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Jornal da Unicamp - Setembro de 2000
Páginas 6 e 7
PESQUISA
O
resgate da Genética para todos
Em
pesquisa de fôlego, médica da Unicamp recupera as três
décadas de história do Serviço de Genética Clínica,
o primeiro do gênero no Brasil, e reorganiza arquivos
que guardam o drama de pacientes com malformações
congênitas
CARLOS
LEMES PEREIRA
Aos olhos
do público e da própria comunidade científica, a
recente revolução na
biologia molecular, enunciada pelo mapeamento do genoma
humano, disparou
holofotes intensos o suficiente até para ofuscar, mas de
forma nenhuma extinguir o
persistente facho da "lanterna" que guia as
aplicações clínicas da Genética. Esse
é o desafio que Andréa Trevas Maciel Guerra, chefe do
Laboratório de Citogenética
Humana do Departamento de Genética Médica da FCM,
assumiu e transformou
num projeto, com fôlego para alavancar a área de ensino
e propiciar parcerias
interdisciplinares. "Enquanto as grandes
potencialidades ainda estão restritas aos
trabalhos experimentais, temos que continuar
aperfeiçoando o atendimento direto
a casos que nos chegam todos os dias, na forma crua e
urgente dos dramas
familiares", define a pesquisadora.
Essa empreitada, de revigorar a "Genética para
todos", começou há um ano e
meio. Munida de um financiamento de R$ 63.393,00 da
Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e de sua
experiência profissional de
18 anos, Andréa encarou a revisão e informatização
dos arquivos do Serviço de
Genética Clínica (SGC) da Unicamp. E ela não poderia
escolher melhor terreno
para o esforço "arqueológico": trata-se nada
menos do que o primeiro ambulatório
do gênero do Brasil, cuja fundação, há três
décadas, "se confunde com a própria
história da Genética Clínica no nosso país",
como ressalta a médica. De um
acervo de 11 mil registros de casos, 7,8 mil prontuários
completos serviram para
montar o perfil da prática clínica no SGC até o
momento.
Na árdua missão de revirar a papelada, a pesquisadora
confessa ter se
maravilhado ao poder acompanhar o passo a passo da
Genética Clínica no Brasil:
"Os arquivos se estendem dos primeiros diagnósticos
clínicos e citogenéticos da
síndrome de Down ao diagnóstico molecular preditivo das
doenças neurológicas
degenerativas, como se faz hoje".
Longe de imaginar um fosso que separe essa vertente e a
pesquisa de ponta, a
geneticista salienta que o clínico usa cada vez mais
instrumentais da biologia
molecular. Andréa, inclusive, contribui atualmente para
o levantamento da
prevalência da surdez genética no País, que está
sendo realizado pelo Centro de
Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da
Unicamp. Apesar disso,
ela não deixa de identificar o atendimento clínico como
mais direcionado ao que
chama de "uma parcela significativa da
população". Ou seja: "Portadores de
malformações congênitas isoladas ou múltiplas,
indivíduos com ambigüidade
genital, deficientes mentais, auditivos e visuais,
portadores das mais diversas
doenças de origem genética, casais consangüíneos, ou
que tiveram filhos com
malformações congênitas, ou ainda casais com abortos
repetidos ou aqueles que
desejam submeter-se a diagnóstico pré-natal".
Espera de meio século Está mais do que indicado
que o Projeto Genoma
oferece à ciência, teoricamente, meios para decifrar os
mecanismos moleculares
de todas as doenças e, assim, apontar formas eficientes
de prevenção e combate,
seja o câncer, a síndrome de Down, os males de
Parkinson e de Alzheimer, ou até
a Aids. Só que os próprios pesquisadores envolvidos
admitem que, até
entenderem a função de cada gene e como se dá sua
interação, tais resultados
maravilhosos poderão demorar meio século.
Eis aí uma projeção que, por mais esperanças que
pairem no ar, não permite que
uma médica de índole inquieta como Andréa se dê ao
luxo de ficar de braços
cruzados. O fator tempo, aliás, chega a ser perverso
para ela que, no início dos
anos 90, acompanhou um dramático caso de Progeria.
