A Coordenadoria Geral da Universidade (CGU) promove, no dia 28 de setembro, o Fórum “Desafios Contemporâneos do Ensino Superior”, no qual especialistas do Brasil e do Exterior debaterão gargalos, novas demandas e desafios do setor, entre outros temas (confira a programação na página 7). O Jornal da Unicamp ouviu três dos participantes do evento: o físico Luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); o psicólogo Timothy Martin Mulholland, reitor da Universidade de Brasília (UnB); e o historiador Edgar de Decca, pró-reitor de Graduação da Unicamp. Nesta e nas próximas duas páginas, os docentes antecipam algumas das questões que serão discutidas.
Jornal da Unicamp Existe uma tensão entre a busca por excelência no ensino superior e a demanda cada vez maior por acesso. É possível resolver essa equação?
Edgar de Decca Gostaria, primeiramente, de abordar a constituição da universidade brasileira sob uma perspectiva histórica. Por meio dela, teremos melhores condições de responder a uma questão que é bastante controvertida e sujeita a muitos ângulos analíticos.
O surgimento da nossa universidade tem muito a ver com o contexto social e político do século XIX, em razão da Revolução Industrial e o conseqüente desenvolvimento econômico e social por ela gerado. A partir do início do século XIX, registra-se nas sociedades européias, e posteriormente no Brasil, uma ascensão de novas classes sociais urbanas.
Trata-se de uma característica muito presente em alguns países europeus que sofreram rápidos processos de modernização social e econômica, sem contudo terem alterado as suas estruturas de poder político. A Alemanha, por exemplo, foi um deles. Lá, as elites estavam profundamente vinculadas a setores aristocráticos do poder central, enquanto as novas classes emergentes não tinham acesso ao mundo das cortes e da política.
Este fenômeno ocorrido na Alemanha pode mostrar de que maneira na história contemporânea a promoção da cultura e da ciência torna-se uma prerrogativa de novas classes emergentes. É por meio da cultura que as novas classes podem competir social e politicamente no âmbito da sociedade marcada pelos traços aristocráticos. Como essas classes não tinham proximidade com o poder, elas se consolidam e se fortificam por meio da criação das universidades, num processo concomitante à modernização.
Esse processo é muito bem analisado por Norbert Elias na sua famosa obra O Processo Civilizatório, editada no Brasil pela Editora Zahar. O sociólogo alemão estuda de que maneira se dá esse processo civilizatório no Ocidente, buscando características muito particulares em determinadas sociedades, como é o caso da alemã.
Uma dessas características, que é a criação das universidades, tem um traço fundamental: o princípio da autonomia. É justamente por meio da autonomia do conhecimento e da cultura que essas novas classes sociais podem vir a se afirmar no cenário político e se distinguirem dos setores aristocráticos.
Tratou-se, portanto, de um conflito de valores entre setores da sociedade, sendo que as novas classes ascendentes procuraram na instituição universitária a formação de suas premissas de autonomia e de independência individual, imprescindíveis para a realização de seus anseios de ascensão, por via de exercício profissional.
Do ponto de vista da universidade brasileira, há uma semelhança com esse modelo de criação. Podemos estabelecer, sem dúvida, alguns paralelos com esse processo que ocorreu na Alemanha do século XIX. Não é por acaso que a primeira universidade com essas características acima definidas tenha sido criada em São Paulo, em 1934, logo depois da derrota política paulista na Revolução de 32.
A sociedade paulista era mais modernizada se comparada a outras no Brasil de então. Estava ingressando no processo de industrialização, com a ascensão de novos segmentos sociais, que eram justamente essas novas classes urbanas emergentes. Setores alijados da organização do poder e desejosos de ascensão social encontram na universidade o lugar, por excelência, para desenvolverem os seus valores de autonomia e independência.
Não somente pela defesa da liberdade de pesquisa, mas principalmente pela defesa dos princípios de autonomia e de independência individuais, que se opunham aos valores da sociedade de status tradicional. Afinal, as novas classes urbanas, ao defenderem o princípio fundamental da autonomia na constituição da cidadania, defendiam ao mesmo tempo os novos valores da sociedade democrática.
Em última instância, essas novas classes urbanas, que acreditavam na educação e na cultura como elementos formadores da sociedade, serão responsáveis pela criação da Universidade de São Paulo. Ela vai se apresentar no cenário político como uma instituição formadora do conhecimento e da cultura, não-comprometida com valores das antigas classes aristocráticas e oligárquicas predominantes à época no Brasil.
Não é por acaso que nasce, junto com a USP, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Essa criação da USP vem acompanhada da incorporação de antigos institutos e faculdades até então isoladas como é o caso da Faculdade de Direito, da Faculdade de Medicina, da Escola Politécnica, da Faculdade de Odontologia e da Escola de Agronomia Luiz de Queiroz.
Essa vocação histórica é fundamental para se compreender todo o processo de desenvolvimento da universidade no Brasil. Portanto, o princípio fundador da nossa universidade foi o princípio da autonomia. Assim, o ensino superior no Brasil sempre foi visto como um veículo de ascensão social e de autonomia.
Para se ter uma idéia da importância da criação de instituições de ensino superior no Estado de São Paulo, podemos lembrar que as primeiras pesquisas sociológicas sobre a condição de vida das classes populares urbanas foram realizadas pela Escola Livre de Sociologia e Política. Essa escola, que foi criada por novos empresários da indústria paulista em 1933, tinha como projeto educacional a formação de quadros profissionais para atuarem na administração pública, sem os vícios do bacharelismo aristocrático que moldou a vida política do Brasil oligárquico (e que, infelizmente, ainda está presente em nossa sociedade atual).
Até a década de 60, essa demanda pela universidade esteve, de uma certa maneira, reprimida. Isto porque o desenvolvimento econômico brasileiro esteve também andando a passos moderados. Com o desenvolvimentismo dos anos 50 e 60, e com o boom industrial ocorrido no transcorrer da ditadura militar, a demanda por acesso ao ensino superior é incrementada de uma maneira significativa.
Observamos também que, justamente, o princípio formador da nossa universidade esteve ameaçado durante a ditadura militar. Ao tentar intervir na universidade, o regime militar colocou em risco a sua autonomia.
A partir da década de 70, houve um recrudescimento dessa disfunção relacionada à demanda pela universidade as classes sociais urbanas se agigantaram. Houve um inchaço significativo da população das grandes cidades, ao mesmo tempo que a demanda pela universidade foi atendida pela proliferação desordenada das instituições de ensino privado
Por outro lado, houve um crescimento desordenado da oferta de vagas. Por essa razão, proliferaram-se, a partir da década de 80, centenas de instituições de ensino superior. Eram institutos isolados, pequenos; foram criadas centenas de faculdades de final de semana.
Calcula-se que sejam hoje três mil ao todo, com uma oferta aproximada de três milhões de vagas, das quais, um milhão sequer serão preenchidas. Nossos indicadores são muito piores que os da América Latina neste quesito.
Aos números: 17% da população brasileira demanda por vagas no ensino superior. Se pegarmos o total de jovens no país, trata-se de um percentual muito baixo. A despeito disso, a ociosidade de vagas é muito alta da ordem de um milhão, como disse.
Por quê? Como houve uma expansão desordenada, centenas de vagas do ensino superior estão às moscas, ao passo que há uma enorme concentração de procura em poucos cursos, destacando-se Direito e Administração ambos correspondem a 27% da procura. A crise é evidente. Estamos diante de um paradoxo.
Luiz Davidovich Certamente, há maneiras de atacar esse problema. Elas passam por várias medidas já implementadas em diversos países, embora com muito menor intensidade no Brasil. É muito importante, por exemplo, diversificar o ensino superior.
Tornou-se comum identificar ensino superior com universidade. No entanto, são noções diferentes. O ensino superior é mais abrangente que a universidade. Ele pode incluir instituições de nível superior não-universitárias. Diversificando o sistema, você facilita sua ampliação. Esse caminho já foi trilhado por muitos outros países, que conseguiram ampliar o número de estudantes de nível superior de forma considerável.
É possível implementar cursos de nível superior com duração menor do que um curso de cinco anos de uma universidade, por exemplo. Nos Estados Unidos, cerca de metade das matrículas do ensino superior está em instituições públicas, com cursos de dois anos de duração.
Essa diversificação deve ser acompanhada de uma possibilidade de migração dos estudantes entre os diversos tipos de instituição. Deve ser possível para um aluno que termine um curso mais curto, por exemplo, entrar no ciclo profissional de uma universidade caso ele queira continuar seus estudos, muito embora ele não precise necessariamente fazer isso. Esse estudante pode também ingressar no mercado de trabalho ou simplesmente fazer o que estava fazendo antes, mas com uma educação melhor.
Nós devemos ir além dessa idéia utilitária da educação. Um país com pessoas de nível educacional mais elevado vai ter maiores chances de se desenvolver harmonicamente. Será um país melhor, com um leque maior de opções. Os cidadãos passam a entender melhor o mundo em que vivem.
Eu acho que as instituições não-universitárias de ensino superior também podem ter um papel de aprimorar a educação da população.
Timothy Mulholland Não entendo que existe conflito. A fórmula da qualidade é conhecida há muitos anos e não exige o atendimento de apenas uma pequena elite. É possível manter padrões elevados de qualidade e atender a uma proporção muito mais significativa da população ao mesmo tempo. A referência mundial e brasileira é de matricular 30% dos jovens de 18 a 24 anos. No Brasil alcançamos apenas 11%. Temos que crescer muito nos próximos anos, sem perder as conquistas das últimas décadas.
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