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Os cegos vão ao cinema

Psicóloga recorre a filmes para avaliar como uma pessoa que nunca enxergou constitui seu conhecimento

LUIZ SUGIMOTO

A psicóloga Maria eduarda Silva Leme: organizando sessões semanais de cinemaTodos nós, que nos julgamos dotados da visão do mundo, já especulamos sobre uma questão que fascina e intriga: como um cego de nascença, que não guarda imagens visuais, aprecia as belezas e se indigna com as feiúras ao redor, constituindo o seu conhecimento?; como um cego sonha, se o sonho é feito de imagens?. "O imaginário social em relação ao cego afeta a todos, inclusive o pesquisador", afirma Maria Eduarda Silva Leme, graduada em psicologia pela USP. Quando passou a trabalhar com deficientes visuais, a psicóloga decidiu retornar à academia e refletir acerca daquele universo: A representação da realidade em pessoas cegas desde o nascimento é o título da dissertação de mestrado que ela apresentou em agosto na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, orientada pelo professor Angel Pino Sirgado.

"Nos habituamos a pensar que não poder enxergar é terrível, que a vida do cego é necessariamente muito limitada. Pelo nosso referencial, em que tudo é pautado pela visão, esta privação sensorial é dramática. Daí, minha preocupação em trabalhar a partir do referencial do cego de nascimento, que nunca teve acesso visual à realidade, e mostrar que essa concepção é equivocada", afirma Eduarda Leme. Ao trabalhar com indivíduos cegos ou de baixa visão, ela testemunhou problemas relacionados com emoções, desenvolvimento, desempenho escolar, laços familiares, locomoção. "Mas também fui descobrindo suas competências e me surpreendendo com os recursos que eles usam para se adaptar ao mundo e apreender os acontecimentos, como o estabelecimento de relações lógicas, a capacidade de suposição, dedução, entre outras coisas", ressalva.

Segundo a pesquisadora, quando se assegura ao cego o convívio social, educação, informação, entretenimento e outros bens sociais, a falta de visão torna-se um problema secundário. "O homem é um ser cultural e constrói seu conhecimento por meio da dimensão simbólica, da linguagem, dos significados. Esta peculiaridade derruba o senso comum de que o cego está prejudicado na aquisição de conhecimento. O cego, como todo homem, conhece o mundo por meio da interação com as outras pessoas, e traz em si a marca da cultura em que está imerso", acrescenta.

Percebendo a carência de atividades culturais no dia-a-dia dos portadores da deficiência, a pesquisadora organizou sessões semanais de filmes de cinema. Um narrador pontuava os momentos estritamente visuais com breves informações, como por exemplo, algumas mudanças de cena, o embarque do personagem num trem, um detalhe pitoresco na paisagem. "Dizem que o cinema é a arte das imagens, mas os filmes também trazem a linguagem, a música, os sons, a narrativa, e é a significação que costura as cenas umas às outras e dá sentido à história. O fato é que os cegos passaram a se interessar mais por filmes e inclusive a freqüentar cinemas, estreitando o vínculo com um veículo cultural importante", atesta a pesquisadora.

Narrativas - Especificamente para sua pesquisa, Eduarda Leme reuniu quatro voluntários com deficiência visual desde o início da vida, com idades entre 19 e 24 anos, sendo que o de menor escolaridade tinha concluído o ensino fundamental e o de melhor formação cursa o segundo ano de jornalismo. Optou por exibir curta-metragens para não tornar as reuniões cansativas, e produções brasileiras, evitando assim a artificialidade das dublagens. Depois de sessões individuais e em grupo, a psicóloga solicitou que os entrevistados narrassem as histórias conforme as imaginaram.

"O que norteou cada narrativa foi a reconstrução da história, a busca da compreensão, da significação, sem que se ativessem em descrever as imagens. A preocupação era a de interpretar indícios - falas, músicas, sons - e estabelecer relações entre eles para reconstruir a narrativa. Acontece uma síntese de funções psíquicas como atenção, memória, imaginação, permeada pela linguagem, pela interpretação de signos, tudo isso fundido num amálgama. O ser humano, não só o cego, é movido pela busca da compreensão; se vemos algo que não entendemos, a tendência é procurar alguma relação entre os elementos que permita dar sentido às coisas", explica Eduarda Leme.

