Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 264 - de 30 de agosto a 12 de setembro de 2004
Leia nessa edição
Capa
Diário da cátedra
Luta contra discriminação
Beleza se vê pelos dentes
Homem de fibra
Os argonautas
Sistema elétrico da Amazônia
Envase de leite
Dependentes de drogas
Painel da semana
Teses da semana
Unicamp na mídia
O Lugar da história
Fóruns
Novos acordes
 

6

Os argonautas singram
de Bali aos mangues de Vitória


ÁLVARO KASSAB


O que há de comum entre o ethos (o "estilo de ser") balinês e os caranguejeirosNa seqüência de oito fotografias da Prancha 10, referente à xCaptura (dos caranguejos) no braçox, pode-se acompanhar todo o esforço e contorção do corpo do caranguejeiro para, através de movimentos rápidos, enfiar o braço na lama, atingir a toca e, enquanto o braço esquerdo segura o caule da árvore, pegar o caranguejo com o direito. do município de Vitória, capital capixaba? De um lado, as pranchas seminais legadas pelo casal Margaret Mead e Gregory Bateson. De outro, o movimento da maré, canoas, galhos retorcidos, ilhéus cobertos de lama, as luas, a floresta dilacerada. Esses universos díspares mas unidos pelo que se convencionou denominar de originário, interpenetram-se no livro "Os Argonautas do Mangue", do biólogo e fotógrafo André Alves, cuja introdução, "Balinese character (re)visitado", de autoria do antropólogo e professor Etienne Samain, docente do recém-implantado Departamento de Cinema da Unicamp, projeta o fio condutor que transforma os dois trabalhos numa obra única: a antropologia visual.

O livro, que acaba de ser lan Imprensa Oficial, sela uma parceria iniciada em 1995 com a dissertação de mestrado de Alves sobre o tema. A orientá-lo, Samain, um apaixonado pela fotografia que sempre acalentou o sonho de materializar em livro as idéias do trabalho levado a cabo pela dupla Bateson-Mead, no livro "Balinese character. A photographic analysis" (1942), para ele uma pesquisa "fundante" da antropologia visual. Durante três anos, com efeito, entre 1936 e 1939, ambos, recém-casados, desenvolveram um trabalho de campo na ilha do arquipélago banhado pelo Índico, que mudaria os rumos de uma antropologia, não apenas legitimada a partir da escrita e, sim, enriquecida pelo "trabalho" das imagens.

Na apresentação do livro, Samain dimensiona a importância dessa investigação no conjunto de "Argonautas". "A primeira contribuição mergulha – explorando-o – no trabalho pioneiro realizado em Bali por esses dois gigantes da antropologia, quando procuravam, no duplo registro do verbal e do visual, entender e retratar a maneira como uma criança, nascida na pequena ilha vulcânica, ao incorporar condutas e comportamentos socialmente transmitidos, tornava-se para sempre um inconfundível ser balinês".

Suporte – O mergulho, no caso, foi feito pelo próprio docente. Nas primeiras 72 páginas do livro, Samain não só contextualiza o período no qual surgiu o trabalho pioneiro de Mead e Bateson, como explica o que este significou para a antropologia contemporânea. O professor detalha, com agudeza, o substrato teórico da dupla de pesquisadores, e faz, nesse âmbito, três "exercícios apreciativos, no que diz respeito às relações entre as potencialidades do suporte verbal e as potencialidades do suporte imagético, no quadro desse monumento da antropologia visual". Um suporte, cabe registrar, erigido sobre 25 mil registros fotográficos, além do material cinematográfico – nada menos que sete quilômetros de filmes de 16 mm.

Essa metodologia muito pouca estudada e jamais sistematicamente aplicada a outro objeto de pesquisa, de acordo com Samain, vai ser retomada por André Alves na segunda parte do livro. O ineditismo, já presente na abordagem do docente, migra para o trabalho de campo feito com os caranguejeiros dos manguezais de Vitória. A pesquisa não permanece apenas antropológica e visual. Ela traz, ainda, um componente novo: a interação vivida com os próprios caranguejeiros. "Talvez seja a grande novidade em relação ao trabalho fundador. Em Bali, Bateson e Mead tinham hipóteses de trabalho e estavam recolhendo elementos que iam favorecer a ‘revelação’ de tais intuitos. André faz tudo isso mas submete todo esse trabalho aos próprios caranguejeiros. Muitos dos comentários revisitados foram feitos com as palavras deles. Em todo o trabalho há uma simbiose entre o pesquisador e os nativos", afirma Etienne. De fato, os três capítulos de "Os Argonautas do Mangue"Na seqüência de oito fotografias da Prancha 16 (apresentada ao lado), vê-se um jovem aluno se exercendo à arte da dança, observado e conduzido por Mário, na época grande mestre em Bali. Essas imagens deveriam nos fazer experimentar como se realiza a aprendizagem em Bali, onde o conhecimento é essencialmente adquirido com base na "mostração" e a cinésica (comunicação pelo corpo e através de gestos) e não por meio de falas ou de ordens. são reveladores de uma tarefa marcada pela minúcia, pelo rigor e pelo contato sistemático com as fontes.

