LUIZ SUGIMOTO
Sobrevivente é o nome da exposição que fica aberta até 30 de setembro na Galeria de Arte da Unicamp. Mario Gruber é o sobrevivente. Pintor, ceramista, gravador, escultor, muralista, desenhista, cenógrafo e professor, hoje com 78 anos, o artista conviveu com grandes personalidades desde o Modernismo até os dias atuais Di Cavalcanti, Portinari, Mario Schenberg, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Neruda, Cortázar, apenas para citar alguns e gosta de contar suas histórias sempre que se lembram dele. “A mostra traz uma produção recente e autobiográfica. Chama-se Sobrevivente porque convivendo com Mario em seu ateliê, percebi o drama de um homem praticamente octogenário, que sabe de sua importância e sabe também da perversidade com que o meio trata os grandes artistas no Brasil”, afirma o artista visual Saulo Di Tarso. Sem que seja este seu ofício, é por deferência ao mestre que Di Tarso tem assumido a curadoria das exposições, trazendo para a Unicamp 20 telas dentre 100 que estão nas mãos de um único colecionador.
No último dia 12, enquanto acertava os detalhes para a abertura da mostra, o professor Antonio Carlos Rodrigues, o Tuneu, coordenador da Galeria de Arte, resumia sua opinião sobre o artista que estava para chegar. “Mario Gruber faz parte de uma geração de desbravadores. Ele, Aldemir Martins, Marcelo Grassmann e outros artistas amigos de Ciccillo (Francisco Matarazzo Sobrinho, fundador do Museu de Arte Contemporânea) montaram as primeiras bienais literalmente no braço. Abriram espaço para um mercado profissional que foi se constituindo nos últimos 50 anos e, nesse sentido, são nossos heróis. Sou de uma geração que aprendeu a apreciar desenhos no suplemento literário do ‘Estadão’, que todos esses desenhistas e gravadores ilustraram”, recorda.
Ao leitor, este espaço permite oferecer apenas uma pincelada da trajetória de Mario Gruber. Ele nasceu em Santos, em 1927. Autodidata em pintura, estudou escultura com Nicola Rollo, gravura com Poty, pintura mural com Diego Rivera, foi pupilo de Édourd Goerg em Paris. Conheceu gente como Mario Zanini e Bonadei quando pintava em praça pública. Trabalhou com Di Cavalcanti em 1948. Fundou o Clube de Arte de Santos e a União dos Artistas Plásticos de São Paulo. Ensinou no Museu de Arte Moderna, na Fundação Armando Álvares Penteado e, na década de 70, montou oficina onde trabalharam artistas como Wesley Duke Lee e Frederico Nasser. A partir de 1979, montou ateliê em Nova York, dividindo suas atividades entre esta cidade, Paris e São Paulo. Nelson Pereira dos Santos o homenageou em 1982, com o curta-metragem A Arte Fantástica de Mário Gruber.
Entrevista Desculpando-se pelo atraso, Mario Gruber preferiu conceder a entrevista do lado de fora da Galeria da Unicamp, onde podia acender a cigarrilha. Antes, um único pedido: ser chamado de “você”. Estando bastante disponíveis as referências sobre suas obras e técnicas, interessava que o artista falasse de sua vida, apesar do tempo obviamente exíguo até a cerimônia de abertura. “São sessenta anos de carreira”, alertou. Ainda assim, em 40 minutos, Mario Gruber discorreu sobre o Modernismo, o Grupo Santa Helena e o Grupo dos 19, ao qual Tuneu atribui o mérito de iniciar o processo de profissionalização nas artes plásticas.
“Na minha época o trabalho artístico era uma vida de pobreza, ainda mais para nós jovens. Alguns saíam para a publicidade, outros persistiam. Mario de Andrade, em trabalho que ficou inédito até pouco tempo, disse que a escola paulista teve origem proletária. Volpi, Rebolo, Manuel Martins, Carnicelli vinham da classe trabalhadora; só depois a arte se abriu para os Jardins e a burguesia industrial paulista”, recorda Mario Gruber. No grupo que denominou de “artistas proletários”, Mario de Andrade lembrava que Volpi, Rebolo e Zanini, por exemplo, eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Manuel Martins, aprendiz de ourives.
Gruber explica que depois do movimento modernista predominava o Grupo de Santa Helena. A sua geração, com talentos como Marcelo Grassmann, Otavio Araújo e Sacilotto, surgiria no momento em que se processava a formação dos museus de arte moderna de São Paulo, decorrência de uma disputa entre Assis Chateaubriand e Ciccillo Matarazzo, sendo que o desfrutava do apoio de Nelson Rockfeller, com o qual mantinha relações comerciais. “Hoje tenho consciência de que, se museus estavam sendo germinados, precisava-se de artistas. Foi com foco nos museus que a União Cultural Brasil-Estados Unidos convocou minha geração para mostrar o que estava sendo produzido”, comenta.
