| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 337 - 18 a 24 de setembro de 2006
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6 - 7

A práxis (e a teoria)
política no centro do debate

O arcabouço institucional do país, as políticas compensatórias, as mutações da geopolítica latino-americana, os conteúdos partidários (ou a falta de) e a cena política brasileira são debatidos nesta e na página seguinte por Gláucio Ary Dillon Soares, pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), pelo professor José Álvaro Moisés, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e por Rachael Meneguello, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Os três cientistas políticos participaram do 3º Congresso Latino-Americano de Ciência Política, evento que reuniu na Unicamp, entre 4 e 6 de setembro, centenas de docentes e pesquisadores do Brasil e do Exterior. Dividido em 14 áreas temáticas e tendo como tema central “Democracia e Desigualdades”, o congresso foi promovido pela Associón Latino Americana de Ciencia Política (Alacip) e teve o apoio do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Unicamp.

Jornal da Unicamp – O(a) senhor(a) acompanha e estuda a sociedade brasileira há décadas, podendo fazer comparações entre passado e presente e até mesmo especulações sobre o futuro. Em que sentido ela tem evoluído, digamos, desde o fim da ditadura militar? Para melhor? Para pior?
Gláucio Soares – Uma parte considerável dos direitos da cidadania foi atendida pela Constituição de 1988. Trata-se, evidentemente, de uma mudança para melhor. Ela foi elaborada nos anos imediatamente anteriores para ser uma reação contra o furto de direitos – políticos e sociais – feito pela ditadura. Nesse sentido, parte da Constituição de 88 aponta para o passado em reação a este furto, mas não para o futuro. Ela é notavelmente omissa no que concerne aos deveres da cidadania. Nós pensamos naquilo que não tínhamos durante a ditadura e não pensamos naquelas obrigações que deveríamos ter para construir uma sociedade justa e igualitária.

A Constituição de 88 tem nove menções a deveres, sendo que oito delas são precedidas por direitos. E tem uma quantidade muito grande de menções a direitos, garantias e aposentadorias, sem ter uma contrapartida que seja minimamente equivalente àquilo que a cidadania deve fazer para merecer a cidadania. Portanto, recuperamos os direitos e não criamos os deveres. Uma sociedade não pode existir sem o equilíbrio entre os dois, porque cada direito significa que alguém tem o dever de atendê-lo. E, a menos que tenhamos uma imagem totalmente não-realista do Estado que tudo pode – que tira dinheiro de pedra –, algum setor da população vai ter de pagar por isso. Alguns dos desequilíbrios que temos são derivados da incapacidade de ter esse equilíbrio entre direitos e deveres na nossa Constituição. Já avançamos bastante. E agora temos que avançar mais. O olhar tem que ser para o futuro e não para o passado.

José Álvaro Moisés – Houve evolução em alguns aspectos extremamente importantes. Em primeiro lugar, acho que precisa ser assinalado que o Brasil, com a luta de resistência contra a ditadura, e também com os processos de participação que se ampliaram a partir dessa luta de resistência, começou a se definir melhor em termos de uma cultura democrática. Passou a aceitar os valores democráticos, como, por exemplo, a tolerância; simultaneamente, passou a aceitar os valores republicanos.

Há, na sociedade, uma percepção maior do que havia no passado, e uma certa tendência de cobrar, dos governantes e dos políticos, valores republicanos, ou seja, que esteja, em primeiro lugar, o interesse público e não a valorização estrita do interesse privado. O interesse privado é legítimo, mas ele não pode predominar sobre o interesse público, no que diz respeito às definições do país. Isso vem aumentando. O Brasil não é o único país onde tem corrupção. O que aconteceu nesse período mais recente é que nós tivemos mais informação e, ao mesmo tempo, mais cobrança da chamada sociedade civil em relação a não deixar de punir um esquema que era muito incorporado – e assimilado – sem maiores críticas.

