O bibliófilo José Mindlin, dono da maior biblioteca de obras raras do país, celebrou sua condição de “louco manso” da leitura em palestra que deu no último dia 5 no evento Biblioteca: Espaço de Cultura, que integra a programação do Fórum Permanente Arte & Cultura. Três dias depois do encontro, Mindlin completaria 93 anos. O Jornal da Unicamp selecionou trechos da palestra que lotou o auditório da Biblioteca Central Cesar Lattes e da entrevista concedida por ele depois de encerrado o evento.
As influências
Tive a sorte de crescer num ambiente cultural, entre quadros e livros. Meu pai tinha paixão por artes plásticas, e acho que herdei essa paixão mas só que direcionada para os livros. Meu irmão mais velho, Henrique Mindlin, que pertenceu à primeira geração da arquitetura moderna brasileira, também me influenciou. Éramos muito amigos, estávamos sempre juntos.
A iniciação
Comecei a ler as chamadas obras sérias aos 12 anos. Olhando retrospectivamente, não sei como consegui ter contato com certas obras nessa idade. Lia, por exemplo, Alexandre Herculano. Foi o caminho inicial. Até então, havia lido apenas obras infantis e livros da Condessa de Ségur. Neste último caso, a afinidade se deu porque tivemos uma governanta russa que falava um francês perfeito. Aos seis anos de idade, eu aprendi o idioma, que se tornou minha segunda língua. Eu lia em francês e em português livros infantis que, infelizmente, não guardei. Tenho deles apenas uma lembrança. Alguns, eu recuperaria mais tarde. A leitura iniciada nessa época foi se tornando um hábito cada vez mais enraizado.
Garimpagem
Comecei a formar minha biblioteca aos 13 anos de idade, quando passei a freqüentar os sebos de São Paulo. É o caminho ideal para quem gosta de ler. É um mundo no qual a gente encontra coisas que não conhecia ou coisas que conhecia e procurava. Foi o que pode se qualificar de começo da biblioteca, que completa este ano 80 anos de formação, com um acervo de 35 mil livros. Ela foi sempre o meu interesse central de vida.
Primeira estante
As duas primeiras obras da minha biblioteca foram História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, cronista baiano do século 17, livro que ganhei de aniversário quanto fiz 13 anos; e uma tradução portuguesa do Discurso sobre a História Universal, do filósofo francês Jacques Bossuet. A edição, feita em Coimbra, é de 1774.
Na redação
Como parte da minha precocidade, eu entrei na redação do Estadão em maio de 1930 fui completar 16 anos em setembro do mesmo ano, de modo que me tornei o redator mais moço do jornal. Foi uma experiência insubstituível. Aprendi a escrever com simplicidade e clareza. Isso me valeu muito nos tempos de advocacia e vale até hoje. No jornal, a gente aprende a conviver com os contrários e a conhecer os bastidores da sociedade e da política. É uma abertura para o mundo.
Nova geração
Minha entrada no jornalismo coincidiu com o surgimento dos escritores nordestinos: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Armando Fontes, entre outros. Guimarães Rosa, por sua vez, estava começando como articulista. Seu editor foi José Olympio, a quem conheci como balconista de uma livraria em São Paulo. Ele comprou em 1931 a biblioteca do grande colecionador Alfredo Pujol, que morreu no mesmo ano. A partir daí, o José Olympio instalou uma livraria, primeiramente em São Paulo; depois, abriu outra no Rio, que depois viria a se transformar numa das principais editoras brasileiras. Curiosamente, ele não era um leitor mas tinha coragem de publicar autores completamente desconhecidos, como os nordestinos. Grandes nomes da nossa literatura devem a Olympio o fato de terem conseguido vencer as barreiras iniciais. Ele fez um trabalho magnífico.
Certidão de nascimento
Quando José Olympio vendeu a editora, tive a sorte, ao procurar os novos compradores, de ver os originais dos autores publicados pela editora. Consegui, por exemplo, os originais de Grande Sertão: Veredas. Era o exemplar preparado pelo Guimarães Rosa para a impressão da primeira edição. Havia um mundo de correções. Consegui também originais do Graciliano Ramos com o nome de O Mundo Coberto de Penas. Na primeira prova deste livro eram feitas várias , Graciliano risca o nome O Mundo coberto de Penas e escreve, com a letra dele, Vidas Secas. Está aí então a certidão de nascimento de Vidas Secas.
