Socióloga resgata história da fábrica de tecidos
Carioba e da Vila Operária que virou ponto turístico
A classe operária vai ao paraíso
LUIZ SUGIMOTO
Ladeada por bambus que formavam um túnel sombreado e acolhedor, a estrada de acesso à Vila Operária já encantava os visitantes. Lá, a fábrica de tecidos Carioba construiu 287 casas para os empregados e suas famílias seguindo a arquitetura alemã. O esmero dos moradores com o jardim da frente e a horta dos fundos era uma exigência da administração. Havia luz elétrica, água encanada, esgoto, coleta de lixo. A água fervida na tinturaria passava por tratamento antes de ser despejada no rio. As ruas do bairro foram as primeiras do país a receber asfalto. Tinha escola para as crianças, biblioteca, igreja, açougue, padaria, farmácia, bares, restaurante, cinema, clube de regatas, campo de futebol, salão de danças, bandas de música, grupos de teatro. Tinha hotel e pista com hangar para aviões. O parque recreativo ficava aberto para o piquenique dos turistas. Aos viajantes, uma parada de trem oferecia descanso e a paisagem elaborada, emoldurada pelo rio Piracicaba, o ribeirão Quilombo e árvores que floresciam no topo dos morros.
“Entrevistei muitas pessoas que trabalharam e viveram na Carioba até o início da década de 1950. Todas lembram da Vila Operária como um paraíso”, afirma a socióloga Maria José Ferreira de Araújo Ribeiro, cujo avô, imigrante português, ajudou a construir as primeiras casas do bairro. Em sua tese de doutorado na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, a socióloga resgata a história de uma das maiores fábricas de tecidos do país, desde sua fundação em 1875 até o fechamento, em 1976. A pesquisa trata do cotidiano dos empregados, do ensinamento do ofício para as gerações seguintes e da saída de boa parte deles para abrir pequenas empresas na Vila Americana, que emancipada de Campinas se firmaria como principal pólo têxtil da América Latina.
Maria José Ribeiro conta que o interior do Estado de São Paulo viveu uma expansão da cultura do algodão entre 1862 e 1875, devido principalmente à Guerra de Secessão (1861-1865), que afetou as áreas produtoras do sul dos Estados Unidos, maior fornecedor da indústria têxtil inglesa. O conflito também fez com que sulistas imigrassem para terras brasileiras compradas pelo senador do Alabama William Norris, na Fazenda Machadinho. Adquirindo novas áreas em direção a Santa Bárbara, esses imigrantes implantaram o arado e outras técnicas agrícolas na região, que seria chamada de Vila dos Americanos. Foi do superintendente da São Paulo Hailway, J. Albertin, a iniciativa de distribuir sementes para os nossos agricultores. Porém, finda a guerra civil, os americanos voltaram a exportar algodão para a Inglaterra.
Sem mercado externo para o produto brasileiro, surgiram as primeiras tecelagens paulistas, uma delas na Fazenda São Domingos (hoje Carioba). Ela foi inaugurada pelo engenheiro americano Willian Ralston e os irmãos fazendeiros Antonio e Augusto de Souza Queiroz, em 1875, mesmo ano da construção da Estação Santa Bárbara. Em 1884, a tecelagem foi comprada pelos irmãos ingleses Clement e George Willmot, que ampliaram as instalações para produzir casimira de alto padrão e iniciaram a construção da Vila Operária. Endividados com o Banco do Brasil, faliram em 1896, registrando-se aí um hiato na história da fábrica, que ficou fechada até 1901, quando foi arrematada em leilão pelo comendador alemão Franz Müller, em sociedade com seu irmão Hermann e o capitalista inglês Rawlinson.
Encanto “A intenção do comendador era de apenas recolocar a fábrica em funcionamento para em seguida vendê-la. Mas ele se encantou com a paisagem, as instalações margeavam tanto o ribeirão Quilombo como o rio Piracicaba”, afirma Maria José Ribeiro. Ao redor da casa-sede, Franz Müller ergueu outras para os filhos, além de ampliar a Vila Operária e dotá-la de toda infraestrutura. Como necessitava de nova fonte geradora de energia para expandir a fábrica, comprou em 1907 a Fazenda Salto Grande, situada hoje do outro lado da via Anhanguera. Ali construiu a hidrelétrica que ficou pronta em 1911 e forneceu energia elétrica não apenas para a fábrica e os empregados, como também para a Vila Americana, Santa Bárbara, Sumaré, Nova Odessa e Cosmópolis. Foi nesse período que a família adotou o sobrenome Müller Carioba.