Rachel Meneguello – Em termos da construção democrática institucional, a sociedade brasileira evoluiu muito. Se compararmos o Brasil atual com o de há 20 anos, desde o fim da ditadura militar, avançamos consideravelmente na conquista de direitos e na consolidação das instituições que dão garantia às ações do Estado e à representação política. Os patamares de organização e mobilização políticas evoluíram muito, assim como a relação da sociedade civil com o estado democrático. Somos, no entanto, portadores de um importante paradoxo: se por um lado construímos patamares cada vez mais sólidos para o funcionamento do sistema democrático, em que os cidadãos brasileiros apóiam o sistema democrático e reconhecem a importância das instituições representativas para o seu funcionamento, por outro, apresentamos níveis altos, generalizados e continuados de desencanto e desconfiança para com a política, os políticos e as instituições.

Em parte, esse panorama deve-se ao fato de que o experimento da Nova República não foi capaz de redimensionar a relação dos cidadãos com a política representativa, emergida dos anos da ditadura implantada em 1964, mesmo tendo havido uma intensa e regular dinâmica eleitoral que marcou todo o processo de democratização. Deve-se igualmente ao fato de que ela não se revelou suficiente para diminuir as desigualdades.

JU – Por outro lado, persiste o problema crônico do Brasil, que é a má distribuição de riqueza. De uma década para cá, o governo tem tentado estancar a tensão daí decorrente com políticas compensatórias de assistência social. Em sua opinião, essas políticas representam solução para a desigualdade social ou se trata de simples instrumento político?
Gláucio Soares – Desde que as PNADs passaram a ser coletadas com uma metodologia comparável, durante muito tempo, aproximadamente 20 anos, a desigualdade não mudou no Brasil. Ela estava estável, com pequenas variações ano a ano, mas num nível muito alto, quer dizer, estava muito desigual. Nos últimos oito anos, essa desigualdade despencou, o que não significa que foi reduzida à metade. Ela foi reduzida significativamente, particularmente em 2003, que foi o ano de maior queda singular da desigualdade, depois da queda verificada durante o primeiro e segundo anos do real. Isto, evidentemente, é algo que todos queremos.

“Alguns dos desequilíbrios são derivados da incapacidade de ter esse equilíbrio entre direitos e deveres na nossa Constituição”
Gláucio Soares

Creio que muitos gostaríamos que essa redução não dependesse de assistencialismo. Por que isso? Porque o assistencialismo tem que ser renovado ano a ano. Se ele não perdurar no ano seguinte, a desigualdade aumenta. Ou seja, o ideal seria, talvez como disse Cristovam Buarque, ensinar a pescar e não dar o peixe. Mas, enquanto as pessoas não sabem pescar, tem sim que dar o peixe. Do contrário, teremos miséria; ou, em última instância, muita pobreza.

É mais fácil redistribuir a renda do que a riqueza. E certamente a distribuição de riqueza provocaria problemas bastante sérios de instabilidade política. A renda está sendo redistribuída, e muito bem. É ótimo que esteja assim, e temos que progredir durante mais algumas décadas. Não é só uma questão de dois ou três anos. Se seguirmos nesse ritmo, vamos precisar de mais uns 20 anos para sermos uma sociedade realmente justa.

José Álvaro Moisés – Nós tivemos melhoras nesse panorama, que já vêm desde o governo anterior e até mesmo de preocupações que surgiram lá atrás, durante o período da democratização. Trata-se de uma área em que vários governos vêm dando pequenas contribuições. Diria que estamos melhorando, pouco, insuficientemente, mas estamos melhorando. Todos os índices mostram isto. Nos últimos anos – tanto no governo anterior como neste – foi adotada uma série de políticas chamadas compensatórias ou de transferência de renda.

Essas políticas valem por um período muito curto de tempo. Elas precisam estar associadas a políticas que gerem mais renda, emprego, além de qualificar as pessoas do ponto de vista educacional para que elas ocupem uma posição melhor na sociedade. Não dá para conceder dinheiro a vida inteira para os segmentos mais pobres. Isso não resolve. Primeiro, porque o Estado não vai ter dinheiro suficiente. Depois, daqui a cinco anos, o sujeito que recebe hoje vai continuar tão pobre como antes, sem nenhuma qualificação e ainda por cima dependente do Estado.

