O livro teve a primeira edição ilustrada em 1906, com tiragem de 500 exemplares assinados por Alvim Corrêa. Mas, se H.G. Wells foi sempre lembrado como um dos pais da ficção científica ao lado de Julio Verne, o ilustrador, que conquistou respeito e maturidade pessoal e artística na Europa, permaneceu esquecido por décadas e praticamente desconhecido no Brasil.
As ilustrações desta página estão na exposição organizada pelo Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, inaugurada em 31 de agosto e que vai até 20 de novembro.
O público externo pode acessar a mostra virtual no endereço é http://www.iel.unicamp.br/cedae/exposicao_cedae.php, que ainda traz a íntegra de um ensaio retratando vida e obra do artista brasileiro, assinado por Alexandre Eulalio.
Eulalio, intelectual que sempre se interessou pelos temas relacionados à literatura e às artes plásticas, deixou para a Unicamp um acervo pessoal com mais de 11 mil documentos e uma biblioteca com cerca de 8 mil livros abrigados nas Coleções Especiais da Biblioteca Central Cesar Lattes. Este acervo, caracterizado por um grande número de obras de arte (desenhos, caricaturas, pinturas), somado ao de Oswald de Andrade, deu origem ao Cedae.
Foi entre os documentos do professor que Flávia Carneiro Leão, supervisora do Cedae, encontrou quatro originais de Alvim Corrêa para A Guerra dos Mundos. “Fiquei surpresa e encantada. Passado um tempo, li em um jornal carioca que o Science Fiction Museum and Hall of Fame, de Seattle, organizou uma exposição com 31 desenhos da série, um cartaz e uma carta de Wells a Alvim Corrêa”.
Ao constatar na internet que o museu obtivera o empréstimo de algumas obras, Flávia Leão quis saber como quatro originais chegaram até as mãos de Alexandre Eulálio. É esta pesquisa mais minuciosa no acervo que resultou na exposição.
“Alvim Corrêa foi ‘descoberto’ pelo crítico e professor da Unicamp José Roberto Teixeira Leite, em trabalho de 1965. Pietro Maria Bardi fez uma primeira exposição no Masp, em 1972. Viriam outras, mas a mais completa foi organizada por Alexandre Eulalio na Casa de Rui Barbosa, no Rio, em 1981”, conta Flávia.
A arquivista lembra que, para viabilizar a mostra e produzir o ensaio, o crítico esteve com familiares do artista e certamente recebeu deles os quatro originais. “A partir de recortes de jornal, informações esparsas, fotos e obras, Eulalio reconstruiu a trajetória de um artista que estava condenado ao esquecimento, devolvendo-lhe o status que merecia na história da arte brasileira”.
Vida curta e intensa Henrique Alvim Corrêa morreu aos 34 anos (1876-1910), vítima da tuberculose, como tantos artistas na época. Nascido de família até hoje bem posta no Rio de Janeiro, perdeu o pai cedo e foi morar na Europa com a mãe, que se casara em segundas núpcias. Iniciou o aprendizado profissional em 1894, aos 18 anos, com Edouard Détaille, um dos mais populares pintores da escola francesa do século 19.
Segundo Alexandre Eulalio, Détaille teria dito “ao mundano padrasto do jovem e fino meteco, que gostaria de possuir, ele, mestre, o talento do discípulo”. De fato, em quatro anos, Alvim Corrêa já havia exposto por duas vezes no Salon parisiense.
Justamente quando ganhava projeção, o artista apaixonou-se pela filha adolescente de um gravador de prestígio, Charles Barbant, “arrebatando-a passionalmente do seio da família”, na expressão de Eulalio, e rompeu com o círculo de renomados mestres e artistas para viver com a mulher na Bélgica.
“Imagino que o casamento nunca foi bem visto pelas duas famílias, pois a vida de Alvim Corrêa passou a ser de dificuldade. Ele teve de pintar e ‘bordar’ para sustentar mulher e dois filhos”, observa Flávia. “A afirmação do recém-chegado em uma série de trabalhos subalternos (decoração mural, desenhos publicitários) é lenta”, endossa Eulalio.
O ensaísta ressalta que foi em Bruxelas, no entanto, que Alvim Corrêa ganhou maturidade artística e produziu sem descanso, mesmo a partir de 1905, quando a tuberculose fez dele “quase um inválido”. Além de pintar e desenhar, o artista tornou-se um gravador competente e deixou suas impressões sobre as artes em textos de caráter literário, entre os quais se incluem peças de teatro de cunho social.
Vários gêneros Alexandre Eulalio afirma que, além dos estudos de tema militar, Alvim Corrêa recorreu à aquarela, nanquim e carvão para desenhos e óleos sobre paisagens reais ou fictícias, cenários de sonhos e ambientes fantásticos, contos de fadas, narrativas sobrenaturais, eróticos e caricaturas.
Possivelmente, o artista apresentou o cartão de visitas com sua própria caricatura a H.G. Wells, depois de ler a versão inglesa de A Guerra dos Mundos (1902) e de saber que o escritor preparava uma edição ilustrada. Mostrou sua concepção de extraterrestres a Wells, que se impressionou com o traço. Corrêa passou dois anos trabalhando no livro, enriquecendo-o com mais de 200 ilustrações.
Alexandre Eulalio enaltece a unidade dos desenhos e o poderoso contraste tonal, lembrando que um crítico “chegou a falar no ‘colorido’ dessas composições em branco e preto”. “Há dois tipos de trabalho: os pastéis maiores que abrem os capítulos e os desenhos em bico de pena que ilustram cenas do texto”, explica Flávia.
Esta obra, considerada uma das mais completas do artista, por pouco não foi engavetada, pois Wells relutou em publicá-la: “Seus desenhos são melhores que meu texto”, teria argumentado. Desesperado, Alvim Corrêa entregou-lhe um desenho adicional em que aparece em posição subalterna à do escritor, convencendo-o a mudar de idéia.
Com a morte do artista em 1910, a família veio para o Rio e deixou o acervo trancado no ateliê em Boitsfort por anos a fio. Flávia Leão recorda que somente na Segunda Guerra, temendo sinistros, a família decidiu resgatar as obras. Ironicamente, o navio acabou bombardeado e o acervo de Alvim Corrêa foi a pique. “Comparado com o que havia, restou muito pouco da sua arte”.
ALVIM CORRÊA por Alexandre Eulálio