Por uma rede
de integridade
Para cientista político, transparência virá
com parceria entre Estado, sociedade e mercado
ÁLVARO KASSAB
"Mais que o petróleo, a corrupção é brasileira."A paródia ao bordão nacionalista da década de 1950, feita por um colega em artigo, deixou perplexo o professor e cientista político Bruno Wilhelm Speck, para quem a brincadeira reforça o estigma de que a academia é negligente no estudo dos problemas provocados pela corrupção. Speck sabe que não é bem assim e há muito faz sua parte. Acaba de organizar o livro Caminhos da Transparência (Editora da Unicamp), obra que reúne 43 especialistas de várias áreas, que analisam o funcionamento de instituições e de mecanismos que poderiam contribuir para o controle da corrupção. "Trata-se de um mapeamento daquilo que consideramos o sistema nacional de integridade", afirma Speck, que dá aulas sobre o tema no Departamento de Ciência Política da Unicamp. Na entrevista que segue, Speck explica por que a identificação da corrupção é cada vez mais um desafio político.
Jornal da Unicamp - O que há de novo no combate à corrupção no Brasil?
Bruno Speck - Durante muito tempo a corrupção foi tratada como um fenômeno que tem raízes históricas e culturais tão profundas que seria muito difícil combatê-la ou achar meios ou políticas eficientes de controlá-la. Essa visão está sendo substituída internacionalmente nos últimos 10 anos por uma nova abordagem.
P - Qual seria?
R - A de valorizar e identificar os fatores institucionais. A idéia básica é a de que a corrupção talvez tenha sim a ver com cultura e com traços históricos, mas o importante é que ela está ligada também -- e muito -- a arranjos institucionais que permitem que alguns setores sejam menos fiscalizados, menos controlados e que, em outros, até existam determinados incentivos para que eles se comportem de forma ilícita. Trata-se de um desafio político.
P - O senhor poderia exemplificar?
R - Hoje contamos com mecanismos importantes para se chegar a essa análise institucional. Primeiramente, você precisa de um diagnóstico mais preciso para saber onde e em quais instituições a corrupção está mais presente. Existe a convicção de que você pode chegar a isso por meio de instrumentos clássicos de investigação em ciência sociais, que são os questionários ou levantamentos aplicados ao funcionalismo público, à área empresarial e também à área dos cidadãos usuários de serviços públicos.
P - Como o senhor vê a atuação da sociedade civil brasileira no combate à corrupção? Existe uma linha evolutiva ou o conformismo ainda predomina?
R - O fenômeno de alerta da sociedade pela corrupção não é só do Brasil. Ele existe em vários países. E geralmente tem quatro ou cinco estágios. O primeiro passo é colocar a questão na agenda política. É preciso chamar a atenção para os problemas causados pela corrupção. Acho que o Brasil claramente passou por essa fase a partir de 1992, nos escândalos do governo Collor. A população passou a considerar a corrupção como um problema que tem custos altos para a política, para a economia e para a sociedade.
P- Qual seria o próximo passo?
R - Esse estágio, já adotado por muitos países do Leste Europeu, é o do diagnóstico. Como qualquer outro problema - ambiental, migração, pobreza - a corrupção precisa ser analisada e estudada. No Brasil essa prática ainda é muito tímida. São Paulo, por exemplo, é a primeira e única cidade a fazer uma ampla análise de todos os órgãos e serviços públicos em relação a fraudes, corrupção e suborno. O terceiro passo seria essa análise das instituições. Como todos os outros problemas, esse é um campo próprio de pesquisa. E o último passo seria a implementação dessas políticas e a formação de coalizões.
P- Como tornar isso factível?
R - Talvez esse seja um ponto crítico. Como você faz para reunir aqueles grupos sociais que teriam possivelmente algum interesse em fortalecer sistemas de integridade ou em combater a corrupção? É um problema, já que sempre tem obviamente o lado imprestável da corrupção; do contrário, ela não funcionaria.
P - O senhor poderia exemplificar?
R - Numa situação de licitação, você muitas vezes tem aquelas empresas grandes que estão por dentro do esquema e tem várias outras, pequenas e médias, excluídas do processo. Daí a importância de se fazer aliança com aqueles setores da sociedade civil mais interessados no problema. São justamente eles que têm mais identidade com o tema da integridade. É preciso também contar com representantes da iniciativa privada que tenham interesse em combater a corrupção, porque ela acarreta perda de mercado. Esse seria o último passo da formação de alianças e da implementação das políticas.
P - O senhor acredita que o poder público já está contaminado?
