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Núcleo completa 20 anos de estudos que
subsidiaram e legitimaram as reivindicações da população negra
Nepo municia luta
contra discriminação
LUIZ SUGIMOTO
O movimento negro no Brasil ainda não tinha há 20 anos o mesmo peso político que tem hoje, quando a fundadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, professora Elza Berquó, explanou sobre as pesquisas que propunha e apresentou as colaboradoras Estela María García de Pinto Cunha e Alícia Marta Bercovich, ambas argentinas, durante encontro da SBPC. “Como uma pesquisadora branca, juntamente com duas ‘gringas’, pretende estudar a população negra, se isto deve ser de nossa alçada?”, questionou uma pessoa negra na platéia. A resposta de Elza Berquó foi convincente: “Porque o Brasil ainda não tem demógrafos negros.Vamos torcer para que tenha, mas a demografia pode oferecer elementos importantes para a luta de vocês”.
Pesquisadoras recebem homenagem em Brasília
Há menos de duas semanas, numa sessão solene em Brasília para homenagear pessoas que se destacam na luta para reduzir a exclusão social da população negra, foram agraciados uma mãe-de-santo feminista, uma médica negra com atuação importante na divulgação dos problemas de saúde de sua raça, um médico negro que dedicou boa parte da carreira à assistência em quilombos, e duas mulheres brancas, Elza Berquó e Estela da Cunha. Homenagens como esta, prestada durante o Seminário Nacional de Saúde da População Negra, organizado pelo Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, vêm marcando com freqüência a vida das pesquisadoras da Unicamp.
“O Nepo teve papel pioneiro nos estudos sobre mortalidade, morbidade, fecundidade, nupcialidade e estrutura familiar da população negra e seus determinantes sócio-econômico-sociais, que foram fundamentais para subsidiar e legitimar reivindicações do movimento, ampliando seu espaço político”, afirma Elza Berquó. “No quesito saúde, chegamos a diferenças marcantes entre brancos e negros. No contexto de explicações, vingava aquela de que o negro é mais pobre e, porque é mais pobre, morre e adoece mais. Sem dúvida, a população negra é, em percentagens altíssimas, aquela que tem menos educação, menos acesso aos serviços básicos e de boa qualidade, menos renda média per capita, menos trabalho assalariado e, mesmo no mercado formal, a que ganha menos. Percebemos que a situação socioeconômica, apenas, não explicava o porquê, não levando em conta a discriminação racial presente na sociedade brasileira”, acrescenta Estela da Cunha.
Cor camuflada Antes, segundo Elza Berquó, os negros nem sabiam quantos eram, tampouco possuíam informações oficiais que denunciassem suas condições calamitosas na pirâmide social. Ela explica que o Censo de 1940 trabalhou com as categorias branca, preta e amarela, e classificou como pardos todos os casos que não coubessem nessas categorias. Nos Censos de 1950, 1960 e 1980 as categorias foram branca, preta, parda e amarela (em 1991 e 2000 incluiu-se a indígena). Em 1970, o regime militar simplesmente retirou do Censo o quesito cor, sob pretexto de que isto era sinal de racismo. “Mesmo o levantamento de 1960, apurado também durante a ditadura, só veio a público em 1978. Enfrentamos um vazio de 28 anos sem saber a cor da população do país”, observa.
Elza Berquó coordenou a mesa da SBPC que encaminhou moção ao IBGE solicitando a volta do quesito cor no Censo de 1980. Ao criar o Nepo em 1982, respeitou o compromisso social de trabalhar com a demografia da desigualdade. Desde o início, o núcleo de pesquisadores adotou a categoria negro para representar o conjunto de pretos e pardos. Assim, os negros, que representavam 36% da população em 1940, chegaram a 45% em 2000. “Eles representam praticamente a metade dos brasileiros. A soma de pretos e pardos deu muita força às reivindicações dos movimentos negros”, afirma a pesquisadora.
Para mencionar apenas um dos aspectos desvendados pelas pesquisas do Nepo, Elza Berquó informa sobre uma diminuição paulatina dos auto-declarados brancos e pretos, frente ao aumento dos pardos. “A demografia ajuda a explicar esse fenômeno, mostrando que, embora a mortalidade entre pretos e pardos seja maior, sua fecundidade é sempre maior do que a dos brancos. Em relação à nupcialidade, mostramos que o superávit de mulheres no Brasil é de brancas que atraem homens pretos no mercado matrimonial. O celibato da mulher preta é muito maior, ela é a mais excluída da população”, constata.