Isso cria uma enorme probabilidade de surgir um novo tipo de clientelismo, que é aquele associado à transferência de renda. Então, momentaneamente, é importante fazer isto porque ninguém quer ver as pessoas passando fome. Mas é preciso associar essas políticas com mecanismos que permitam que essas pessoas se libertem da política compensatória. Eu acho que isso tem que ver com educação e, principalmente, com a qualificação imediata para o trabalho. As pessoas podem ser qualificadas eventualmente para funções de empregos que exigem tarefas mais simples, mas elas podem – e devem – também ser preparadas para, eventualmente, montar micro-empresas, cooperativas etc. Assim, elas deixariam de ser dependentes do Estado. Isso exige educação.

Rachel Meneguello – Nem uma coisa, nem outra. Este foi já o desafio da social-democracia e do estado do bem-estar social, do qual o resultado histórico foi a reiteração das desigualdades, e este permanece o dilema dos governos democráticos.

Quando o atual governo, dentro de um projeto democrático, elege como centrais políticas compensatórias e de universalização do acesso às condições mínimas de bem-estar , como por exemplo o programa bolsa-família, reflete o dilema imposto pelas condições de pobreza de grandes contingentes e o da convivência necessária de estruturas democráticas com políticas compensatórias de cunho assistencialista.

Não há dúvida que os resultados exitosos dessas políticas constituem um poderoso recurso político de sustentação aos governos em funcionamento, mas conferir-lhes caráter meramente instrumental é desconhecer seu potencial inclusivo.

JU – A geopolítica latino-americana tem sofrido mutações importantes nos últimos anos, com governos ditos de esquerda mas sem a coesão necessária para se apresentarem como um bloco alternativo às econômicas caudatárias da globalização. Que análise o(a) senhor(a) faz desse quadro? Em que medida essas mudanças podem mudar a correlação de forças numa região historicamente problemática?
Gláucio Soares – Eu não sei se os governos são de esquerda. Na verdade, ou nós interpretamos essa dimensão de esquerda ou direita de acordo com aquilo que significou em momentos diferentes e em sociedades diferentes, ou nós a repensamos. Evidentemente, não tem mais nada que ver como se sentavam os jacobinos na assembléia... E também não tem muito que ver com a idéia, que certamente ficou arraigada durante a década de 60 e 70; ela era meio revolucionária mas altamente estatista, esquecendo-se de que o comunismo era o fim do Estado e não a glorificação do mesmo. O que é a esquerda hoje? Creio que o que sobra do conceito é o de justiça social. E, nesse sentido, os governos que têm crescido são de esquerda? Não é o que ressalta.

A Venezuela, por exemplo, vive um período extremamente favorável, com os altos preços do petróleo, mas é um país rachado quase que literalmente no meio. É bi-modal: há os que adoram Chávez e os que odeiam Chávez. Todos os países precisam de alguém que una a população, e não que a divida. Na minha leitura, Chávez está muito mais preocupado com a sua imagem pessoal do que com o bem-estar da Venezuela. Trata-se de um caudilho como muitos que tivemos, mas que, ao invés de falar a língua dos caudilhos de direita, fala a língua dos caudilhos de esquerda. Não vejo muito diferença.

No Chile, Michelle Bachelet representa a continuação de uma política que, de acordo com alguns, é a justiça social possível. O Chile tem um coeficiente de concentração de renda bem melhor, mais baixo que o do Brasil. É um país que está crescendo economicamente, com essa boa vantagem de ter uma distribuição de renda mais eqüitativa. Não obstante, o Brasil supera o Chile em muitas coisas e a gente não sabe disso. Os empresários brasileiros são bons. A taxa de inovação empresarial no Brasil é bem mais alta do que a do Chile. Nós estamos conseguindo exportar cada vez mais, em parte por causa dos empresários, a despeito de uma moeda que conspira contra as exportações e favorece as importações. Isto se aplica tanto ao setor agrícola como ao industrial e ao de serviços.

Nós passamos 13 anos tendo um déficit bilateral com a Argentina. De um dia para outro, o senhor Kirchner decide limitar as importações brasileiras, fugindo ao protocolo que estabeleceu o Mercosul, e o nosso querido presidente não teve simplesmente peito para fazer aquilo que a maior parte dos países faria, que é adotar medidas contrárias. Ele tentou apaziguar. Eu seria muito mais confrontacioanista.

