Jornal da Unicamp 188 - 2 a 8 de setembro de 2002
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Ilustração: FélixLei de Inovação
já tramita
no Congresso

Projeto cria estímulos ao investimento em P&D na indústria
e flexibiliza a mobilidade de pesquisadores 

CLAYTON LEVY

Recém-enviado ao Congresso Nacional, o projeto de lei para inovação tecnológica, conhecido como Lei de Inovação, nasce com um difícil desafio pela frente: corrigir o equívoc cultural que atribui às universidades toda a responsabilidade pela inovação, enquanto as empresas se limitam a incorporar (quando incorporam), em suas linhas de produção, o resultado, já pronto, do trabalho desenvolvido por cientistas. Em seus 34 artigos, distribuídos em seis capítulos e doze páginas, o texto, assinado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), estabelece mecanismos para tentar inverter o processo e dar condições ao Brasil de seguir a receita há muito adotada por países ricos: fazer com que o processo da inovação tecnológica seja gerado dentro das empresas, com pesquisadores trabalhando na iniciativa privada sem perder o vínculo com a universidade.

Não é uma tarefa fácil. Antes de virar lei, o projeto, anunciado no último dia 15, terá de ser aprovado pelo Congresso, o que o ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardemberg, espera conseguir até novembro. O Governo terá apenas dois meses para convencer os parlamentares e gerar a consciência pública de que inovação tecnológica é uma área tão estratégica quanto, por exemplo, saúde e educação. E aí surge a primeira dificuldade, já que a divulgação do texto não tem sido eficiente. Grande parte dos empresários, pesquisadores e professores interessados no tema afirma não conhecer, ainda, o conteúdo da proposta.

Entre os poucos que a conhecem surgiu, pelo menos, uma dúvida. Como se dará a aplicação da lei nas instituições científicas estaduais, já que o texto refere-se exclusivamente ao sistema federal? Segundo o MCT, o projeto foi redigido nessa forma porque a Constituição veda ao governo federal o poder de legislar sobre instituições estaduais. A saída, de acordo com o MCT, será fazer com que os governos estaduais adotem leis semelhantes, submetendo às assembléias legislativas projetos com os mesmos objetivos propostos no âmbito federal.

Estes objetivos estão expostos no Livro Branco, lançado pelo governo federal na mesma cerimônia em que foi anunciado o projeto de lei para inovação tecnológica. Contendo diretrizes estratégicas de longo prazo para o setor de C&T, o trabalho esclarece o que se pretende com a nova lei. “A proposta contempla novas formas de contratação que favorecem a mobilidade de pesquisadores das instituições públicas de modo a permitir sua atuação em projetos de pesquisa de empresas ou para constituir empresas de base tecnológica (EBT)”. Ou seja: pesquisadores que atuam apenas em universidades públicas também poderão trabalhar na iniciativa privada sem perder o vínculo com as instituições de ensino e pesquisa. Além disso, o pesquisador também poderá licenciar-se da instituição pública e abrir sua própria EBT

Esse, segundo o MCT, é um dos principais pontos da lei, já que, atualmente, 80% dos pesquisadores que trabalham em centros de pesquisa de universidades públicas estão impedidos de também atuar em empresas. O argumento usado pelo governo é que esse quadro constitui um dos fatores que faz o Brasil perder terreno para países em franco desenvolvimento econômico como, por exemplo, a Coréia do Sul. Lá, há 80 mil cientistas trabalhando na iniciativa privada e 15 mil nas universidades. Resultado prático: por ano, o Brasil registra 100 patentes nos Estados Unidos, enquanto a Coréia do Sul registra 3,5 mil.

O projeto também propõe “novas formas de parceria entre o setor público e privado, como a contratação ou encomendas ao setor privado de projetos de desenvolvimento tecnológico”. Isso significa que o Estado passa a ter maior poder de compra para viabilizar projetos de P&D nas empresas nacionais, uma antiga reivindicação das EBTs. Além disso, a proposta, segundo o MCT, também “estabelece regras claras para a comercialização de inovações geradas com a participação de universidades ou instituições públicas de pesquisa, assim como para o respectivo compartilhamento dos direitos de propriedade intelectual entre pesquisadores, instituições de pesquisa e empresas”.

Outro ponto destacado pelo MCT é a autorização para que as empresas possam constituir fundos de investimento, voltados para projetos tecnológicos, já desenvolvidos ou em desenvolvimento. Caberá à Comissão de Valores Mobiliários autorizar, disciplinar e fiscalizar a constituição, o funcionamento e a administração dos fundos mútuos. Outra novidade é a criação de núcleos de inovação tecnológica. Cada instituição poderá manter um núcleo, próprio ou em associação com terceiros, para garantir a gestão de sua política de inovação e de transferência de tecnologia, promovendo a proteção e exploração econômica da propriedade intelectual.

