Tecnologia que desperta fúria O
discurso político de quem é contra e a argumentação
técnica de q uem defende a transgenia
O
terceiro milênio havia acabado de chegar. Mas a fúria que destruiu
parte da plantação de soja transgênica da Monsanto, em Gouveia
(RS), desencadeada por lavradores insuflados por José Bové
líder camponês da França que teve uma tumultuada passagem
pelo Brasil durante o Fórum Social Mundial invocou as fogueiras
medievais nas quais ardiam os bruxos condenados pela Santa Inquisição.
Mais de meio ano se passara e as chamas da polêmica ainda crepitavam na
mesa de debates da Cientec 2001. Afinal, que tecnologia é essa, capaz de
desencadear posturas tão extremadas? O
frei Sérgio Gorgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores do Rio Grande
do Sul, presente no evento da Unicamp, buscou fundamentar o que resumiu como a
posição dos movimentos populares do campo. E posicionou-se:
Como não temos a grande imprensa nas mãos, chamamos a atenção
criando fatos, que é uma forma de os oprimidos se fazerem ouvir. Arrancamos
só dois hectares, ou seja, algo simbólico. Porém, significante
a ponto de causar, já no dia seguinte, a queda das ações
da Monsanto no mundo todo, que era o que queríamos. Ou seja, queríamos
que a sociedade discutisse a questão com profundidade. Na
Cientec, evidentemente, o teor político das discussões se equalizou
com ponderações técnicas de representantes de setores envolvidos
com a transgenia. Caso de Regina Manzzi Rodrigues, pesquisadora do Instituto Adolfo
Lutz: Sob muito debate no Brasil de dois anos para cá, quando se
sentiu o maior interesse da mídia, as técnicas de engenharia genética
desenvolvidas na década de 1970 possibilitaram grandes avanços na
área da biologia molecular. E foi um marco cientifico quando a ciência
conseguiu combinar genonas de diversos organismos, microorganismos e plantas,
filogeneticamente distantes e, portanto, incompatíveis em termos de cruzamento
natural. Hoje, já são evidentes alguns benefícios, principalmente
na medicina e na área de produção alimentar. Ela, porém,
admite: Persistem controvérsias até no próprio meio
científico. Neoludismo
O jornalista Raimundo Pereira Rodrigues convidou o público a uma
reflexão sobre o fundo ideológico do cenário dos experimentos
de transgenia. Colaborador da revista Caros Amigos e coordenador do site Oficina
de Informações, especializado em divulgação científica,
o jornalista citou artigos internacionais comentando o fato de que a história
da ciência não registra nenhuma outra campanha negativa comparável
à relativa aos transgênicos. Nem contra a energia nuclear,
a despeito desta ter matado muita gente e dos danos atribuíveis aos transgênicos
serem, no geral, hipotéticos. Com
isso, Pereira quis ressaltar que a metodologia que o próprio governo brasileiro
usa para colocar os transgênicos na pauta do dia não provoca um debate
aprofundado, mas polariza posições ideológicas e faz do povo
instrumento de campanhas. Para agravar, o capital financeiro que organiza
o mundo faz uso da informação no melhor estilo de Hearst, o magnata
da imprensa sensacionalista norte-americana. Para ele, nunca perde dinheiro quem
subestima o nível de consciência do povo. As
multinacionais dos transgênicos fazem algo parecido: espalham mentiras.
Insistem, por exemplo, na tese de que a salvação da alimentação
humana está na tecnologia, acrescentou o jornalista. Não
que a chamada revolução verde não tenha significado
inúmeros avanços para a humanidade, mas ela, por si só, não
tira a fome do povo. Isso só ocorrerá com mudanças profundas
das estruturas sociais. Na
visão de Raimundo Pereira, as multis mentem também no seu
campo especifico. Ele exemplificou: Não é verdade que
a semente da Monsanto seja melhor para o solo do Rio Grande do Sul. O valor de
uma semente não se define só pelas suas qualidades específicas.