Já no caso da Bolívia, não seria. Porque nós abusamos da Bolívia durante governos que eram débeis em relação ao Brasil. Não existe um conflito ideológico aparente entre Bolívia e Brasil, entre Evo e Lula, mas sim algumas contas que podem ser resolvidas. Por sua vez, Evo Morales tem seu público interno e seu séqüito de radicais, que se preocupam mais com a expressão de sua ideologia do que com o bem-estar do povo que eles juraram servir. Talvez porque não saibam distinguir as duas coisas – que a ideologia pessoal é uma coisa, e o bem-estar da população é outra. Creio, sim, que é possível uma renegociação. Os preços estavam realmente baixos, mas quem pagou todo o gasto foi o Brasil. Isto precisa ser renegociado com bases justas.

É preciso ver o quadro latino-americano no contexto do quadro mundial. George Bush é aquilo que nós chamamos de um presidente lame duck [pato manco]. É um presidente enfraquecido, extremamente desprestigiado, sem projeto de governo para o fim de seu mandato. E, contrariamente do que foi a tradição de outros presidentes americanos, de serem prestigiados dentro do país e desprestigiados fora, ele é hoje muito desprestigiado nos dois campos. Seu governo tem as mais baixas avaliações de muitas décadas. Então, não temos mais que lidar com aquela arrogância pessoal – e com a corrupção – de George Bush. Temos, portanto, um pouco mais de espaço, mas isso não dura para sempre. Temos que aproveitá-lo e rezar para que o substituto seja uma pessoa comedida como, acredito, foi Clinton.

“Há, na sociedade, uma percepção maior do que havia no passado, e uma certa tendência de cobrar valores republicanos”
José Álvaro Moisés

José Álvaro Moisés – Acho muito difícil falar hoje em esquerda e direita. Não é muito claro o que é ser de esquerda e de direita. Se pensarmos em termos tradicionais, o perfil de alguns governos pode ser situado como nacionalista e/ou reformista, não necessariamente como sendo de esquerda. Da mesma maneira, alguns governos que têm um perfil liberal não podem ser estritamente chamados de direita. Talvez não seja um bom ponto de partida começar análise por aí.

Por outro lado, acho que têm ocorrido mutações cujo efeito, principalmente, é o de questionar os modelos que foram adotados nos últimos anos para resolver os problemas econômicos – entre os quais, inflação, estabilidade e geração de emprego. Esses novos governos latino-americanos estão colocando em questão esses problemas. No caso do Brasil, constata-se que há uma maior pressão popular por demandas de atendimento social a partir do fato de nós conseguirmos ter uma certa estabilidade econômica e, ao mesmo tempo, termos conseguido controlar o imposto representado pela inflação. Quando você faz isso, que é um valor público, as pessoas não apenas percebem que o Estado pode ter um papel importante, como também liberaram tempo e energia para demandar mais. Desse ponto de vista, eu acho que as mudanças são positivas e estão criando uma nova realidade.

Rachel Meneguello – Boa parte dos principais governos que constituem a América Latina hoje, embora tenham aproximações ideológicas, têm projetos distintos de condução do papel do Estado e da economia, e esses são os principais pontos que marcam a ausência de coesão. O que os une é uma tendência a um diálogo mais intenso e ativo com as populações pobres nacionais e com os movimentos sociais em crescente mobilização, resultantes da agudização dos conflitos sociais da região.

JU – Imaginava-se que a ascensão de Lula trouxesse um governo de esquerda, mas o próprio presidente diz que jamais foi de esquerda. Como o senhor(a) analisa especificamente o caso brasileiro? Lula é um fenômeno político – nos moldes do varguismo – ou apenas uma contingência eleitoral?
Gláucio Soares – Não vou tentar encaixar Lula dentro de algum modelo preexistente. De fato, a América Latina é rica em candidatos que tinham uma história pessoal e política de esquerda e que, uma vez no governo, não implementaram políticas de esquerda. Fujimori, por exemplo, começou como sendo uma pessoa mais moderada do que o seu oponente. Menem surgiu dentro de um partido que havia tido uma tradição de esquerda. Fernando Henrique Cardoso era um líder intelectual de esquerda. Nada disso aconteceu, talvez em parte, não pequena, porque o espaço para manobra é muito menor do que, fora do governo, nós acreditemos que seja.

