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DIÁRIO DA CÁTEDRA
Caminhando pelas
‘ramblas’ de Barcelona
ANDRÉ ARGOLLO
Especial para o Jornal da Unicamp
Quando me propus passar um semestre em Barcelona, no contexto do Programa de Cátedras Unicamp/Espanha, imaginei o banho de cultura que iria tomar. Sim, porque se trata, afinal, de uma cidade que respira arte, história, e arquitetura.
De fato, caso seja solicitada uma lista das cinco cidades do mundo mais distintas por sua arquitetura, nove entre dez arquitetos incluiriam Barcelona. Sim, porque Barcelona é como se fosse um “Laboratório de Arquitetura”. Aqui se encontram edifícios e conjuntos arquitetônicos representativos de diversas épocas. São cidades sobre cidades que convivem no mesmo espaço, como layers sobrepostas e conjugadas numa mesma dimensão.
Pois temos a Barcelona românica de quase dois mil anos no mesmo sítio da Barcelona medieval, gótica; mas temos também a Barcelona moderna do final do século 19 até meados do 20, e a Barcelona de arquitetura contemporânea: a Barcelona das Olimpíadas’1992; a Barcelona do Forum’2004; a Barcelona dos grandes projetos urbanísticos; e a Barcelona de um futuro próximo (com projetos ainda por serem construídos).
Sair dos romanos e chegar à contemporaneidade parece uma viagem simples, posto que algumas cidades ofereceriam um trajeto ainda maior. Mas não é o caso de Barcelona, pois são dois mil anos de muita história cujos reflexos geraram uma importante produção arquitetônica.
Que tal falarmos das obras de Gaudí? Ou sobre os gênios de Picasso, Mirò e Dali, que floresceram por aqui? Parece lugar comum, mas uma crônica sobre Barcelona que omitisse este quarteto catalão pareceria herética. Bom, heresia era com eles mesmo...
De fato, Picasso não nasceu na Catalunya, mas estudou em Barcelona e por isso, parte de sua formação se deu respirando ares catalães. Dalí, por sua vez, catalão de Figueira, foi estudar em Madri e depois Paris, onde conheceu André Breton e outros artistas que formularam as bases do surrealismo. Mirò e Gaudí deixaram suas marcas indeléveis por vários recantos da cidade que os abraça como filhos diletos.
Mas, mais do que falar sobre a arquitetura de Barcelona, sobre os monumentos, os conjuntos, os bairros, e sobre as obras dos grandes gênios catalães ou dos grandes arquitetos do presente e de um passado recente, pretendo relatar as impressões que tive diante de tudo isso.
Meu texto será, portanto, parcial, subjetivo e carregado de emoção. Absolutamente o oposto do que fui obrigado a produzir ao longo de toda minha carreira docente. Porque, afinal, um texto acadêmico há de ser impessoal, objetivo e racional. Ou seja, o pesquisador deve-se manter distante do seu objeto de análise, e conseqüentemente, distante do seu leitor (que muitas vezes são seus pares, ou seus alunos e orientados).
Manter-me distante de Barcelona para escrever sobre Barcelona, embora não seja impossível, é uma tarefa difícil. E ademais, dentro do contexto em que estou inserido, seria uma tarefa um tanto chata, já que o que pretendo é justamente o oposto, ou seja, mergulhar em Barcelona e manter-me imerso nesse caldeirão de cultura que ferve no dia-a-dia pelas ramblas e recantos da cidade. Até porque, material completo e profundo sobre Barcelona, sua arquitetura e seus artistas, encontra-se disponível em sites, guias de turismo, museus, exposições, livros e bibliotecas do mundo todo, inclusive na Unicamp.
A senha para se sentir jovem e “moderno” parece ser: use piercing... e faça uma tatuagem.
Tudo certo, não se preocupem que eu não vou entrar com um discurso careta ou moralista. Acho interessante o desenho de algumas tatuagens, e o brinco (que não deixa de ser um piercing) sempre foi uma jóia que embeleza as mulheres e atrai os homens. Mas todo excesso é prejudicial.
De fato, se você tem um rosto comum, ou é meio “feiinha”... Vá lá, pendure uma pedra no nariz, ou num dos cantos inferiores da boca. Mas são tantas princesinhas de rostos lindos, irretocavelmente lindos, e cravejados por uma “verruga de brilhante” ou uma argola de prata...! Não é questão de caretice. É apenas a opinião de alguém que está deslumbrado pelos monumentos e pela estética da arquitetura catalã.
É como admirar uma fachada arquitetônica, ou um monumento pichado por vândalos que, aliás, estão presentes também por aqui. Talvez numa proporção menor, mas estão. Pensei que fosse ficar livre (pelo menos por 6 meses) dos ridículos garranchos que as gangues paranóicas de pichadores nos impingem goela abaixo em Campinas e nas demais cidades brasileiras.
Vem daí a sensação que eu tenho ao ver uma gatinha toda tatuada e cravejada por piercings: é como admirar um magnífico exemplar arquitetônico inteiramente pichado e cheio de buracos (ou anexos, ou remendos) nas fachadas.
Aliás, a comparação entre um belo exemplar arquitetônico e uma bela mulher não é nada original. Tudo bem! Eu não pretendo ser tão original assim... Mas fico imaginando se Barcelona fosse uma mulher, que tipo seria?