Creio que o mais relevante para a ciência, hoje, é estudar o solo. Para
Pereira, o debate deve ser depurado de qualquer clima anticientífico,
para que, nas críticas, não se perca de vista os culpados
principais. Ao observar que os ativistas antitransgenia atacam alguns
alvos que estão envolvidos, mas não atacam direito, o jornalista
acha adequado a sua classificação como neoludistas,
numa referência ao movimento ludista, a violenta mas breve revolta de trabalhadores
ingleses liderados por Edward Ludd, no início do século 19, contra
o maquinário que deflagrou a Revolução Industrial, ao mesmo
tempo em que desestruturava o antigo modo de vida europeu. Gente revoltada
com razão, mas que escolhe inimigos errados pra desferir seus golpes,
comparou. Ouro
verde O frei Gorgen retrucou: Já estamos acostumados a
ser acusados de anticientíficos. Mas o que pedimos é, na verdade,
mais ciência. Nos preocupamos com o impacto dessa nova tecnologia na agricultura
familiar e camponesa, mas também com a saúde humana e o meio ambiente.
Achamos que ainda há muitas fragilidades, do ponto de vista científico,
para que esses alimentos sejam colocados no mercado nas proporções
em que isso vem ocorrendo. Até
onde a ciência do DNA recombinante avançou?, questionou o frei.
Até o ponto de se conseguir a inserção, precariamente,
de um gene diferente num outro organismo, por processo de biobalística
ou vetor viral. Em condições que ainda não nos dão
confiança acerca das conseqüências para a natureza e alimentação
humanas. Gorgen
argumentou ainda: Assistimos um enviezamento das pesquisas; elas não
estão sendo mais conduzidas por instituições públicas,
controladas pela sociedade, mas por empresas, que fazem um investimento, conseguem
um resultado e querem colocar o produto o mais rapidamente possível no
mercado, para terem o retorno do capital investido. E isso provoca um curto-circuito
entre a ciência e sua aplicação, que é a tecnologia. Na
opinião do líder camponês, hoje, os transgênicos
estão significando um controle econômico na produção
de alimentos por poucas empresas, numa fabulosa monopolização e
transnacionalização. E trata-se de um controle através de
um dos instrumentos fundamentais da independência do agricultor, que é
a semente. E sentenciou: A semente é patrimônio da humanidade
e não pode ser patenteada. Ele
ressaltou que não é contrário à continuidade das pesquisas,
desde que elas não sirvam de plataforma para uma Monsanto dominar
o riquíssimo patrimônio genético brasileiro. Acusando
a empresa de cobiçar a nossa extraordinária biodiversidade,
o frei concluiu afirmando: Vivemos hoje uma nova corrida do ouro, não
mais o amarelo, mas o verde ---------------------
A
posição da Monsanto
Embora
convidada para participar dos debates, a Monsanto não enviou representante.
O Jornal da Unicamp, porém, procurou a empresa e obteve um posicionamento,
por intermédio de sua assessoria. Para ela, o que estaria acontecendo
na agricultura é uma evolução natural da ciência. A
biotecnologia pode ser considerada uma das grandes conquistas da engenharia genética.
Essa tecnologia teve sua primeira aplicação comercial em 1982, com
a produção de insulina para o tratamento de diabetes. Com
a biotecnologia prossegue a Monsanto é possível
inserir um único gene em uma planta, cuja característica é
conhecida com antecedência, sem que o restante da cadeia de DNA seja alterada,
em um método mais moderno e preciso do melhoramento de plantas. Graças
a essa precisão, o prazo de desenvolvimento de novas variedades é
menor e, principalmente, há mais segurança sobre o produto geneticamente
modificado. As
plantas geneticamente modificadas seriam, de uma forma geral, um poderoso
agente de redução do uso de agroquímicos. Por serem tolerantes
a herbicidas e resistentes a pragas, reduzem os efeitos nocivos que o uso excessivo
de agroquímicos pode causar ao ser humano e ao meio ambiente. No cultivo
dessas lavouras, o agricultor consegue controlar plantas daninhas e insetos-pragas
com uma quantidade menor de agroquímicos que a utilizada em culturas convencionais. Com
relação à segurança alimentar, a Monsanto garante
que os produtos passaram por milhares de testes antes de serem aprovados
pelos órgãos regulatórios dos países onde já
foram adotados. A empresa lembra ainda: Estima-se que cerca de 3 bilhões
de pessoas já tenham consumido produtos com soja geneticamente modificada,
sem que tenha sido reportado algum problema de saúde. Por fim,
a Monsanto refuta a possibilidade de que as pesquisas fiquem sob o domínio
de uma multinacional: Só no Brasil há cerca de 130 outras
empresas e várias instituições estatais.
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