Na primeira parte, Alves volta no tempo de uma memória coletiva para mostrar a ocupação dos manguezais de Vitória e, conseqüentemente, sua gradativa deterioração. Estão lá mapas antigos, aterros, palafitas, depósitos de lixo, a invasão urbana desenfreada, o esgoto que segue sendo despejado sobre as franjas do ecossistema. O leitor fica sabendo, por meio do texto e de análise iconográfica, que a destruição dos mangues da baía de Vitória, iniciada na verdade com a colonização portuguesa, intensificou-se nas últimas três décadas, quando boa parte das florestas foi aterrada.

No segundo capítulo, denominado "Uma etnografia visual", o autor desnuda o universo cotidiano dos caranguejeiros – desde o caminho para o manguezal, as embarcações usadas, a classificação das marés, os tipos e o ciclo de vida dos crustáceos e as técnicas de captura, até chegar nos aspectos mercadológicos. Pranchas fotográficas e comentários precisos ilustram e definem esta parte central do livro. Com a palavra, Alves: "No decorrer do trabalho, fui percebendo que, por trás de cada técnica, de cada atitude, existia um significado. Tentei, então, mergulhar nesse mar de significados, entender o que representa, para os caranguejeiros, ser caranguejeiro e viver da cata dos caranguejos. O que percebi a partir desse momento foi algo bem diferente da visão romântica que possuía. No meu imaginário, os caranguejeiros eram homens que viviam em perfeita harmonia com a natureza. No entanto, percebe-se que, na verdade, são homens que buscam, acima de tudo, sobreviver em uma sociedade que tende cada vez mais a excluí-los".

Para chegar ao resultado final, poético, diga-se, além de entrevistas, depoimentos e questionários, Alves reuniu um vasto acervo audiovisual sobre seu objeto de pesquisa. No campo da fotografia, por exemplo, foram produzidas 3.600 imagens emNa seqüência de oito fotografias da Prancha 10, referente à "Captura (dos caranguejos) no braço", pode-se acompanhar todo o esforço e contorção do corpo do caranguejeiro para, através de movimentos rápidos, enfiar o braço na lama, atingir a toca e, enquanto o braço esquerdo segura o caule da árvore, pegar o caranguejo com o direito. preto-e-branco e outras 2 mil em cores. Entra aí, de acordo com o autor do livro e com o professor Etienne, a retomada do modelo metodológico proposto por Margaret Mead e Gregory Bateson em "Balinese character". "Ele oferecia um duplo percurso heurístico. Um primeiro, mais amplo, em que se busca, através de ‘descrições’, situar o leitor no contexto geral dos assuntos enfocados. O segundo, mais específico, em que se procura, através de uma interação entre texto e imagem, uma exposição detalhada dos fenômenos pesquisados", revela André Alves na introdução de seu trabalho.

O que isto significa mais profundamente? O orientador da pesquisa responde: "Não conheço ainda muitos antropólogos que decidiram pensar no que uma imagem ou um conjunto de imagens, fixas ou em movimento, permitiria "construir" – com ou sem a presença de um texto –, em termos de uma compreensão mais aprofundada dos seres humanos e dos fatos da cultura. Com outras palavras, por que as imagens ficariam desprovidas de pensamento, quando, no entanto, creditamos, com razão, as palavras e nossas escritas de pensamento? Na opinião do docente, palavras, escritas, imagens são "formas" inteligentes, singulares e complementares de que dispomos para representar as "representações" de uma impossível ‘realidade’. "As imagens têm, deste modo, a capacidade – também – de produzir reflexões no que diz respeito ao mundo. Não somente as imagens são boas para pensar; elas são ainda ‘formas que pensam’. Devemos fazer confiança às imagens".

Imaginário – Etienne lembra que um exemplo emblemático dessa proposta é o terceiro capítulo do livro, intitulado "Narrativa Visual", no qual irrompem exatas 24 imagens sem legendas ou textos de apoio. "O leitor vai ter de refazer a sua própria viagem. É mais uma audácia de acreditar na antropologia visual. Claro que a imagem sozinha é polifórmica, fala muito, não é preciso colocar camisa-de-força. Elas despertam o imaginário do leitor, que é sempre bem-vindo nesse mundo de racionalidade. As imagens nos oferecem toda uma mensagem que não é só antropológica, mas também poética, de apelo estético".