Lula é um fenômeno que, por enquanto, eu coloco numa categoria própria. Ele teve um grande benefício, diferentemente de FHC, que foi um comércio internacional e uma estrutura econômica mundial muito mais favoráveis do que era em outros tempos. Eu gostaria que o país tivesse se beneficiado mais disso. Eu avalio, ainda positivamente, o governo do Lula. Mas temo muito que um segundo governo seja desastroso. O mundo está mudando para pior e, de acordo com os indicadores, o Brasil não saiu da baixa taxa de crescimento. A grande conquista do governo Lula é a redução da desigualdade.

José Álvaro Moisés – Em parte, Lula tem razão. Nunca o vi se definir como um líder de esquerda. Nem o PT jamais se definiu como um partido que tivesse feito adesão à revolução socialista. O partido queria fazer uma democracia, tendendo na direção do socialismo mas com uma forte ênfase na utilização dos mecanismos democráticos, o que não necessariamente define se você é de esquerda ou de direita. Como o Brasil é um país de muitas desigualdades, uma definição conceitual da democracia, com vistas a incorporar, no sistema político, contingentes de pessoas que não tinham nenhuma perspectiva da sua própria cidadania, tem um efeito muito forte de transformação e de ampliação do quadro político.

Acho que é nesse contexto que vem a experiência de Lula. Ele é representante de um movimento social que, fundamentalmente, reivindicou o direito de cidadania – política e social – desde o direito de greve até o direito de ter uma vida melhor. A reivindicação era a de que o Estado universalizasse certos elementos fundamentais que determinados segmentos da sociedade tinham e que certos setores subordinados, não. Desse ponto vista, Lula foi uma espécie de porta-voz do processo.

Agora, durante esse processo, houve mudanças. O próprio Lula mudou bastante. Talvez nos últimos anos, particularmente depois da campanha de 2002, ele assumiu características que podem aproximar o seu perfil do populismo clássico brasileiro, que envolve às vezes uma capacidade da liderança – e do Estado – prometer mais do que pode fazer. E, também, num certo sentido, fazer em nome do povo sem necessariamente significar que isso represente a incorporação desse mesmo povo na tomada de decisões que estão afetando os destinos coletivos. Esse é um limite que ocorreu nesses últimos anos e com o qual teremos de conviver proximamente.

Imagino que personagens como o próprio Lula, num certo sentido, vivem essa tensão e essa contradição. Por conta desse perfil que o aproxima mais da tradição populista brasileira, ele se descolou do partido e tendeu a estabelecer uma relação direta entre ele e a massa, entre ele e o eleitor, esquecendo-se que foi o partido que fez a mediação que propiciou que ele chegasse aonde chegou.

“Se compararmos o Brasil atual com o de há 20 anos, desde o fim da ditadura militar, avançamos consideravelmente”
Rachel Meneguello

Rachel Meneguello – Quem considera Lula uma contingência eleitoral não conhece a história política da democratização brasileira. Sua atuação como importante liderança do movimento sindical nos anos 70, e como liderança político-partidária a partir da formação do Partido dos Trabalhadores, conferiu bases institucionais e de representação política legítimas para sua ação política. Quando Lula mencionou, na campanha de 2002 e nos anos anteriores, que “não era de esquerda”, creio que se referia ao seu não-pertencimento aos grupos de esquerda marxistas-leninistas vinculados a uma geração revolucionária que teve que enfrentar a própria incapacidade de pensar o fim da ditadura fora dos parâmetros vanguardistas.

Foi no terreno da denominada “esquerda social”, marcada pelo surgimento de novos paradigmas de intervenção apresentados pelos movimentos sociais e pela onda associativista dos anos 80, ainda durante o regime militar, que Lula definiu suas bases de ação política, e não seria por acaso que o PT, já em fins dos anos 80, apresentaria um projeto político fundado na idéia do socialismo democrático. É desde então que o PT e Lula se colocam na cena pública como força política alternativa.

Se esses aspectos explicam por que Lula não é uma contingência, também reforçam o fato de que ele é um fenômeno que merece ser melhor estudado. Lula está em sua sétima campanha eleitoral, a quinta como candidato a presidente da República e, portanto, há 20 anos cultivando bases de sustentação.