Popularmente conhecido
como envelhecimento precoce, é um mal genético raro, a
ponto de o SGC ter
apenas dois registros ao longo de suas três décadas de
existência. "Era um
menino que chegou às minhas mãos com nove anos de
idade. Mas aparentava 90.
E tinha as dimensões físicas de um bebê de nove meses.
Apesar disso tudo, era
extremamente meigo e inteligente, e totalmente consciente
de sua situação.
Morreu aos 12 anos, de infarto do miocárdio",
conta, mostrando, comovida, a foto
do paciente.
Motivos que levam casais a buscar ajuda
Diagnósticos diversos (na maior parte, de doenças
raras) - 37,7%
Anomalias congênitas múltiplas Consangüinidade - 18,3
Defeitos de fusão de tubo neural (inclui anencefalia) -
10,6%
Síndrome de Down - 7,5%
Filhos natimortos - 3,8%
Hidrocefalia - 2,3%
Cardiopatia congênita - 2,2%
Freqüência dos casos atendidos no SGC
Anomalias congênitas e/ou retardamento neuromotor/mental
(na maioria, doenças
raras), cujos diagnósticos puderam ser firmados 47,2%
Síndrome de Down 13,3%
Retardamento neuropsicomotor de origem indefinida 8,2%
Anomalias congênitas múltiplas de origem indefinida
8,1%
Casais que procuram por aconselhamento genético 7,6%
Ambigüidade sexual 3,5%
Surdez 2,5%
Síndrome de Turner 2,4%
Deficiência mental de origem indefinida 2,2%
Abortamento habitual 2,1%
Baixa estatura 1,9%
Autismo 1,0%
O "canto da sereia" e o gênio de
estômago fraco
O "canto de sereia" dos megalaboratórios é
determinante para a febre que a
biologia molecular anda desencadeando entre jovens
pesquisadores, seja pela
perspectiva da carreira em si, ou da rentabilidade. Isso,
Andréa não nega. Porém,
ela enumera outros fatores que contribuem para afastar
determinados profissionais
da prática clínica em Genética.
"Nem todos são talhados para agüentar a carga de
ansiedade que representa
tratar diretamente com famílias atormentadas pelo fato
de possuir um integrante
portador de anomalia. Às vezes, é mais simples receber
um frasco com sangue e
começar o trabalho de um ponto de vista impessoal",
observa.
Recentemente, a médica teve uma oportunidade até
divertida de firmar essa
opinião. "Durante um simpósio em Angra dos Reis,
estávamos magnetizados pela
performance de um famoso teórico norte-americano, numa
abordagem sobre
esterilidade masculina", lembra. "Mas foi só
eu começar a exibir, slides de casos
clínicos para ele passar mal a ponto de ter que se
retirar", conclui, divertida e
preservando eticamente a identidade do gênio de
estômago fraco.
Papa da Genética A festa internacional em torno
do anúncio do seqüenciamento
do genoma vem dominando o noticiário do planeta desde o
último dia 26 de julho,
com discursos ufanistas de estadistas do Primeiro Mundo e
a rivalidade cada vez
mais indisfarçável entre a empresa norte-americana
Celera e o consórcio público
internacional Genoma Humano. Já Andréa e a enxuta
equipe do SGC (seis
docentes e uma residente) terão que esperar até abril
do ano que vem para
comemorar o sucesso do seu projeto. "É quando
planejamos promover na
Unicamp a jornada dos 30 anos do SGC", situa a
médica.
O aniversário, na verdade, transcorreu em março
último. Mas nem por isso ela se
ressente pela comemoração tardia. Afinal, está
prevista a participação no evento
do cientista norte-americano John Opitz, uma das maiores
autoridades mundiais
em Genética Clínica. O mesmo que destacou, nesse atual
avanço tecnológico, o
papel fundamental de "uma humanidade sofredora,
vitimada por milhares de
afecções diferentes, mais ou menos incapacitantes,
desfigurantes, dolorosas e
freqüentemente letais, com base nas quais os cientistas
fizeram suas numerosas
descobertas. (...) Essas contribuições, não planejadas
e involuntárias, para nossa
instrução e para a teoria e prática da Genética
Clínica, deveriam despertar sempre
nossa gratidão e levar-nos a tratar essas pessoas com a
dignidade e respeito que
merecem, além de incentivar-nos a buscar estratégias
preventivas cada vez mais
eficazes." Gratidão que Andréa e seu time estão
sabendo demonstrar muito bem.
