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Argentina: a política nas ruas
Fernando de Tacca
Buenos Aires A atividade política na Argentina sempre surpreendeu a todos. A política faz parte da vida dos nossos vizinhos, sejas nas manifestações de rua ou nas conversas do cotidiano. Qualquer café de Buenos Aires tem mais de um jornal à disposição dos clientes. Mas, mesmo assim, ainda se fala em alienação... Depois da saída do presidente De La Rua, em dezembro de 2001, as organizações políticas sentiram a força de manifestações populares e estão cada vez mais nas ruas, quase todos os dias.
A sociedade contemporânea centra-se em deslocamentos intensos de pessoas, de fluxo de informações e, principalmente, nos movimentos do capital. E, se não podem impedir as idas e vindas do capital, os argentinos fazem bloqueios em vias públicas, impedindo o fluxo de milhares de pessoas com os cortes de rotas, avenidas, pontes etc, atingindo, de certa forma, partes vitais da sociedade de consumo. O fato torna-se mediático imediatamente, sendo acompanhado sistematicamente pelas emissoras de televisão e pelas rádios, que chegam a informar as rotas bloqueadas. O tema mais atual são os grupos de piqueteros, alguns considerados brandos, outros radicais.
No último dia 31 de agosto, por exemplo, depois de uma grande manifestação nas imediações da Casa Rosada, um grupo de piqueteros radicais, denominado “Quebracho”, enfrentou a polícia, que tenta portar-se como nas democracias, não aceitando o conflito direto, evitando ao máximo desdobramentos que podem resultar em prisões e mortes. As manifestações dos grupos piqueteros sempre têm questões sociais imediatas como reivindicação: trabalho, saúde e melhores condições de vida, muitas vezes solicitando interferência do Estado em questões localizadas, como alimentação nos comedores públicos (restaurantes populares) e ações em bairros pobres.
Esses grupos mobilizam-se além dos partidos e da sociedade civil organizada, e suas tomadas de posição são sempre feitas em assembléias populares. O “Quebracho” tem origem no movimento estudantil e seus principais líderes são da Faculdade de Jornalismo de La Plata. Em 1993, romperam com o Partido Intransigente, criando o Movimento Popular de Unidade Quebracho, liderados por Fernando Esteche, atualmente com 38 anos e que, depois de muito tempo preso, é procurado pela polícia (segundo El Clarín, “ele ainda mantém um look de adolescente”). O movimento passou a se chamar Movimento Patriótico Revolucionário Quebracho, com incorporação de outros movimentos piqueteros. Os piqueteros brandos são reconhecidos como amigos do governo e têm origens diversas, que vão do movimento montonero ao próprio peronismo.
A questão da insegurança que hoje permeia a vida da classe média argentina tomou força com as caminhadas de um novo personagem na vida pública Juan Carlos Blumberg. Depois de perder seu filho, assassinado em um seqüestro, Blumberg liderou três manifestações que já levaram milhares de pessoas para as ruas, reivindicando penas mais duras aos delitos e maioridade a partir dos 16 anos.
Nos últimos anos, a classe média foi muito atingida com a perda de valor dos salários. Também houve uma perda da qualidade de vida, com a instabilidade no emprego e a devastação dos serviços sociais.
Mesmo sem a presença de um populismo clientelista no governo, a imagem dos antigos mitos aparecem sempre nos cartazes, como a memória do peronismo. Os meios de comunicação, acusados de instrumentos da classe dominante pelos grupos de esquerda, atualmente elogiam uma polícia mais dura com os piqueteros, dizendo que o governo Kirchner saiu da imobilização desde que assumiu a presidência.
Nos últimos dias, depois de muitos bloqueios a uma determinada bilheteria de metrô, na estação Constituición, quando os grupos piqueteros abriram as catracas para todos, o governo agiu rápido e impediu tal ação. Essa estação é um importante entroncamento com convergência de linhas, incluindo os trens que vão para a periferia. A escolha dessa estação faz parte de uma lógica contemporânea das redes e, como um nó importante desse sistema, a ação passa a “informar” toda a rede em verdadeiro spam.
Em meio às manifestações na Casa Rosada, podemos entrar em um acampamento de um grande grupo de ex-combatentes da guerra das Malvinas, com roupas militares, que levantou ali suas barracas permanentemente para reivindicar direitos sociais e reconhecimento da sociedade. E, depois de uma grande manifestação, com bombas de gás, correrias, prisões, também podemos encontrar nesse mesmo espaço um manifestante sozinho com sua indignação sobre algum fato. Ou seja, a Praça de Maio, território da manifestação política, é ocupado constantemente, e a Casa Rosada está sempre preparada com grades de segurança contra manifestantes.
Toni Negri, autor de Império e recentemente do livro Multidão, que pode ser considerado uma continuação do primeiro, dedica uma atenção especial sobre a Argentina neste último livro, tendo como ponto de partida a revolta de dezembro de 2001. Para Negri, a reação da população argentina foi muito criativa. Nela, muitos trabalhadores assumiram as próprias fábricas e os debates políticos criaram uma rede de assembléias populares de bairros.
O filme Buena Vida Delivery traz, dentro da temática social contemporânea argentina, a história de um pequeno industrial de churros falido, que mantém somente sua velha maquinaria e tenta convencer trabalhadores desempregados a se associarem a ele. Nesse contexto, também foram fortalecidos os protestos dos piqueteros. Para Negri, os ativistas de todo o mundo olham para a Argentina como uma fonte de inovação e também de inspiração. Em recente entrevista para o jornal El Clarín, Negri disse que a Argentina é “um dos laboratórios da sociedade pós-moderna”.
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Fernando de Tacca é fotógrafo, mestre em Multimeios (Unicamp), doutor em Antropologia (USP), professor no Departamento de Multimeios/IA, e editor da Revista Studium (www.studium.iar.unicamp.br). Assumiu a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Buenos Aires, com curso de pós-graduação sobre Antropologia e Imagem no Brasil, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.
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