São coisas que emocionam a gente. Vocês dificilmente podem ter um prazer como este, porque são da era do computador. O escritor de hoje bate nas teclas, corrige e desaparecem as correções, tornando-se difícil acompanhar o processo de criação literária. Tenho vários outros originais, como Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo, e Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre, que escrevia à mão. A gente ficava com pena dos tipógrafos. Para conseguir ler aqueles textos, e bater palavra por palavra... Consegui também o original de O Quinze, de Rachel de Queiroz. Trata-se do original para a primeira edição; obtive também um texto anterior a este, que a Rachel escreveu aos 16 anos e que acabou não sendo publicado.
A janela
Costumo dizer que quem não lê, não sabe o que está perdendo. A leitura é a janela que se abre para o mundo. Lembro-me quando eu comecei, quando criança, a conhecer as letras e depois consegui compô-las. De repente, quando me dei conta, estava lendo. Foi uma sensação maravilhosa. Durante os 75 anos dos 80 da biblioteca, li uma média de 120 livros por ano, o que dá no total entre 7,5 mil e 8 mil. Eles tiveram um papel central na minha formação.
A xaropada
Sempre encontrava um jeito de ler sem parar. Na Faculdade de Direito da USP, onde estudei, por exemplo, o curso ainda era dado na forma antiga. Eu tinha professores do século 19, que liam as preleções com uma voz monótona. Eu não precisava agüentar aquela xaropada, já que podia ler as apostilas em casa... Sentava então no fundo da sala e lia muita coisa. Fiz isso durante todo o curso de Direito.
Os expoentes
Machado de Assis é um autor inesgotável. Desde que me conheço por gente, é um dos meus escritores preferidos. E seria até hoje o maior escritor brasileiro se não surgisse Guimarães Rosa, que tem na linguagem uma musicalidade excepcional. São os dois expoentes da nossa literatura, embora sejam completamente diferentes.
Acaso
Fui amigo do Carlos Drummond de Andrade e do João Cabral de Melo Neto. Tive esse privilégio, por obra do acaso. Isso me deu uma forma de apreciação da obra que também não é comum. Você acaba ligando as conversas à leitura dos textos, o que propicia um relacionamento muito mais forte.
O ‘almofadinha’
Conheci Guimarães Rosa em 1946, em Paris. Ele era amigo de meu irmão. Eu o procurei e fizemos uma ótima camaradagem. Nós andávamos pela cidade, entrando em livrarias etc. Era um papo excelente e um sujeito muito elegante, sempre de gravatinha borboleta, o exemplo do que naquela época chamávamos de almofadinha. Curiosamente, ele não me deu a menor indicação de que fosse um escritor. Quando Sagarana foi publicado, não acreditava que havia sido escrito pelo almofadinha. Virei depois um roseano fanático. Já li seus livros várias vezes. É uma aventura. A gente pode abrir o livro em qualquer ponto que continua lendo com grande prazer.
Na ilha
Se eu tivesse de ir hoje para uma ilha deserta, eu não concordaria em ir um com um autor só. Eu gostaria de levar três autores: Machado de Assis, Guimarães Rosa e [Marcel] Proust.
Saramago e Amado
Eu tive algumas descobertas. Uma delas, importante, foi [José] Saramago. Não é uma leitura fácil, mas é um escritor excelente. Ele recebeu merecidamente o Prêmio Nobel. Na época, cogitou-se que o prêmio deveria ser dado ao Jorge Amado. Os grandes livros do brasileiro, entretanto, foram escritos na década de 30, quando ele abordou o problema social do Nordeste. Curiosamente, os livros não são bem escritos, mas acho que são os que vão ficar. Os demais são obras construídas. Eu tenho uma grande desconfiança dos livros de sucesso. Muitas vezes, eles são fruto da máquina de conquistar o mercado. Quando o livro faz muito sucesso, eu deixo passar um ou dois anos para lê-lo.
