que permite evidenciar a atividade
cerebral ligada ao canto. Coube aos pesquisadores baseados no Brasil selecionar
as espécies mais promissoras para tentar algum avanço no conhecimento da
aprendizagem em aves.

Assim foi elaborado um projeto cooperativo de pesquisa, que recebeu rapidamente
as autorizações necessárias, sendo executado conjuntamente no Museu de
Biologia Mello Leitão. A redação do trabalho deu-se em Caxambu, quando os
autores se encontraram por ocasião da reunião anual da FeSBE, em agosto de
1999.

O Brasil pode conquistar mais espaço no cenário científico internacional, não
somente por grandes ações temáticas, como os estudos de Genoma ou de Biota,
mas também investindo mais no apoio às iniciativas individuais de cooperação e
às estruturas de registro da biodiversidade. A combinação da riqueza florística e
faunística brasileira com a dinâmica dos seus órgãos de pesquisa representa um
potencial a ser desenvolvido com sucesso.

Jacques Vielliard é professor do Departamento de Zoologia do Instituto de Biologia
(IB) da Unicamp e criador do Laboratório de Bioacústica.


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