Uma senhora com ares de nobreza e muita história para contar? Uma matrona que vivenciou na juventude aventuras de alucinar? Ou uma velha prostituta ainda ativa? Que grosseria! (...) Barcelona seria tudo isso e ainda mais: uma gatinha tatuada e cravejada de piercings com ares de bicho-grilo e segura de si...; ou uma executiva work-a-holic bem de vida, que nas férias some por aí...; ou, quem sabe, uma intelectual top de linha antenada com o que há de mais atual, ecologicamente eficiente e politicamente correto... É isso. Talvez tudo isso em “layers sobrepostas e conjugadas numa mesma dimensão”...
Eu gostaria de descrever a sensação que senti ao ver de perto, pela primeira vez, a Sagrada Família. Foi numa tarde daquelas em que você pega o metrô e vai parando em várias estações, aleatoriamente, para reconhecer as redondezas. É uma boa fazer isso, até porque as estações de metrô, na maioria das cidades, situam-se dentro da malha urbana em regiões distintas normalmente por alguma característica importante: um entroncamento viário, uma praça, uma região dinâmica em comércio ou serviços, escolas, universidades, teatros, museus, enfim, as estações de metrô normalmente estão localizadas em pontos interessantes. Então, nada melhor que sair, ao acaso, de uma estação do metrô de Barcelona e deparar com... a Sagrada Família !
Você sobe uma escada como outra qualquer... Franze a testa para proteger os olhos do brilho intenso do sol da tarde do verão espanhol, olha para o lado e “ops... um cartão postal” ! Eu fiquei uns cinco minutos olhando para este cartão postal magnífico, e aí resolvi dar a volta no quarteirão para contemplar as quatro fachadas da igreja. Levei umas duas horas para dar a volta num quarteirão relativamente pequeno. A igreja está em obras. Daria um belo “seminário” para minha disciplina na Faculdade de Engenharia Civil (técnicas construtivas).
O interessante é notar os diversos grupos de turistas exclamando em todas as línguas: “putz!... meu!... caramba!...”
Orxata de xufla sius plau sempre curti o repertório de Caetano Veloso. E nunca é demais lembrar a infinidade de “jóias raras” que compõem a sua obra. Entre tantas músicas de que eu gosto, uma tem ficado na minha cabeça sempre que eu caminho “sem lenço e sem documento” pelas ruas de Barcelona Vaca Profana, na voz de Gal Costa. Na letra desta música, Caetano menciona as torres traçadas por Gaudí, e faz outras referências interessantes que não vêm ao caso agora. No mais... No mais as ramblas do planeta / Orxata de xufla sius plau. Umas semanas antes do meu embarque, estávamos na Casa de São Jorge (no distrito de Barão Geraldo) comemorando o aniversário de minha amiga Sílvia. Estavam também algumas amigas (entre elas a Lela e a Kika)... E foi a Kika quem me disse para não deixar de tomar orxata de xufla... e lembrou a música do Caetano. Pois todo final de tarde, ou de manhã, eu chego numa orxateria, ou numa cafeteria, e peço: “una orxata de xufla sius plau” (que em catalão quer dizer: uma orxata de xufla por favor). No mais, as ramblas do planeta...
“Las Ramblas” é o eixo que liga a Plaça de Catalunya ao Monument a Colom. Trata-se de um lugar em que, sempre que posso, dou uma passadinha por lá. Eu acho o máximo. Parece uma 13 de Maio globalizada... É isso se você é de Campinas, então consegue imaginar uma Rua 13 de Maio com gente do mundo todo, refletindo o que há de melhor e o que há de pior nesse mundo. Se você não é de Campinas, então imagina a rua mais popular da sua cidade, aquela do comércio, em que o pessoal da periferia “desce para fazer compras” toda cidade tem uma rua assim. Em Campinas, eu me lembrei da 13 de Maio... Pois é, gente de tudo quanto é lado se encontrando no mesmo ponto da cidade (pobres e ricos, sulistas e nordestinos, jovens e velhos, saudáveis e doentes, enfim...). Então, “Las Ramblas” é como a rua mais movimentada da sua cidade, a que mais mostra a cara do povo que vive nela ou passa por ela só que tem este aspecto em nível global. Você encontra sueco com cabelo rastafari, marroquino com camisa do Brasil, japonesa com piercing e tatoo tribal africano, australiana vestindo roupa havaiana com acessório chinês holandesa que parece viver nos trópicos, e por aí vai...
Por falar em “camisa do Brasil”, o país parece estar na moda neste verão europeu. Muita gente, muita mesmo, com camisa do Brasil, sandálias havaianas, calça e cinto tipo capoeira, com imagens alusivas ao Brasil. É isso, pessoal, o Brasil está na moda...
No mais, as ramblas do planeta...
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André Argollo é engenheiro civil, mestre em engenharia agrícola, doutor em arquitetura e urbanismo e professor livre docente da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. Assumiu uma cátedra junto ao Departamento de Urbanisme i Ordenaciò del Territori da Escola Tècnica Superior d’Arquitectura de Barcelona - Universitat Politècnica de Catalunya (ETSAB-UPC), onde ficará até dezembro, desenvolvendo trabalhos sobre “Arquitetura Rural”, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.
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