A exposição dos 19 pintores em 1947, na Galeria Prestes Maia, foi um acontecimento social e cultural, com apresentação no recinto da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. E foi quando, aos 20 anos de idade, Mario Gruber ganhou o primeiro prêmio de um júri que tinha Di Cavalcanti, Anita Malfatti e Lasar Segall. “O segundo colocado foi Aldemir Martins e, o terceiro, Cláudio Abramo, que nunca assumiu sua condição de artista gráfico de primeira qualidade e saiu para o jornalismo, dando no que deu. De certa maneira, passamos a ser considerados artistas de vanguarda”, acrescenta o artista.
Efervescência Segundo Mario Gruber, era um momento de efervescência nas artes visuais, o que atribui não apenas à expectativa da realização de bienais, mas também a outros vetores, como o alívio pelo fim da guerra e a motivação para a reconstrução das cidades. “Era uma terra virgem para se plantar”, observa. Bom momento que, no entanto, não implicou em imediata profissionalização dos artistas. “Sobrevivi graças a ligações culturais e afetivas na universidade, principalmente na sociologia, onde estavam amigos como Roger Bastide e Florestan Fernandes. Florestan comprava minhas gravuras, assim como médicos. Eu também tinha um primo professor, casado com uma prima-irmã, chamado Antonio Candido de Mello e Souza”, conta.
Na efervescência emergiram alguns movimentos de arte, como o movimento concreto, que atraiu Sacilotto, Grassmann e Octavio Araújo. A propósito das tendências, Mario Gruber aproveita para corrigir um erro dos historiadores, que atribuem influência exagerada de Tarsila do Amaral sobre o Grupo dos 19, que na verdade tinha vários entusiastas do expressionismo alemão. “Di Cavalcanti dizia que eu viria a ser um pintor próximo de Courbet. Não se isso se deu, mas é fato que eu já estava mais interessado em arte social. Acabei me engajando em movimentos políticos, onde a utilização da arte foi breve. Fiquei do Partido Comunista por 30 anos”, informa.
Em 1951, quando voltou dos dois anos de estudos em Paris, Mario Gruber encontrou a pintura abstrata em evidência e, não por acaso, Di Prete seria o ganhador das primeiras bienais. “No Clube dos Artistas, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti e outras figuras expressivas do modernismo andavam cabisbaixos e sorumbáticos. Essa tendência só desapareceu quando eu, Vilanova Artigas e Waldermar Cordeiro metemos o pé na porta do museu, defendendo que a arte contemporânea possuía várias tendências e que uma bienal deveria cumprir o papel de mostrar tudo o que acontecia em nível mundial. Veio então aquela belíssima exposição da pop art, com Lichtenstein, Andy Warhol, Rauschenberg, Jasper Jonhs, e as bienais passaram a efetivamente influir no meio artístico”, recorda.
Mario Gruber ilustrou as grandes greves de 1952, que pipocaram pelo país a pretexto da fome e da carestia, mas que na verdade tinham cunho político antiimperialista. Segundo ele, foi Mario Schenberg, seu crítico, quem percebeu a sua perda de ambição pela arte de caráter social no decorrer do tempo. “Comparo minha atividade daquela época à de um escritor que faz jornalismo. Assim como romance é um trabalho mais longo e denso, que não pode ser jornalístico, passei a considerar minha pintura e gravura como romance e não como jornalismo”, comenta. Há alguns anos, Gruber fez outra analogia que ficou marcada: “Para mim, a gravura em metal em preto-e-branco é música de câmara, enquanto a pintura tem o som da orquestra sinfônica”.
Memórias Músicos da Unicamp já abriam a exposição na Galeria e Mario Gruber não teve tempo para falar dos amigos. “Fui protagonista de muita coisa e conheci muita gente, inclusive alguns prêmios Nobel. Infelizmente, as pessoas estão morrendo e não tenho testemunhas do que eu digo”, lamenta. Já pensou em escrever um livro de memórias, mas não vê como, já que produz entre 100 e 120 quadros por ano. Calcula-se que o total de obras na carreira, considerando a gravuras, chegue a 12 mil. “Como não tenho talento para guardar dinheiro, estou produzindo mais do que nunca. Vivo da pintura. Se não pinto, não como, embora não seja um grande comilão”, brinca.
Quanto a um livro, o fiel amigo Saulo Di Tarso revela que já está organizando uma trilogia intitulada Mario Gruber e a metafísica dos planos, que espera lançar em 2007, comemorando os 80 anos do artista. O primeiro volume contará a trajetória do artista: biografia, obra gráfica, pinturas, personalidades com quem ele cruzou e trocou idéias; o segundo tratará de pintura; e o terceiro volume terá imagens de seus ateliês. “Sua outra grande obra foram os ateliês que montou, sem paralelos na América Latina. Eram espaços para exposição de outros artistas e de encontro para reflexões”, afirma Di Tarso, que guarda uma opinião definitiva sobre Mario Gruber: “Ele tem a envergadura de um Portinari”.