R - É uma situação típica de um país que deu mais abertura à investigação. Os órgãos de investigação tanto públicos quanto privados foram mais ativos e revelaram mais escândalos do que talvez a opinião pública tivesse capacidade de absorver. Muitas vezes também os órgãos de investigação e punição não tiveram capacidade de processar as denúncias. Existe um paradoxo: ao mesmo tempo que você tem mais liberdade e uma atuação mais presente das várias instâncias de fiscalização, a maré de denúncias gera a impressão de que as coisas estão piorando. De fato, não estão. Talvez isso tudo já tenha existido há dez ou 15 anos, mas ou não existia a liberdade de expressar essa crítica ou os respectivos atores não eram treinados o suficiente para desempenhar esse papel. Em relação ao diagnóstico, temos que ter um pouco de frieza e precaução. O aumento da visibilidade dos casos de corrupção talvez não seja produto de uma piora da situação, mas sim de uma maior sensibilidade nossa de perceber e levar isso à tona. O segundo ponto é que sinceramente não acredito que essa capilaridade da corrupção seja uniforme.
P - Por quê?
R - Nos casos que estudo, essa presença é muito diferenciada nas várias áreas. Você tem alguns órgãos funcionando muito bem e outros, muito mal. De uma certa maneira, percebo que aqueles que insistem muito no argumento da onipresença da corrupção parecem mais interessados em não entrar nessa área, em não estudá-la. Falta vontade de desenvolver políticas de controle. Acredito profundamente que, estudando uma instituição, você sempre terá aliados ao entrar com um programa de integridade.
P - Desde quando a academia se interessou pelo tema da corrupção?
R - Isso é coisa da década de 1990. Em toda a literatura, até então a corrupção se resumia em uma ou duas coletâneas. A partir daí tem uma explosão da produção, tanto que hoje em dia há uma literatura muito farta nessa área. Isso se deve em parte a modismos. Enfim, como todos outros temas precisam de um certo impulso externo para brotar e progredir, esse também precisou de vários fatos na política real para que a sociedade e acadêmicos se interessassem pelo tema. Acho que é mais que isso: está ligado diretamente ao fato de que não havia muitos dados disponíveis.
P - Por quê?
R - Os artigos que você lê das décadas de 60 e 70 são da área da teoria, da especulação, de até talvez de que como a corrupção contribuiria para o desenvolvimento. Hoje em dia temos muitos dados sobre o assunto. Infelizmente, no Brasil, essa investigação ainda é muito tímida. São poucos os cientistas dedicados à área, mas acho que ainda vai crescer nos próximos anos. Existe ainda um preconceito de que isso seria mais uma área de jornalismo investigativo e não propriamente das ciências sociais. Ou seja, muitas vezes você é obrigado a brigar pela legitimidade do tema.
P - Qual será a principal tarefa do presidente eleito no combate à corrupção?
R - A primeira tarefa é reconhecer a necessidade de que sejam desenvolvidas políticas para esse problema. Nós temos hoje uma consciência razoável no Brasil de que a corrupção tem um custo alto para o país. Considero que isso seja um senso comum hoje em dia. Há 15 anos não era. O próximo passo é reconhecer a necessidade de se desenvolver políticas de controle da corrupção. A partir daí você pode ter várias formas de implementar essa política.
P- Quais seriam essas políticas?
R - Você pode criar uma agência para coordenar os vários órgãos de controle. Pode pegar uma ou duas instituições modelo e tentar implementar uma política de integridade. Os caminhos a trilhar podem ser vários. O mais importante é dar prioridade política para o problema e a partir daí desenvolver diagnósticos e análises institucionais. Um sistema nacional de integridade requer uma parceria entre Estado, sociedade e mercado.
Quem é Bruno Speck
Bruno Wilhelm Speck nasceu na Alemanha em 1960 e estudou Ciências Políticas, História e Letras na Albert-Ludwigs Universität em Freiburg, na Alemanha. Em 1986, realizou um estágio na Favela Jacarezinho no Rio de Janeiro com apoio da Carl Duisberg Gesellschaft.
Formou-se em 1989 e em 1995 concluiu o doutorado em Ciências Políticas na Universidade de Freiburg com tese sobre "Correntes do Pensamento Político-Social no Brasil no Século 20". Trabalhou em Freiburg como pesquisador no Arnold Bergstraesser Institut e como docente na Universidade Pública e na Universidade Católica. Foi docente da Deutsche Stiftung für internationale Entwicklung, em Bad Honnef, Alemanha.
É professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e pesquisador do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp). Coordenou projetos de pesquisa e possui trabalhos publicados sobre a corrupção e accountability em sistemas políticos modernos. Membro fundador e conselheiro da Transparência Brasil, entidade apartidária, dedicada ao controle da corrupção e associada à Transparency International, fundada em 1993, com sede em Berlim.
SERVIÇO
Título: Caminhos da Transparência
Autor: Bruno Wilhelm Speck (org.) Páginas: 516 - Editora da Unicamp
Preço: R$ 49,00
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