Ministra negra O Brasil já tem negros demógrafos e muitos outros pesquisadores de variadas áreas que recorrem à demografia para enriquecer suas pesquisas. Matilde Ribeiro, que está à frente da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sippir) criada pelo governo Lula com status de ministério, é uma assistente social e militante dos movimentos negro e feminista que participou do 2º Programa de Estudos em Saúde Reprodutiva e Sexualidade do Nepo, em 1993. No livro “Construindo Novos Caminhos”, organizado por Berquó e a professora Maria Isabel Baltar da Rocha para comemorar os 12 anos do programa, Matilde Ribeiro afirma que o curso foi e continua sendo marcante para a sua vida profissional e política.
“Começamos a preparar pesquisadores negros para que eles defendessem seus direitos calcados na pesquisa, saindo do ‘achismo’. Mais tarde é que outros centros incorporaram cursos nessa área, o que é gratificante”, afirma Elza Berquó. A demógrafa, que também ajudou a fundar o Cebrap, lembra quando obteve bolsas da Fundação McArthur para estimular pesquisadores negros no estudo desta população. “O sucesso do programa pode ser medido pelos mestrados e doutorados comprometidos com esta luta”, comemora. Recente-mente, Berquó coordenou a produção do vídeo “Rompendo o Silêncio, destinado a professores do ensino médio, visando a desconstrução do racismo nas escolas.
Pesquisadoras integram
Comitê Técnico do MS
Estela da Cunha, socióloga do Nepo com doutorado em saúde coletiva, foi convidada pelo Ministério da Saúde, juntamente com Elza Berquó, a integrar o recém-criado Comitê Técnico de Saúde da População Negra, antiga aspiração do movimento negro, visto que contribuirá para aprimorar os sistemas de informação na saúde e orientar prioridades. Nesse sentido, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) acaba de anunciar a exigência de anotação da cor do paciente, por exemplo, no Sistema de Informação de Mortalidade, Sistema de Informação Hospitalar e Sistema de Informação de Nascidos Vivos, quando este quesito era preenchido apenas em atestados de óbito e certidões de nascimento.
Estela da Cunha que se apresenta como Mayra, nome escolhido por seus pais mas cujo registro foi proibido na Argentina por não trazer raiz latina elogia o esforço para melhorar a qualidade da informação. “Esses bancos de dados nos permitem ver muito mais do que uma estimativa do nível de mortalidade na população negra. As crianças negras até 1 ano de idade morrem mais do que as brancas por causas evitáveis, especialmente na hora do parto; as mães grávidas negras passam por menor número de consultas no pré-natal, que seria o melhor momento de prevenir conseqüências de mortalidade; e eles nascem, em média, com uma semana a menos de gestação ao ser comparadas com as crianças brancas”, informa Mayra.
Os negros formam a população majoritária atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Outros estudos indicam que os negros estão mais vulneráveis a enfermidades resultantes da combinação de fatores ambientais com especificidades genéticas como anemia falciforme, diabetes tipo 2, doenças cardíacas, hipertensão arterial e miomas intra-uterinos. “Sobre os fatores genéticos, identificamos riscos diferenciais, especialmente aqueles relacionados com a mortalidade fetal e perinatal, pois as mulheres portadoras de diabetes, de miomas submucosos e de anemia falciforme apresentam maior incidência de abortamento espontâneo, menos tempo gestacional e maior prevalência de partos prematuros”, afirma a pesquisadora do Nepo.
Citando dados do IBGE, Mayra Cunha observa que, em 1996, para cada mil nascidos vivos, 24 crianças brancas morreram, contra 36 negras. Durante o seminário em Brasília, a pesquisadora Fernanda Lopes apresentou um estudo do qual o Nepo faz parte, indicando que o número de mortes de mulheres entre 10 e 49 anos, por causas relacionadas à gravidez, ao parto e a complicações pós-parto, é três vezes maior entre as negras em comparação às brancas, sendo a falta de assistência pré-natal a causa principal.
A socióloga ressalta que, em 20 anos de trabalho, o Nepo vem abrindo caminhos para a demanda política, comprovando a importância da interface entre produção acadêmica e movimentos da sociedade civil. “Esperamos subsidiar o movimento negro com um leque ainda maior de informações, a fim de pressionar políticas públicas direcionadas para esta população, ou pelo menos para que reconheçam suas especificidades. Não se pode mais explicar tudo com a pobreza”, finaliza Mayra.
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