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Jornal da Unicamp - Setembro de 2000

Página 9

HUMANAS

Globalização e práticas sociais

Estudiosos discutem novas condições para a produção do conhecimento

ANTONIO ROBERTO FAVA

Foram cinco dias de discussões, análises, debates e conferências com os mais
renomados estudiosos nas áreas das ciências humanas. Objetivo: traçar uma
perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano. Convocada pela Socyety
for Socio-Cultural Studies, a III Conferência de Perspectiva Sócio-Cultural — Novas
Condições de Produção do Conhecimento: Globalização e Práticas Sociais,
realizada no Centro de Convenções e salas de aulas da Faculdade de Educação
(FE) da Unicamp, reuniu 800 participantes, 200 ouvintes e 600 pesquisadores
brasileiros e estrangeiros de 36 países. Foram mais de 70 horas de trabalho.

A temática da condição humana no mundo moderno permitiu o intercâmbio de
idéias em torno das investigações relacionadas às ciências humanas. Além disso,
o encontro se propôs a promover troca de conhecimentos históricos e culturais
sobre diferentes formas de pensar e de trabalhar as pesquisas voltadas a questões
atuais como globalização e pós-modernidade.

Segundo a professora Ana Luiza Smolka, da FE, organizadora da conferência, o
evento centrou-se na questão da linguagem, da cultura e do conhecimento,
"embora tantos outros temas tenham sido tratados". O que reuniu os
pesquisadores nesse encontro científico foram os fundamentos de uma psicologia
instituída no início do século, a partir de uma ótica materialista-histórica formulada
pelos psicólogos Vygotski, Luria e Leontiev. "A raiz dessa III Conferência está,
teoricamente, na psicologia, embora não se restrinja a ela e articule várias áreas
de conhecimentos como a antropologia, a filosofia, a literatura, a lingüística e a
medicina".

Os trabalhos apresentados pelos participantes tiveram basicamente dois eixos
temáticos: a produção de conhecimentos e a elaboração da cultura, destacando
as análises das condições de vida dos indivíduos e as possibilidades de
transformação dessas mesmas condições. "É nesse sentido que se dá a
intervenção educacional de um povo", salienta a pesquisadora da Unicamp. A
transformação de uma sociedade, em seus mais diversos sentidos, pode ocorrer
tanto dentro da escola como fora dela. O que está acontecendo, não apenas no
Brasil mas em todo o mundo, é a emergência de muitos instrumentos técnicos e
novos modos e relações — mídia, programas econômicos, as relações de trabalho
— que vão interferindo e afetando o próprio processo educativo.

Definindo prioridades — "A exemplo da escola, essa transformação se verifica na
análise de como agem os professores com relação à produção do conhecimento e
da cultura, como e o que ensinam", explica Ana Luiza. Por outro lado, observa que
quando se coloca em um mesmo evento, como esse da Unicamp, pesquisadores
de 36 nações, certamente eles vão apresentar estudos ou análises diferenciadas
sobre o que está acontecendo em seus respectivos países. "Verifica-se que
aparecem tônicas ou questões mais urgentes do que aquelas tematizadas. Por
exemplo, na Escandinávia ou na Iugoslávia a questão de valores e relações
familiares estão sendo muito estudadas".

A imigração de asiáticos para os países nórdicos e a guerra na Iugoslávia também
vão se constituindo em objetos de pesquisa. Curiosamente, foram poucos os
trabalhos apresentados na conferência que tratavam da questão básica do ensino
da língua e da alfabetização. Refletindo sobre a produção de conhecimento no
Brasil, Ana Luiza menciona, entre outros aspectos, as dificuldades com relação à
definição de políticas e prioridades — econômicas e educacionais — do país. Por
exemplo, a política do governo tem sido de reduzir a verba destinada ao
desenvolvimento de pesquisas nas universidades. Quando isso acontece,
acaba-se privilegiando outras formas de produção, ameaçando seriamente as
condições internas de geração de conhecimentos, sobretudo na área das ciências
humanas.

Novos desafios para as ciências humanas e as artes

Vive-se num mundo onde tipos e mitos são transformados em modelos para a
realização pessoal do ser humano, que moldam sua maneira de ser e povoam seu
imaginário. São elementos que podem servir de exemplo para a prática de novas
formas de educação e, consequentemente, para o desenvolvimento de idéias que
permitam construir outras formas de sociedade.

"Esta reflexão sobre tipos e mitos do mundo moderno, além de revelar diferentes
configurações e movimentos do passado, permite esclarecer o que se pensa e se
realiza no presente. Mas: tal reflexão pode sugerir formas de imaginário e de agir
do futuro", afirmou o professor e filósofo Octávio Ianni, do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, durante a III Conferência de Pesquisa
Sócio-Cultural.

Para Ianni, a história da modernidade registra um "desenvolvimento notável" das
ciências sociais, da filosofia e das artes. Ele lembrou que Max Weber, um dos
fundadores da sociologia e considerado o maior opositor da idéia do determinismo
econômico imposto pelo marxismo, apontou as idéias filosóficas e religiosas como
fundamentais para o desenvolvimento econômico das sociedades. Filho de um
abastado comerciante e grande teórico da burocracia, Weber escreveu A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, vinculando o surgimento do capitalismo
aos valores difundidos pela ética protestante, como a racionalização econômica e
o sentido da poupança.

"Podemos dizer que a filosofia, a ciência e as artes são linguagens por meio das
quais se desenvolvem várias formas de esclarecimentos. Verifica-se a marcha de
um processo fascinante de desencantamento do mundo, que teve seu início na
antigüidade, passou por várias civilizações e que se intensificou cada vez mais até
os dias de hoje", afirma Ianni. "Quem, entre nós, não está lutando com os
fantasmas da modernidade, seja contra ou a favor?", questionou.

Novas descobertas — O filósofo recorda a grande ruptura histórica e
epistemológica provocada pelo iluminismo – corrente que estimulava a luta da
razão e do progresso contra a superstição e a teologia, da luz contra as trevas.
Ruptura esta que resultou na revolução industrial e em considerável transformação
no mundo. As primeiras manifestações ocorreram na Inglaterra e na Holanda, e
convulsionaram particularmente a França, com a oposição às injustiças sociais, à
intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo do século 18, já então em
processo de decadência.

Octávio Ianni ressalta a importante ruptura histórica e epistemológica ocorrida no
século seguinte. Histórica porque o mundo acabou dividido entre as grandes
potências, pela expansão e desenvolvimento intensivo do imperialismo; e
epistemológica porque foi naquele contexto que se colocou em discussão as
conquistas do iluminismo na filosofia, nas ciências sociais, nas artes e nas
ciências em geral.

"Estou convencido de que, nesse momento, estamos vivendo a mesma situação,
ainda que muitos façam de conta que nada de importante esteja acontecendo, que
se tenha a impressão de que tudo está no mesmo lugar. Na verdade, estão se
criando desafios para as ciências, para a filosofia e para as artes. Desafios de
todos os tipos, que exigem novas descobertas, novas maneiras de raciocínio e
uma reflexão sobre a situação em que a sociedade se encontra hoje", ressaltou
Ianni.


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