Na fazenda adquirida a família desenvolveu um projeto agrícola, integrando a produção de algodão e o processo de fabricação de tecidos. “É um exemplo de industrialização vertical já no início do século 20. A firma mantinha convênios com o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) para o desenvolvimento de sementes de algodão, milho e feijão, e produzia feno para a pecuária de leite. Os produtos abasteciam também a Vila Operária”, informa a doutoranda.
A historiadora Ema Camillo, do Centro de Memória da Unicamp (CMU), autora do Guia Histórico da Indústria Nascente em Campinas, informa que em 1919 a Carioba produziu “7 milhões de metros quadrados de tecidos de algodão, em riscados, zephires, brins, lonas etc”. Empregava, então, 720 operários, na maioria imigrantes italianos, que moravam em 215 casas; o número de empregados chegou a 2.000 em 1939. Ainda de acordo com a pesquisadora, os Müller “imprimiram sua marca pessoal não só à administração da fábrica, mas para além dela e que marcou época, caracterizada fundamentalmente pelo estímulo à vida comunitária e pela preocupação com a preservação do meio ambiente”.
Quando Franz Müller faleceu, em 1920, os próprios operários encomendaram um busto em sua homenagem.
Desmonte A socióloga lembra que a fábrica teve papel fundamental na preparação de mão-de-obra da área têxtil. “Com a sua venda para o grupo J.J.Abdalla, muitos empregados deixaram a Vila e abriram pequenas indústrias na Vila Americana”, afirma. Um dos motivos que levaram os Müller Carioba a desistir da empresa seriam as restrições impostas aos alemães durante a Segunda Guerra, o que incluiu a suspensão de crédito para que promovessem a modernização da produção. “Mas, já na virada para os anos 1940, a Carioba já enfrentava uma concorrência muito grande de indústrias emergentes e a própria diversificação do mercado, com preferência por outros tipos de tecidos”, acrescenta.
O grupo Abdalla chegou a expandir a fábrica e a Vila Operária, mas também não conseguiu vencer a concorrência, viu esvair a mão-de-obra qualificada e enfrentou inúmeras questões trabalhistas. “A década de 1970 foi marcada por greves e os empregados eram pagos em tecidos, que vendiam para sobreviver”, diz Maria José. A Carioba encerrou suas atividades em 1975 e, no início dos anos 1980, as terras acabaram divididas em lotes que serviram como indenização aos trabalhadores. Um acordo com a Prefeitura de Americana permitiu conservar o patrimônio arquitetônico da fábrica, enquanto a casa-sede da Fazenda Salto Grande foi transformada no Museu Histórico e Pedagógico. Quanto ao paraíso, seu destino foi mais cruel: “Autorizados a reaproveitar o material das casas em estilo alemão para construir outras em seus lotes, os empregados demoliram a Vila Operária em dois meses”.
Família Müller doa obras e fotos raras à Unicamp
A família Müller Carioba doou para a Unicamp, em setembro de 1982, uma coleção com perto de 300 livros em alemão, grego, latim, inglês, hebraico e francês, edições dos séculos 16, 17, 18 e 19. Entre eles, um exemplar da Divina Comédia, de Dante Alighieri, impresso em 1797 com páginas em branco e a tradução manuscrita; a peça Édipo in Colono, de Sófocles, também no original em grego e a tradução manuscrita; e uma obra toda manuscrita em inglês e alemão do poema autobiográfico de Lord Byron, Childe Harold’s Pilgrimage.
Em carta ao professor Carlos Franchi, então diretor do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da Unicamp, Joaquim Müller Carioba pede que a doação seja recebida “como prova do enraizamento na terra que tão bem recebeu Franz Muller e que ele tanto amou”. Juntamente com os livros, disponibilizados na Biblioteca do IEL, vieram 48 fotos registrando fases da fabricação de tecidos e do plantio de algodão na Carioba. As historiadoras Maria Dutra Lima e Roberta Botelho, do Arquivo Edgard Leuenroth, estão trabalhando na identificação, catalogação e contextualização das imagens, quase todas de autoria do fotógrafo Otto Rudolf Quaas e datadas duas primeirs décadas do século 20.