Um ‘louco’ na floresta
Eu costumo comparar a formação da minha biblioteca com uma plantinha que apareceu em casa. Depois de 30, 40 anos, essa plantinha tinha virado uma árvore frondosa. Depois de outros 30 anos, a árvore virou floresta. É o que eu chamo de loucura mansa. Por quê? Porque podia ser pior... A gente fica mesmo envolvido com uma compulsão quase patológica de procurar livros, de comprá-los e, naturalmente, de lê-los. Algumas pessoas têm biblioteca como coleção, não como parte da vida. Sem ter a leitura como objetivo principal, a biblioteca não tem sentido para mim.
O papel do papel
O livro provoca um prazer físico. Não é só a leitura. Tem o manuseio, tem o contato que permite que você, como leitor, tenha a reflexão sobre aquilo que está lendo. A televisão é um prato feito, não dá tempo para você refletir. A informática, por sua vez, considero como complementar ao livro, mas não vejo hipótese de que ela possa substituí-lo. Ela é quase milagrosa para se obter uma informação mas, para absorvê-la, é preciso voltar para o papel e para o livro.
Filho único
Eu escrevi muita coisa técnica. Mas, livro mesmo, eu só publiquei um, em 1997 Uma vida entre livros [Edusp/Companhia das Letras]. Não é uma autobiografia convencional. São memórias esparsas que mostram a minha relação com os livros, com autores e com a formação da biblioteca. Narro também alguns episódios marcantes de minha vida.
Ocorreu uma coisa curiosa. Eu havia dado uma entrevista para um grupo de jovens de Brasília que editavam uma revista [Bric-a-Brac]. Ele chegaram em casa às 11 horas e lá passaram praticamente o dia, gravando e conhecendo a biblioteca. Saíram no começo da noite. Entretanto, momentos antes de sair, foram testar a gravação. Descobriram então que meu depoimento não havia sido gravado. Eles ficaram desapontadíssimos. Decidi então responder às perguntas por escrito. Foi até bom, pois eu queria ter certeza de que seria usada a minha linguagem. Me enviaram uma lista enorme de perguntas saiu uma entrevista interessante.
Dois amigos, a professora Marisa Lajolo [Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL)] e Plínio Martins, da Edusp, elogiaram a entrevista e sugeriram que eu dissesse mais coisas. Ambos achavam que eu deveria colocar minhas histórias num livro. Levei três anos resistindo. Depois de muita insistência, decidi publicá-lo. Deu certo: o livro já está na quinta edição.
O leitor e a criação
Nem todo grande leitor é um escritor. Por outro lado, acho difícil um grande escritor não ser um grande leitor. A recíproca não é necessariamente verdadeira. O leitor sai mais enriquecido ao aproveitar o que os outros escrevem.
A leitura e a inclusão
A leitura desde a infância forma um eleitorado consciente. Acho que está havendo um certo progresso, mas a grande massa não lê. Mesmo que quisesse ler, teria dificuldade de acesso aos livros, já que a maioria da população vive com o salário mínimo. Muito mais importante, na minha opinião, seria a implantação de bibliotecas públicas, de modo que ter o livro não possa ser a única condição para poder ler. Precisaríamos de programas que unissem governo e sociedade. Se todas as crianças tivessem acesso aos livros, teríamos um país bem melhor. A leitura é a verdadeira inclusão social.
O último
Estou lendo o livro Fragilidade, do cineasta e filósofo francês Jean-Claude Carrier. Trata-se de um estudo muito interessante sobre a fragilidade humana. Carrier aborda muitas coisas boas ou más que as pessoas fazem sem se dar conta de que todos nós somos mortais e de que tudo isso passa. Foi presente de uma filha.
Mea culpa
Até hoje, só me arrependo dos livros que eu não comprei. Não me arrependo de nada do que tenha entrado na biblioteca. Nessa lista dos não-adquiridos, destacam-se duas obras raras: O Diálogo das Riquezas do Brasil, e a História da Terra de Santa Cruz, de Pero de Magalhães Ganda, cuja primeira edição é de 1576. Estou falando de primeiras edições. Faz parte da loucura mansa querer ter a primeira edição e, se possível, autografada. Do Machado de Assis, por exemplo, tenho umas dez obras autografadas.
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