No transcorrer da palestra, Mindlin divertiu a platéia com uma série de intervenções espirituosas. Abaixo, algumas delas.
DNA
Seria talvez um pouco de exagero dizer que nasci leitor.
Granítico
Aos 12 anos, no começo do ginásio, escrevi um artigo sobre Alexandre Herculano e Machado de Assis no jornal que circulava no Colégio Rio Branco, onde estudava. Eu mencionava o estilo granítico de Alexandre Herculano. Hoje, eu nem sei o que isso quer dizer...
[Ao falar de suas primeiras leituras mais “sérias”]
Ali Babá
A Editora Melhoramentos tinha uns livros encantadores: Simbad, Ali Babá e os 40 ladrões...
Aliás, este é bem atual, não?
Não havia pensado nessa identidade...
[Comentando sobre os livros da infância]
Precocidade
Deixei de ser precoce há bastante tempo.
[Sobre o fato de ter começado cedo na leitura]
Falha
Eu estou com o meu departamento de nomes próprios avariado. E não consegui mecânico que o consertasse.
[Ao trocar o nome de um livro]
Partido
Em 1936, no último ano do curso de Direito, vi uma caloura cercada de rapazes que tentavam convencê-la a entrar em um dos partidos dos estudantes. Eu entrei na roda, olhei para a moça e disse: “tudo isso que eles estão falando é bobagem. Se você quer um bom partido, ele está aqui...E ela levou a sério.
[Sobre o primeiro encontro com aquela que viria a ser sua mulher, Guita, com quem conviveu durante quase 70 anos. Guita faleceu no ano passado]
Retina
Como eu tinha motorista, eu lia muito no carro. Congestionamento nunca me aborreceu... Um certo dia, meu oftalmologista me disse que eu não devia ler no carro porque isso podia provocar uma ruptura da retina. Mudei de oculista.
O mago da biblioteca
EUSTÁQUIO GOMES
Há alguns anos, recebi uma carta inesperada. Vinha do sr. José Mindlin, o maior bibliófilo brasileiro e acima de tudo um homem de cultura. Espantou-me que aos 87 anos (hoje tem 93), com todo o direito de só se ocupar de seus clássicos, ele ainda voltasse o olhar para cronistas de província. Pois o sr. Mindlin se dava ao trabalho de me escrever para falar de uma crônica publicada por mim algum tempo antes, em que eu contava a odisséia de um leitor, o sr. Rodolfo Costa Lisboa, que durante quarenta anos buscou desesperadamente o livro O judeu errante, do francês Eugêne Sue.
Sua crônica reflete fielmente as angústias da garimpagem, dizia o sr. Mindlin em sua carta. Escrevo para dar minha impressão e para dizer que tenho em minha biblioteca o Juif errant, de 1845, em quatro volumes ilustrados por Gavarai.
Eu vira José Mindlin pessoalmente uma vez, durante um simpósio que juntou acadêmicos e empresários em um hotel. Era então um belo septuagenário a caminho dos 80 e, na época, ainda dono da maior empresa brasileira de autopeças, a Metal Leve. Eu, que não era nem acadêmico nem empresário, se quisesse puxar conversa com ele teria que ser pelo atalho de uma paixão comum, a dos livros. Oportunidade não faltou, pois com freqüência eu cruzava com ele no saguão do hotel, andando no seu passo medido de homem atarefado que, entretanto, nunca perde a afabilidade. Mas achei melhor não incomodar.
Anos depois voltei a ver o sr. Mindlin, desta vez num programa de televisão. Ele explicava a Boris Casoy as razões da venda de sua empresa a um grupo estrangeiro, um desses que estendiam seus pseudópodes pelo planeta. A imagem do empresário parecia o emblema de um tempo que passou. Diante de um Boris consternado, Mindlin tinha o ar resignado de quem se havia deixado apanhar por novas e surpreendentes realidades. Nem tão surpreendentes, talvez, para ele, homem lúcido o bastante para ter calculado as rudes transformações do fim do século XX. Vergado pelas circunstâncias, parecia duas vezes octogenário. Mas suas palavras eram calmas, claras e definitivas. Ele dizia: “Infelizmente não pude fazer frente ao processo inevitável da globalização”.
Em outros termos, não era mais possível competir em igualdade de condições com os titãs do mercado internacional. Se resistisse, não sobreviveria. Bastava olhar em torno para ver que no mar dos negócios humanos travava-se uma batalha sem tréguas entre o peixe grande e o peixe médio, e entre este e o pequeno. Os grandes tendem a delimitar suas águas, mas nos limites de cada domínio cardumes inteiros são devorados pela bocarra do peixe dominante. Assim como não há fronteiras para os satélites que se penduram no teto do céu nem para os computadores plugados na rede mundial, saltando por cima da geografia e das línguas, essas corporações pairavam sobre o estado e começavam a dar as cartas no interior de cada país.
Essas as visões que me suscitou o rosto entristecido e resignado do velho e bom Mindlin na televisão. Pensei que ficariam como um símbolo para quem o vira naquela noite, uma década atrás. Em seus olhos podia-se adivinhar a luz mortiça de um mundo que terminava e, por trás, o clarão violento de um outro mundo que começava. Se para melhor, se para pior, ninguém sabia. Quem viver verá, pensei na época.
Hoje percebo que me enganei. Não era nada disso. Eu não havia entendido nada da atitude do sr. Mindlin. Tendo compreendido mal a motivação, vi mal todo o resto. Agora sei que o sr. Mindlin retirou-se do mundo dos negócios para entrar de vez no mundo dos livros. Era uma astúcia dele, que há muito sabia que há coisas mais importantes que outras. A biblioteca estava acima da indústria, da administração pública e até mesmo dos negócios internacionais. Como Borges, ele parecia dizer: “Talvez a velhice engane, mas suspeito que a espécie humana está por extinguir-se e que a Biblioteca permanecerá: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, incorruptível, secreta”.
Nem tão secreta assim. Há quem a visite. Mindlin terminava sua carta me convidando a fazê-lo. Dizia: “Confirmo meu desejo de conhecê-lo e de receber sua visita”. Vai ver o sr. Mindlin sentiu uma vaga, inconsciente reminiscência daquele simpósio sobre as relações universidade-empresa, quando nos cruzamos no saguão do hotel e eu calei meu desejo de me tornar seu amigo. Ele torna agora possível o sonho a que renunciei naquela época: freqüentar, nem que fosse por um momento, o seu reino de palavras mágicas e atemporais. É claro que eu não ia perder essa oportunidade. Quando menos para contar aos meus netos, quando os tivesse.*
* Nota de 6/9/2007. Não cumpri a promessa. Renovei-o ao sr. Mindlin na última quarta-feira, após ouvir a belíssima palestra que ele deu no auditório na Biblioteca Central da Unicamp, durante um Fórum Permanente de Arte & Cultura. Em compensação, os netos nada sabem a respeito, até porque ainda não os tenho.
Voltar para página 6 - Aos 93, José Mindlin celebra a ‘loucura mansa’ da leitura