JU – Nota-se que nessa eleição os conteúdos partidários são mais tênues que nas eleições anteriores. Os programas partidários se ocultam por trás das figuras públicas. O Brasil já está em processo de desideologizaçáo? Ou a ideologia já não serve para ganhar as eleições? Nesse contexto, o que pode emergir no quadro partidário após as eleições de 2006?
Gláucio Soares – Não sei se os conteúdos partidários nessas eleições são mais tênues. Quando digo que não sei, é porque é exatamente isto. Não tenho uma medida desse conteúdo. Os programas partidários se ocultam, sim, por trás das figuras políticas desde há muito tempo. O voto partidário é interessante porque poucos votam na legenda. O PT sempre foi o partido que teve mais voto de legenda. Mas era, mesmo dentro dos votos petistas, claramente minoritário. Isso, entretanto, não quer dizer que a preferência partidária não influencie o resultado das eleições. As pesquisas mostram que o eleitor que prefere um partido, vota no candidato daquele partido, ainda que afirme votar no candidato.

José Álvaro Moisés – Acho que não é muito apropriado falar de um processo de ideologização. Não acho que tínhamos, antes, uma realidade ideologicamente polarizada. Havia posições programáticas diferenciadas, mas não era bem uma polarização. Desse ponto de vista, não acho que houve um processo de desideologizacão. Acho que houve uma adaptação às circunstâncias. Elas têm que ver, por um lado, com as conseqüências do processo de globalização e, por outra parte, com a mudança da economia e da performance do Estado.

Deste ângulo, existem problemas que foram diagnosticados por todo mundo, tanto por intelectuais e partidários do PSDB como do PT. Eu mencionaria, por exemplo, a inflação e a estabilidade econômica como condição de se acionar o desenvolvimento e criar mais renda e emprego. Outro exemplo é o superávit primário – para pagar uma dívida que tem um efeito atroz sobre a economia brasileira. Eu responderia a pergunta com uma outra indagação: será que houve uma atenuação dos programas, ou a realidade aproximou partidos que pareciam estar em posições muito diferentes, mas que, para resolver os mesmos problemas, têm um cardápio de soluções que é meio restrito?

Não é possível inventar 30 alternativas para resolver os mesmos problemas, razão pela qual Lula tendeu a fazer muita coisa que o governo Fernando Henrique estava fazendo. Para manter a estabilidade, e até no caso das políticas compensatórias, ele adotou políticas semelhantes. Isso significa uma atenuação? Não. Significa que provavelmente elas sejam as mais adequadas. Agora, uma mudança de modelo, de enfoque, aí sim pode exigir uma contraposição maior dos partidos.

Rachel Meneguello – Considero que estamos vivendo uma das piores campanhas eleitorais dos anos democráticos recentes, reflexo, em boa parte, do desgaste da classe política e dos partidos com a crise do Congresso em 2005. Com graus cada vez mais elevados de desconfiança com relação aos políticos e à política representativa, o eleitor cada vez menos se dispõe a fazer parte da conexão que marca a relação de comunicação na campanha; as propagandas, por sua vez, estão mais inócuas e homogêneas, indicando que esse é um “tempo da política” de amplo desperdício. Pesquisas acadêmicas mostram, por exemplo, que a audiência ao horário eleitoral gratuito não tem influência sobre o voto dos eleitores, não altera suas tendências ou preferências.

Esse panorama é parte do fenômeno da homogeneização que marca as democracias eleitorais desde os anos 70, e não apenas o Brasil. No entanto, não se deve confundir a homogeneização das campanhas com a desideologização dos partidos. Não é difícil elencar distinções entre o PT, o PFL e o PSOL, no que respeita a seus projetos políticos, mas é próprio da dinâmica perversa das campanhas atenuar as diferenças em busca da ampliação do eleitorado. Note-se claramente que essa dinâmica não é privilégio das eleições brasileiras, mas de toda campanha eleitoral.