Samain destaca outros dois fatores no conjunto da obra. O primeiro diz respeito à confecção do livro. "Um docente é uma pessoa que está apenas de passagem. Digo isso sem romantismo. A obra de André é um trabalho no qual também mergulhei, mas existiu sempre uma reciprocidade, o que considero fundamental". O segundo ponto ressaltado está relacionado aos frutos que poderão ser colhidos. "Este trabalho foi feito para a comunidade e vai retornar para a comunidade. Para despertá-la, não apenas para aglutiná-la. Vai criar também uma consciência um pouco mais crítica, sobretudo no campo da ecologia. Para os habitantes de Vitória, o trabalho de André será um grande registro de memória".


Mead e Bateson, autores de “Balinese Character”, depois do retorno de Bali

André Alves, autor de “Os Argonautas do Mangue”

De 1936 a 1939

Gregory Bateson e Margaret Mead, então, recém-casados, empreendiam, na pequena ilha vulcânica de Bali, um trabalho de pesquisa antropológica que até hoje permanece um marco único. No duplo registro, do visual e do verbal, procuravam entender como uma criança ali nascida, ao incorporar condutas e comportamentos estereotipados da cultura na qual tinham nascidos, tornavam-se, para sempre, inconfundíveis seres balineses e não-brasileiros, não-americanos ou russos. Para tanto, realizaram, além de filmes, mais de 25 mil fotografias, das quais apenas 759 foram escolhidas para constituir o famoso Balinese Character, publicado em 1942.

Na seqüência de oito fotografias da Prancha 16 (apresentada ao lado), vê-se um jovem aluno se exercendo à arte da dança, observado e conduzido por Mário, na época grande mestre em Bali. Essas imagens deveriam nos fazer experimentar como se realiza a aprendizagem em Bali, onde o conhecimento é essencialmente adquirido com base na “mostração” e a cinésica (comunicação pelo corpo e através de gestos) e não por meio de falas ou de ordens.

De 1996 a 1999

André Alves, biólogo e mestrando do curso de Pós-Graduação em Multimeios, retomava com o seu orientador Etienne Samain, a proposta metodológica de Bateson e Mead para, desta vez, aplicá-la e seguir, verbo-visualmente o ofício singular e múltiplo dos catadores de caranguejo da ilha de Vitória, no Espírito Santo. Incorporando na sua pesquisa a sabedoria de mais de 40 destes Argonautas do Mangue, após ter realizado mais 3.500 fotografias, o autor oferece, 60 anos depois, o primeiro trabalho nos moldes dos pais fundadores.

Na seqüência de oito fotografias da Prancha 10, referente à “Captura (dos caranguejos) no braço”, pode-se acompanhar todo o esforço e contorção do corpo do caranguejeiro para, através de movimentos rápidos, enfiar o braço na lama, atingir a toca e, enquanto o braço esquerdo segura o caule da árvore, pegar o caranguejo com o direito.




Teólogo e antropólogo, Etienne Samain (foto) nasceu na Bélgica, em 1938, e está no Brasil desde março de 1973. Conviveu com os índios Kamayurá (Alto Xingu, MT) e com os Urubu-Kaapor (Maranhão), estudando a mitologia dessas comunidades de língua tupi. Sobre esse assunto, publicou pela Lidador (Rio, 1991), “Moroneta Kamayurá. Mitos e aspectos da realidade social dos índios Kamayurá (Alto Xingu)”.

Desde 1984, pertence ao corpo docente do Instituto de Artes, integrando atualmente o recém-criado Departamento de Cinema. Desenvolve pesquisas sobre o uso das imagens no campo das ciências humanas e explora questões relativas à epistemologia da comunicação, na linha aberta por Gregory Bateson e pela Escola de Palo Alto.

Com licenciaturas em Teologia (Lovaina), em Filologia Bíblica (Lovaina) e em Filosofia (PUC-Rio), Etienne Samain é doutor em Ciências Teológicas e Religiosas (Lovaina) e mestre em Antropologia Social (Museu Nacional, UFRJ). Realizou, em 1991-1992, pós-doutorado, no Instituto Mediterrâneo de Pesquisa e de Criação de Marselha. Organizou, em 1998, os trabalhos de 26 profissionais em torno da fotografia, publicando, com apoio do CNPq, “O fotográfico”.

SERVIÇO


Preço: R$ 50,00

Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); Prefeitura de Vitória; Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST); Faculdades Integradas Espírito-Santenses (Faesa); Lei Rubem Braga; e Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)

Livro: Os Argonautas do Mangue, de André Alves – Precedido de Balinese character (re)visitado por Etienne Samain
Editora da Unicamp (Co-edição da Imprensa Oficial do Estado)

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP