Antonio Libério de Borba virou doutor. O título é um arabesco a ornamentar o papel passado de seus feitos (e ofícios). Libério foi lavrador, garimpeiro, feirante, contínuo, pedreiro, mestre de obras, calculista, dono de confecção e construtor. Chegou à docência.
O diploma pode ser encaixilhado e colocado na parede de seu apartamento no bairro de Santa Inês, em Belo Horizonte. Nem sempre foi assim. Libério pernoitou no pau-a-pique, dormiu sob palmeira de babaçu, despertou em quartos de fundos.
Professor Borba se coloca na categoria dos homens comuns, mas sempre teve lá suas idiossincrasias. A última delas acaba de lhe render o título, concedido por sua tese sobre a reconstituição da “tragédia da Gameleira”, ocorrida na capital mineira em 1971.
O desabamento do Pavilhão de Exposições da Gameleira é tido como o maior acidente da história da construção civil brasileira. Deixou 69 mortos e mais de uma centena de mutilados.
Apresentada no último dia 24 na Faculdade de Educação (FE), a pesquisa escorou-se em várias frentes, todas relacionadas de um jeito ou de outro às veredas que confluíram nos campos pessoal e profissional de seu autor.
A banca recomendou a publicação da tese, que foi orientada pela professora Olga von Simson, diretora do Centro de Memória da Unicamp (CMU), com quem Libério divide os méritos. “A professora Olga teve um papel fundamental na minha formação e na valorização da tragédia como objeto de pesquisa”.
Libério cimentou sua obra recorrendo à metodologia da história oral e à farta pesquisa documental, cuja prospecção lhe consumiu meses de transcrição “à unha seca” em hemerotecas e congêneres. Foram seis anos de estudos ao todo.
O professor universitário graduou-se em um curso de engenharia civil voltado para o magistério. Passou também pelas áreas da educação, matemática, geografia e lingüística. Fez mestrado em Cuba a dissertação dimensionava o impacto da tecnologia no mercado de trabalho brasileiro.
Esse cabedal é peixe miúdo perto do peso das origens do professor no conjunto de seu trabalho. A constatação de que todos os mortos no acidente pertenciam à classe de “gente ordinária”, tipificação à qual Libério se inclui, é feita sem o mínimo vestígio de autocomiseração.
Borba já havia se equilibrado em muitos andaimes. Tinha percorrido outros canteiros. Antes de enxergar as vítimas da Gameleira como antípodas, o pesquisador tratou-as como assemelhadas. Não podia ser diferente.
“Meu foco era a reconstrução histórico-sociológica da tragédia. Por que eu fiz essa pesquisa? Porque se, sob os escombros, estivessem profissionais diplomados, a história teria sido outra. Não havia entre as vítimas um único funcionário graduado. Como morreram quase cem operários, concluí que este era o mote. A Gameleira caiu literalmente sobre aqueles que colocaram a mão na massa”, observa Libério.
À história. O “milagre econômico” em curso na época do acidente expelia milhões de brasileiros do campo para as regiões metropolitanas. A ditadura militar, mola azeitada do modelo, abria os cofres para obras classificadas pelo senso comum de “faraônicas”. A Gameleira era mais uma na lista.
A erguê-la, uma massa de gente saída das entranhas do país. A mesma que minguou no anonimato depois do acidente. Não fosse o esforço da imprensa, sob censura cerrada dos militares, o silêncio seria ainda maior. Borba torna pública, de forma inédita e impressionante, a história nunca contada.
O então servente de pedreiro Libério pregava tacos numa obra em Belo Horizonte no momento da tragédia. Tinha como companhia um rádio de pilha, por meio do qual soube do desmoronamento da obra.
Havia a suspeita de que entre os mortos estava um primo seu. O alarme era falso. Mas às 11h45 do dia 4 de fevereiro de 1971, entre aqueles que trabalhavam, jogavam truco, batiam uma bola (dois times estavam sob a laje), abriam a sua marmita (muitos corpos foram identificados pelo objeto) ou faziam a sesta, havia centenas de iguais. Quase todo o contingente de 512 operários que ali estavam era oriundo do Norte de Minas Gerais. Um prato cheio para a impunidade.
Se o norte mineiro difere nas denominações impostas pela nomenclatura da burocracia, é detentor de uma unidade cultural cujo patrimônio é incalculável assim como a beleza natural , ultrapassando as barreiras geográficas. Outro componente comum: PIBs liliputianos. Um vasto território que engloba o “norte” propriamente dito, mais o Vale do Jequitinhonha, o Noroeste e outras franjas do Estado.
‘Aprender-a-viver é que é o viver’
Libério gosta de dizer que nasceu no coração do “grande sertão”. Sua certidão é de São Gonçalo do Abaeté, noroeste de Minas.
Não é por acaso que a epígrafe de sua tese estampa Guimarães Rosa: “O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver não é? é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?”.
O fraseado de Borba é musical, repleto de timbres sertanejos. Libério guarda um léxico de dialetos. Passaria fácil por personagem roseano.
O pesquisador foi introduzido cedo no batente. “Pobre começa a trabalhar na hora em que aprende a andar”. Entretanto, cumpre registrar, sua infância foi feliz, apesar de uma ou outra privação. “Foi um tempo de trabalho duro, mas também de fartura e muita festa”.
O pai, o lavrador Sebastião Borba da Silva, plantava de tudo de inhame a algodão. Com este, a família confeccionava inclusive a roupa que vestia. “Fazíamos a linha, tingíamos, tecíamos e costurávamos nossa própria roupa de cama e vestuário”.
Os Borba produziam fubá, farinha, açúcar e fumo. Criavam galinha, porco, “umas vaquinhas pra dar leite” e alguns cavalos. “Comprávamos apenas sal e querosene”.
Na entressafra, de junho até setembro, garimpava-se diamante. “E encontrávamos”, diz Libério, que trabalhava na roça com o pai ou em casa ajudando a mãe, Joana Vilela da Silva.
Nos limites domésticos, Libério buscava água no córrego, limpava arroz no monjolo, fazia fubá, limpava milho para canjica, aprontava o café. No campo, roçava, capinava, plantava e colhia. “Eu era o candeeiro na lida com o carro de bois e o arado”.
As tarefas eram executadas na parte da manhã. À tarde, ele estudava numa escola rural, a uns dois quilômetros de casa depois, quando se mudou para a cidade, andava 20 quilômetros para estudar. Na escola multisseriada, de chão batido e bancos de tábua, aprendeu a gostar de poesia, lendo Cecília Meireles.
Não havia energia elétrica. “Rádio e televisão não fizeram parte da minha infância”. Não carecia. Além das brincadeiras e das incursões no cerrado, nos campos de pedra e nas matas das barrancas do Abaeté, um afluente do São Francisco, Libério e seus três irmãos cresceram entre causos e folguedos.
Exímio tocador de violão, acordeão, piano e rabeca, seu pai animava as festas na região da folia de reis às festas de traição, como são conhecidos os mutirões na lavoura. Havia ainda terços, novenas, romarias e grandes festas juninas nas casas dos tios.
Os causos eram recorrentes. Os narradores, pessoas mais velhas que desfrutavam de grande prestígio na comunidade, eram muitos na região. As histórias com um pé no fantástico eram contadas à noite em volta do fogão de lenha, após a ceia, ou na roda da fogueira no terreiro. É comum na região o pasquim, espécie de cordel cantado em prosa e verso.
A família de Libério deixou esse mundo para trás quando ele tinha 16 anos de idade. O pai saiu de São Gonçalo para montar uma lapidação de diamantes em Gouvêa, no Vale do Jequitinhonha. Entrou água no empreendimento. Corria 1970 e o passaporte para Belo Horizonte estava carimbado. Nada mais havia a fazer no campo.
‘Você não cobre, você rebuça’
A capital mineira era um símbolo nacional da modernidade urbana. “O novo logo ficava velho”, lembra Libério, para quem as obras na Gameleira reforçavam essa imagem.
O moderno, porém, cobrava pedágio: magotes de migrantes passaram a habitar o entorno das grandes avenidas arborizadas e as encostas dos morros. Em comum, o subemprego e a privação. Libério, então com 16 anos, integrava essa legião.
Borba fez de tudo para ajudar no orçamento doméstico. As ocupações: caixa de restaurante, feirante, servente de pedreiro, vendedor, contínuo e auxiliar de escritório.
“Não arrumava trabalho com bons salários porque, no sertão, você não suspende, você sunga; você não cobre, você rebuça. Quando eu ia fazer entrevista, não dava certo”.
A obstinação nos estudos fez a diferença. Logo que chegou em BH, por exemplo, Borba foi aprovado no exame ginasial para o acesso em uma das quatro escolas públicas da cidade.
Seu sonho de ser violoncelista esbarrou em um conselho paterno: o melhor a fazer era esquecer as partituras e cursar uma escola técnica. A disputa na Escola Técnica Federal de Minas Gerais (hoje, Cefet-MG) era concorridíssima: 50 candidatos por vaga. Passou.
Borba pegou carona no espírito predominante. Já que teria de cursar a escola a contragosto, raciocinou, optaria pelo curso técnico de oficial de estradas. Toda a grandeza da Transamazônica o aguardava. “Pensei: subo por essa estrada e esqueço o violoncelo”.
As estradas de Libério passaram ao largo de florestas densas. Foram cortadas pela cidade. No segundo ano de curso, à procura de estágio, Borba “deu a sorte” de ingressar num laboratório de tecnologia de concreto cujo proprietário era Mário Fox Drummond, um dos maiores especialistas da área no país.
Salário digno no bolso, Libério aprendeu os segredos do ofício ao participar da construção de grandes obras, entre as quais, a da Fiat Automóveis.
A morte do pai faria Borba perder o emprego e assumir, aos 20 anos de idade, novas responsabilidades. Para segurar a onda da família, muito abalada, ausentou-se três dias do trabalho. Foi o bastante para que um sócio da empresa o demitisse, mesmo contrariando Fox.
Foi admitido numa construtora na qual seu pai havia sido armador. Era uma espécie de faz-tudo, trabalhando na construção de 14 edifícios. Teve ali uma experiência que o levaria para outros caminhos. Libério era incumbido, entre outras tarefas, de liberar o pagamento dos funcionários em finais de semana. Ao efetuar uma paga, constatou que dois novos serventes não conseguiram assinar seus nomes, virando motivo de troça dos colegas.
“Fiquei constrangido. Foi triste ver aqueles homens tão dignos e esforçados passarem por aquela situação”. Depois de implantar um curso de alfabetização no barracão de obras da construtora, Libério entusiasmou-se com o ofício de professor. Buscava em obras de Carlos Rodrigues Brandão, Paulo Freire e Moacir Gadotti ferramentas teóricas que o auxiliassem na empreita.
Enviou seu currículo para três escolas que possuíam curso técnico, em nível de 2° grau, na área de construção civil. Duas o selecionaram. Demitiu-se da construtora e foi dar aulas na Universidade para o Trabalho de Minas Gerais (Ultramig), e no Instituto Técnico Orvile Carneiro (Itoc).
Prestou vestibular para pedagogia na Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG), e foi aprovado. Começou a trabalhar na Escola Técnica do Barreiro e na Escola Técnica Federal de Minas Gerais. Pouco depois, começou a fazer um curso de licenciatura plena em construção civil no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet), onde atua como docente há 29 anos em disciplinas ligadas à tecnologia da construção civil e canteiros de obras.
Militante sindical, Libério chegou a ter uma construtora e uma confecção. Mora hoje numa cobertura no bairro de Santa Inês, de “onde avisto Belo Horizonte inteira”, depois de alojar-se em muitos lugares, entre os quais um prédio cujo “quintal” eram os escombros da Gameleira. Ao abrir a janela de seu quarto via aquele esqueleto, um fantasma a rondar-lhe. “Isso ficou na minha cabeça”.
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