Contudo, para estimar o quadro partidário que vai emergir das eleições de 2006, dois principais pontos precisam ser elencados: os efeitos da crise de 2005 no Congresso e em específico no PT, que deverão levar a uma importante redução do número de cadeiras congressuais do partido, e o estatuto da cláusula de barreira, que deverá inviabilizar o ingresso dos pequenos partidos nas casas representativas e provocar certo realinhamento de forças partidárias. Não parece haver dúvida que o principal efeito da cláusula de barreira será uma representação partidária menos fragmentada nas casas legislativas.

JU – Os índices de violência explodiram nos últimos anos. A despeito de alertas de especialistas, pouco foi feito para impedir que quadrilhas inteiras agissem livremente no Estado, infiltrando-se – e beneficiando-se da – na máquina pública. Qual o efeito disso sobre a vida republicana num país em que muitas das instituições ainda buscam se consolidar? Ainda é possível reverter esse quadro?
Gláucio Soares – Os índices não explodiram. Isto é um erro. Se medirmos as taxas de homicídios, notamos que eles vêm aumentando de maneira retilinear desde que nós temos dados para o país todo [1979]. Não houve uma explosão, mas um crescimento que não foi detido. O que aumentou foi a participação do crime organizado no total das ocorrências, embora dados sobre isso sejam difíceis de se obter.

O grande problema derivado da presença de corrupção no setor público – que não é de hoje, talvez ela esteja mais exposta – é o crescimento do desprezo e da desconfiança da população em relação a tudo o que tenha que ver com político, governo e, mais distante, o Estado. O homem comum trabalha com o conceito de governo, quando, às vezes, os cientistas políticos trabalhariam com o Estado. É possível reverter? Sempre é possível. São conhecidos momentos e até eras de corrupção em vários países, que hoje têm índices e taxas muito mais baixos.

José Álvaro Moisés – O problema da violência é absolutamente central no regime democrático. Se a violência afeta a vida das pessoas, como a própria sobrevivência e o direito de ir e vir, ela está limitando uma liberdade civil muito importante e alguns dos valores democráticos mais significativos. Grupos da sociedade hoje se sentem tolhidos a ocupar o espaço urbano como lugar de lazer. Se esse problema não for resolvido, terá um efeito que é a desmoralização do papel do Estado e do papel da democracia.

Eu acho que o Estado e as elites brasileiros não estavam, em geral, preparados para enfrentar a gravidade desse problema, que, em grande parte, é também uma conseqüência da globalização. A expansão do tráfico de drogas, contrabando de armamentos ilegal nas fronteiras etc, são operações que têm uma dimensão global. Num certo sentido, diria que as nossas elites políticas e nossos administradores estão correndo atrás do tempo. Isto não minimiza o problema. Não acho que seja simples de resolver, mas acho que o problema exige fundamentalmente que o Estado brasileiro – o governo central, a União – estabeleça um processo de interação com os Estados e com os municípios para poder enfrentar a criminalidade.
Historicamente, o Estado brasileiro vem se ocupando de algumas questões centrais, como, por exemplo, educação e saúde. Acontece que o governo federal não se deu conta que o problema da violência é tão importante quanto. De que adianta garantir educação para as pessoas se elas não puderem ir à escola? Todos nós conhecemos experiências de escolas que foram invadidas por criminosos e foram transformadas em pontos de venda de drogas. A questão é a seguinte: por que a educação e a saúde são importantes para o governo federal, mas a segurança não é? Já passamos do tempo em que isto deveria ser articulado pelas três esferas. Não acho que os Estados têm de ter menos responsabilidade nisso, mas os governos estaduais e municipais não têm condições de resolver, sozinhos, o problema.

Vou dar um exemplo que veio à tona em debates realizados nos últimos meses. As nossas fronteiras, que são continentais, são porta de entrada de armamentos e drogas. Sabendo disso, o que é mais importante: controlar as cidades ou as fronteiras? É preciso controlar os dois, e isto exige mais investimento. Provavelmente nós temos que formar, a exemplo dos Estados Unidos, uma guarda nacional que seja séria. Algo próximo do que a Polícia Federal – que é mais de operação e inteligência – está fazendo. Essa articulação tem de existir, de tal modo que a cada crise não seja discutida a necessidade de se colocar o Exército nas ruas. O Exército tem outro papel, não é para entrar em coisas desse tipo. Ou então nós temos de mudar a Constituição.

*Colaborou Eustáquio Gomes


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