Inspirado na versão francesa de Lei de Inovação, aprovada em julho de 1999, o projeto brasileiro é resultado de uma longa discussão realizada nos últimos dois anos. Só em setembro de 2001, porém, surgiria a primeira proposta de um texto visando a inovação tecnológica, apresentado pelo senador Roberto Freire (PPS-PE) durante a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada em Brasília. O trabalho serviria de base para o MCT incluir o tema em sua agenda, o que foi efetuado através de um trabalho conjunto com os ministérios da Educação e Planejamento. Paralelamente, a matéria foi colocada em consulta pública, recebendo cerca de seis mil contribuições antes de se chegar à versão final, encaminhada dia 15 ao Congresso Nacional.
 
 
Investir mais em P&D, a meta
A experiência bem-sucedida dos países ricos, segundo o governo, demonstra que o caminho para o desenvolvimento econômico e social passa, também, pela eficiência tecnológica. Para o MCT, essa realidade é reforçada pelo exemplo de outros países em desenvolvimento, que estão gerando riqueza a partir do conhecimento alcançado em centros de pesquisa. 

O caso mais citado pelos técnicos do governo é o da Coréia do Sul, que investe 2,5% do PIB em P&D, é um dos campeões de exportações de produtos de alta tecnologia. No Brasil, a situação é bem diferente. O montante investido em P&D não passa de 0,9% do PIB. Pesquisa divulgada no início de agosto pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com a FINEP, revelou dados pouco animadores. Entre as 531 empresas que responderam ao levantamento, realizado em dezembro de 2001, 71% disseram que a principal ação promovida na busca do desenvolvimento tecnológico ainda é a compra de máquinas e equipamentos, enquanto o financiamento é a principal questão para implementação de estratégias nessa área.

Atualmente, quase 80% do que se aplica em pesquisa no Brasil é dinheiro público concentrado em instituições acadêmicas. As universidades brasileiras formam cerca de seis mil doutores por ano. Sua participação em publicações científicas internacionais aumentou de 0,3% para 1,5% desde 1980. Só a Unicamp responde por 15% da produção científica nacional e 6% da América Latina. Boa parte do conhecimento gerado, porém, permanece dentro da própria instituição, sem agregar inovação aosistema produtivo.


 
As principais propostas
Instituições de pesquisa: os produtos e processos inovadores a serem obtidos por instituições de pesquisa vão poder ser adotados por empresas privadas interessadas na produção de bens e serviços. As instituições, no entanto, ficam protegidas por mecanismos eficazes de transferência científica.

Propriedade intelectual: será distribuída entre todas as partes envolvidas nas parcerias. As patentes passarão a ser reconhecidas em avaliações de mérito dos pesquisadores, como ocorre hoje com os artigos de publicações científicas. O projeto também garante ao pesquisador participação nos ganhos econômicos auferidos pela instituição com a exploração de suas criações.

Empresas: poderão compartilhar laboratórios e equipamentos com as instituições públicas de pesquisa, mediante remuneração e, também, formar alianças estratégicas - seja com outras empresas, com instituições de C&T ou com a União. Neste último caso, a União só poderá participar destes empreendimentos se for para a criação de centros considerados de relevante interesse nacional. 

Pesquisadores (os lotados em instituições públicas): poderão receber autorização para afastamento dos cargos, caso queiram colaborar com pesquisas em outras instituições ou empresas. Também poderão tirar licença não remunerada se tiverem interesse em constituir, eles próprios, uma EBT.

Inventores independentes: suas criações poderão ser adotadas por instituições de pesquisa, visando a elaboração de projetos que tenham possibilidade de industrialização ou utilização por parte do setor produtivo.
 


 
Projeto dificilmente será votado este ano, diz deputado
Apesar de o ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardemberg, alimentar esperanças de que a Lei de Inovação seja votada até novembro, antes do recesso parlamentar, as chances disso acontecer são pequenas. O presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia na Câmara Federal, deputado Nárcio Rodrigues (PSDB-MG), adiantou ao Jornal da Unicamp que esse prazo é muito curto. Segundo ele, será difícil analisar a matéria em apenas dois meses.

“Não faremos votação a toque de caixa, em prejuízo do desejo de elaborar uma lei realmente inovadora e que represente um avanço no desenvolvimento tecnológico do País”, afirmou. “Essa é a lei mais importante na pauta da Comissão para esse ano”, completou. Até a última terça-feira, a Comissão, segundo o deputado, ainda não havia recebido o projeto de lei.

Segundo ele, houve um atraso no envio do projeto ao Congresso Nacional. “O Ministério da Ciência e Tecnologia havia prometido nos enviar o texto em março, mas só agora estamos recebendo”, disse o parlamentar. O MCT informou, por meio de sua assessoria, que houve atraso no envio da matéria devido à tramitação do texto. Foram necessárias intensas negociações com os ministérios da Educação e Planejamento antes de se chegar a um consenso quanto à redação final.