Clientes mostram desinformação e constrangimento
Outro fator que incentiva a médica Andréa Guerra a
priorizar a área clínica é o alto
índice de desinformação dos pacientes e dos
familiares, geralmente oriundos das
camadas sócio-econômicas mais carentes. Ela lembra que
há seis anos resolveu
incrementar o procedimento de triagem com as
investigações sobre a origem da
decisão de recorrer a uma unidade de Genética e sobre o
tipo de expectativa que
os pacientes ou as famílias alimentavam em relação ao
atendimento. "Os
resultados foram desalentadores", desabafa.
Segundo ela, 94% dos pacientes chegaram não por
iniciativa própria, mas por
encaminhamento médico. E 44% não tinham a menor noção
sobre o que esperar
do serviço. A médica também se surpreendeu com o fato
de 12% acreditarem
estar ali para algum tratamento específico, ou até
mesmo com perspectiva
imediata de "cura". O SGC não oferece
tratamento diretamente; a função da
unidade é prognosticar os casos e encaminhar para
especialistas.
"O grande objetivo da avaliação clínica feita
pelo geneticista é, na maioria dos
casos, o diagnóstico da origem do problema: se
não-genética ou genética e,
nesse último caso, se hereditária ou não". E
acrescenta Andréa: "a conduta
também é diferente: ao invés de uma receita médica,
envolve principalmente o
estabelecimento de um prognóstico em nível individual,
a estimativa do risco de
repetição do problema na família e a realização do
aconselhamento genético, um
processo muito mais complexo que a mera apresentação
desse risco em termos
numéricos".
Grito de socorro A postura mais
"pé-no-chão" que, se pressupõe,
caracterizaria
a rotina clínica na Genética, não impede que os
profissionais sejam confrontados
com os mesmos "mistérios" que tanto fascinam
os chamados pesquisadores de
ponta. A revisão do arquivo do SGC mostrou que, sob a
genérica catalogação de
"outros", alinha-se uma maioria de casos de
doenças raras. Dos 7,8 mil
prontuários, foram checados 158 diagnósticos diferentes
nesse sentido (veja
quadro).
Em outro extremo, a modernização do acervo serve
também para desmistificar a
suposta raridade de determinadas anomalias genéticas. A
incidência de
ambigüidade genital (o chamado intersexo), por exemplo,
é de 3,5%, acima dos
estudos de baixa estatura (1,9%) e até do autismo (1%).
"A impressão de raridade
deve-se muito à tendência das famílias de esconder os
casos, por
constrangimento", observa Andréa.
A fonte dos prontuários sobre intersexo ou hipogonadismo
(funcionamento
insuficiente dos testículos ou ovários a partir da
adolescência) é o ambulatório do
Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e
Diferenciação do Sexo. Entre
as causas de hipogonadismo estão duas síndromes
decorrentes de problemas
cromossômicos, as de Turner e Klinefelter. Outros
ambulatórios de especialidades
contribuem para o acervo, mas a maior parcela é
fornecida pelos ambulatórios
gerais (69% dos prontuários).
Muito antes de a equipe de Andréa tirar a poeira das
pilhas de documentos,
sabia-se do alto grau de influência da consangüinidade
em anomalias genéticas. A
normatização do arquivo confirmou: o fator desponta em
terceiro lugar no ranking
(17,6%). Mas a cientista ressalta: "Com a nova
dinâmica de trabalho que estamos
conquistando, serão facilitados estudos mais
aprofundados, inclusive de campo".
Os endereços potenciais desse tipo de pesquisa, adianta
Andréa, são o interior de
Minas Gerais e os estados do Nordeste, onde os casamentos
consangüíneos
persistem em quantidade considerável.
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