Linguagem - Em um dos filmes, o protagonista toma um táxi, cujo motorista mostra linguajar grosseiro, recusa-se a diminuir o volume do rock pesado e dirige impropérios contra uma pedestre. A descrição de um cego foi do taxista barbado, mal-encarado e vestido com desleixo. "O deficiente visual compartilha da nossa cultura, sabe o que é rock e recebeu informações, mesmo que caricatas, de como um roqueiro se comporta. Certa vez, no local em que trabalhava com cegos, entrei na sala de salto alto, de saia e perfumada, e um cego me disse que eu estava muito bonita naquele dia. "Bonita" por causa do esmero, dos sinais percebidos por ele que indicavam que eu tinha me arrumado de maneira especial. Uma menina me contou que adorava o rosa, sem nunca ter visto a cor. Ela baseava essa preferência não na cor em si, obviamente, mas na significação que a cultura atribui à cor rosa, associada à feminilidade", exemplifica a pesquisadora.

As sensações táteis e os odores são importantes para o deficiente visual, mas nem sempre é possível ter esse tipo de acesso sensorial às coisas, como durante um filme, em que os sinais acessíveis a ele são os auditivos. "A linguagem e outros sinais lhe dão informações sobre a realidade. Ele vai recorrer a características da personalidade de um personagem, se o tom de voz é calmo, triste, exasperado, educado. Não importa muito se o protagonista é alto ou baixo, magro ou gordo. A descrição figurativa não é importante para ele, não é imprescindível para que compreenda a história", insiste Eduarda Leme.

Serviços - Portanto, ao contrário do que pareceria lógico, o cego pode perfeitamente ir ao cinema, desde que o filme esteja dentro dos padrões normais, apresentando diálogos, narrativas, músicas, sons identificáveis. "O fundamental é que o deficiente seja trazido para o convívio social, eliminando o estigma de que ele não sabe, não consegue, não pode ir ao cinema ou à escola. Conheci cegos que foram mantidos até os 20 anos de idade praticamente só dentro de casa. O esclarecimento das famílias e as políticas públicas evoluíram, mas muitos deficientes continuam segregados, impedidos de vir ao mundo conhecer a realidade", critica a psicóloga.

No campo do entretenimento, Eduarda Leme informa que nos cinemas e teatros da Europa e Estados Unidos já são comuns os serviços para cegos, que através de fones de ouvido recorrem a um narrador que pontua o andamento de um filme ou espetáculo. "Há aparelhos de televisão, inclusive, onde se encontra uma espécie de tecla 'sap', que aciona uma alternativa para escuta de um filme de forma narrada", finaliza.

O lugar
Denise: Aquela hora que ele estava do lado de fora do prédio, deu pra saber também por causa do policial. Na hora que eles chamam a polícia, então o policial pegou e já tipo desligou o carro e perguntou o que é que ele tinha, entendeu?... Se ele estivesse dentro do prédio, o policial, saindo do carro, teria entrado... Assim, teria andado pra entrar dentro do prédio.

Pesquisadora: Como é esse lugar onde eles estão andando, depois que eles saíram do prédio?

Denise: Bom, é na rua, num lugar assim meio que deserto. Eles vão tentar... É assim, numa obra, numa construção que estão fazendo...

Pesquisadora: Por que você achou deserto esse lugar?

Denise: Ah, porque você não ouve carros, não ouve pessoas passando por ali, então a gente deduz que aquele lugar é deserto.

O cachorro
Pesquisadora: Baseado em quê você achou que o cachorro ficou longe?

Júlio: Pelo latido do cachorro, né, sumir, assim, baixar, de ficar mais baixo...

Pesquisadora: E aí aconteceu o quê, então?

Júlio: Eles pularam a cerca.

Pesquisadora: Então pelo som você deduziu essa seqüência?

Júlio: É, a rua escura, o som... E aí eles começaram a correr, a correr, e aí o som do cachorro começou a ficar longe, a ficar mais baixo.

Pesquisadora: Certo...

Júlio: Pelo que a rua começou a ficar escura, porque não se ouvia mais o barulho do cachorro, mais, nem deles, por isso eles tinham deixado o cachorro pra trás, já, depois da cerca.

Pesquisadora: A rua ficou escura?

Júlio: É, porque já era noite, né, então... E era deserto ali, e porque só se ouvia o som do cachorro... E eles pularam a cerca depois.

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