Rodrigues disse que a facilidade para aprovação estará ligada ao conteúdo do texto. “Se a lei agradar à maioria dos integrantes da Comissão, há chances de votá-la ainda este ano. De acordo com o parlamentar, porém, dificilmente a lei deixará de receber contribuições. “Não tenho dúvidas de que o parlamento terá grande contribuição a dar, porque na Comissão há grandes autoridades no assunto”, disse. “Não há lei que, por mais completa, não possa ser melhorada”, concluiu.


 
Repercussão
Aruy Marotta
A Lei de Inovação é importante, mas chega atrasada. É como se estivéssemos saindo da idade da pedra para ingressar na era do bronze. No Brasil, universidades e empresas nunca tiveram tradição em cooperação. Quando ocorre a aproximação, a iniciativa parte muito mais da academia do que das empresas. Esse processo de intercâmbio ainda é muito incipiente. Muitas vezes, a universidade tem uma solução para a empresa, mas esta simplesmente desconhece. Aliás, as próprias autoridades não têm idéia de que vários projetos levados a cabo nos laboratórios das instituições de pesquisa têm aplicação na indústria. As empresas precisam investir mais em P&D, criando centros de pesquisa próprios. A Coréia do Sul deu um salto de desenvolvimento ao investir fortemente em C&T. Atualmente, a Coréia mantém institutos de pesquisas instalados na Rússia e Bielorrúsia, onde realiza pesquisas com a participação dos melhores cérebros locais.

Aruy Marotta é criador do Laboratório de Plasma Industrial do Instituto de Física "Gleb Wataghin" da Unicamp.

José Ellis Ripper
O sucesso da Lei de Inovação dependerá da importância que o País conferir ao desenvolvimento de tecnologia, ou seja, de produtos inovadores nas empresas. Isso não é competência principal das universidades. Por outro lado, o mercado não fará tudo sozinho. As empresas não farão P&D se não visualizarem vantagem. Como fazem os países desenvolvidos é preciso que o governo crie estímulos para que os empresários, visando seus interesses, façam o que é bom para o País. Uma das alternativas usadas no mundo todo é o governo encomendar projetos de desenvolvimento à iniciativa privada. O sucesso da Embraer é um bom exemplo de que essa estratégia dá certo. O governo contratou o desenvolvimento do Bandeirantes e do Tucano, gerando tecnologia que fez a empresa ficar competitiva internacionalmente. Os Estados Unidos fizeram o mesmo, não só com a Boeing, como na maioria das outras empresas de alta tecnologia”.

José Ellis Ripper, ex-professor da Unicamp, é diretor-presidente da Asga, produtora de componentes eletrônicos. 

Sandra Brisolla
 A lei é oportuna. Em algum momento o quadro econômico vai se alterar. Mas a gente não pode ignorar que nos últimos anos houve um início de sucateamento da capacidade científica das universidades públicas do país. Os recursos destinados a essa atividade caíram, assim como o salário real dos docentes. Além disso, as universidades públicas estão sofrendo a concorrência das escolas particulares, que pagam salários maiores aos pesquisadores. Evidente que as condições de trabalho são muito diferentes. No ensino privado, tem que se dar muitas aulas e permanecer longe do ambiente de pesquisa. Mas quando a sobrevivência começa a ser comprometida, essa se torna uma alternativa viável. A continuidade dessa migração de cérebros pode ser trágica, pois tende a comprometer o esforço feito nos últimos 20 anos no desenvolvimento de C&T no país. A universidade tem que ser preservada. Ela pode ser complementada com outras instituições, mas ela é o organismo básico no mundo inteiro nas atividades voltadas ao desenvolvimento científico.

As propostas para deixar o pesquisador mais livre para manter relação com as empresas têm de ser muito acompanhadas para que isso não penalize as universidades. 

Sandra Brisolla é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.

Douglas Zampieri
O projeto de lei que dispõe sobre a pesquisa científica e tecnológica, é um texto bastante abrangente, visto que o tema não se restringe a um único segmento da economia de um país e, sim, permeia vários setores de atividade. Atualmente, há quase um consenso de que, enquanto a geração de conhecimento e a formação de recursos humanos é função da Universidade, a inovação tecnológica se dá nas empresas, fruto de incentivos, demanda, expansão e globalização de mercados, entre outros.Um dos méritos do projeto diz respeito ao incentivo (e autonomia) às instituições federais para a celebração de contratos de transferência e de licenciamento de tecnologia, ao mesmo tempo que mantém salvaguardas de proteção do conhecimento gerado. Além disso, a exemplo de outros países, possui um direcionamento ousado e inovador ao permitir o afastamento de pesquisadores empreendores, para que possam desenvolver atividade empresarial relativa à produção de bens diretamente decorrentes de criação de sua autoria. Certamente esta medida visa transformar o conhecimento em bens tangíveis para a Sociedade.

Douglas Zampieri é superintendente do Centro de Tecnologia da Unicamp