Esta listagem integra a farta documentação sobre a Fábrica Ipanema (1765-1895) guardada no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) e que sustenta a pesquisa de doutorado sobre escravidão e indústria do historiador Mário Danieli Neto. A tese, orientada pelo professor José Jobson de Andrade Arruda, foi defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
“O estudo propõe uma reflexão sobre a suposta incompatibilidade do escravo frente ao trabalho na indústria. Parte da historiografia costuma mostrar o escravo como incapaz de se adaptar a atividades que exigiam destreza técnica e conhecimento de máquinas, além de não se habituar ao ritmo de produção industrial”, afirma o autor.
Segundo Mário Danieli, esta concepção racista remonta aos primeiros estudos sobre a escravidão industrial nos Estados Unidos, onde o tema é recorrente. “Antes do estudo clássico de Robert Starobin, de 1970, demonstrando a eficiência do trabalhador negro, prevalecia a idéia de que o norte do país era mais avançado por conta da opção pelo trabalho escravo na indústria do sul”.
No Brasil, apesar dos registros de autores como Gilberto Freyre, Emília Viotti, Celso Furtado e Caio Prado Jr., os estudos regulares sobre a presença de trabalhadores escravos em fábricas do século 19 começaram apenas por volta de 1988, com o centenário da Abolição.
Danieli informa que Douglas Cole Libby é o pioneiro no tema no país. “Ele marcou nossa historiografia ao analisar o trabalho cativo na mina de Morro Velho, explorada por uma companhia de capital inglês, nas Minas Gerais. Os escravos, além de usados na atividade industrial, eram alugados a terceiros para extração de ouro”.
A origem A história construída por Mário Danieli da Fábrica Ipanema está cheia de percalços, com períodos de inatividade por problemas financeiros, falcatruas perpetradas por administradores e, da parte dos escravos, conflitos com os superiores e inúmeras tentativas de fuga em virtude dos castigos e das condições insalubres.
O ferro na região de Sorocaba foi descoberto em 1590, com frustrada tentativa de exploração. Somente em 1765, quando São Paulo retomou a autonomia administrativa, é que nobres portugueses, detentores de licença da Coroa, apresentaram ao governador Morgado Mateus as primeiras experiências metalúrgicas feitas numa pequena fundição.
“A origem da fábrica é bem precária, sendo que vinte anos depois, em 1785, a rainha Dona Maria I baixou alvará proibindo as manufaturas de ferro e de tecido no Brasil. Ela temia a concorrência com os produtos da metrópole e permitiu apenas a produção de tecidos grosseiros para os escravos”, recorda o autor.
As terras da Ipanema acabaram ocupadas por engenhos de açúcar, cenário que predominou até 1810, ano em que o alvará foi revogado por D. João VI, já com a família real no Brasil. “Só então começou a construção dos fornos e dos edifícios. O governo imperial disponibilizou cem escravos, cem bois, as minas, as terras e as matas para o carvão”.
Uma foto de 1870 mostra o estabelecimento fabril típico da época, distante dos centros urbanos e, por isso, com certa autonomia em produtos para consumo próprio. A extensa área era rodeada por matas, rios, pastos, plantações, tendo mais ao centro senzalas, casas, capela, olaria, oficinas e o prédio maior com os fornos.
Danieli lembra que a evolução econômica e populacional da região de Sorocaba deve-se ao comércio de abastecimento interno e ao avanço das tropas de mulas. “A produção de ferro era estratégica para o governo, que de um lado tentava ‘modernizar’ a economia e, de outro, queria armamentos contra as incursões espanholas do século 19”.
Mão-de-obra Na realidade, em 130 anos de existência, a fábrica produziu quase sempre para a região, como por exemplo, moendas e equipamentos para os engenhos de açúcar. “Inicialmente, nenhum escravo possuía qualificação para o trabalho em metalurgia, mas a habilidade foi sendo adquirida aos poucos”, diz o historiador.
Entre 1810 e 1815, a administração ficou nas mãos de um homem chamado Hedberg, que prometia elevar a produção anual para 40 mil arrobas de ferro, graças a técnicas inovadoras que dizia trazer da Europa. “Ele trouxe ainda treze trabalhadores suecos e alemães. Havia dois marceneiros, um marinheiro, um alfaiate e até um ‘oficial de pregos’, mas ninguém qualificado para metalurgia”.
Hedberg não ergueu outro forno nem expandiu os edifícios como prometera, além de cobrar mais de 8 contos de réis a título de despesas. Absorvido o golpe, o governo metropolitano entregou a administração da fábrica para Varnhagen, que promoveu as obras necessárias e incorporou mais mão-de-obra escrava.
Entre os escravos do dote imperial, já estavam seis ferreiros. Mário Danieli ressalta, porém, que a fábrica contou posteriormente com outros escravos qualificados importados pela Coroa. “Sabemos, por meio de autores como Celso Furtado e Caio Prado Jr., da existência de populações africanas com certa tradição em metalurgia”.
Até então, o tráfico ainda era permitido e membros daquelas populações foram trazidos para Sorocaba. A relação de 1821 mostra muitos escravos em funções que requeriam conhecimentos técnicos e alguns sobrenomes Monjolo, Molange, Cabundá, Cassange, Angola, Mina, Congo indicam a etnia ou a região de origem na África.
Do total de 66 escravos, 24 (36%) tinham ofícios declarados e 16 eram qualificados para atividades ligadas à metalurgia. “Percebe-se que não havia funções definidas para as mulheres. Provavelmente, elas eram casadas com escravos da própria fábrica e cuidavam da comida, da limpeza e da roça”.
Fugas e revoltas No que se refere às normas internas, Danieli encontrou uma por escrito: início do trabalho ao nascer do sol, almoço das 8 às 8 e meia, jantar ao meio-dia, e mais trabalho até depois do sol posto hora e meia além durante o verão e uma hora no inverno. E “que cada um trabalhe conforme as suas forças e préstimo”.
“O regime na fábrica era tão ou mais severo que no campo, sob pena dos mesmos castigos físicos. Os escravos trabalhavam até 14 horas por dia junto ao alto-forno, que é o inferno na terra”, compara o pesquisador. Não foi por acaso, portanto, que ele deparou com tantos registros de fugas e mesmo de agressão a capatazes.
Uma fuga em 1823 fez o administrador mobilizar todos os capitães mores das vilas próximas. A perseguição a Domingos Ramos, oficial de ferreiro que evadiu “sem motivo algum”, se estendeu até São Paulo. “Ele era o único escravo capaz de exercer aquela função na fábrica”, observa Danieli. Domingos foi preso, mas no caminho acabou resgatado por seis “emboabas” que surraram o único policial na escolta.
Na falta de escravos que cumpriam funções essenciais, a produção podia parar. Havia escravos que comandavam o trabalho de livres e de brancos. Havia, também, quem fosse remunerado. “Escravos qualificados pediam autorização para se casar e ocupar um terreno na propriedade, conquistando onde morar e plantar seu sustento”.
As relações de trabalho podiam ser conciliatórias, mas geralmente eram tensas. Um foco de tensão estava nos africanos “livres” (aqueles introduzidos no Brasil a partir de 1831 ganharam por lei esta condição) e nos libertos (contemplados com a Lei do Ventre Livre de 1871). “Como as disposições não eram cumpridas, esses escravos se insubordinavam, pois conheciam seus direitos”.
Letramento Um requerimento de 1828 enviado ao governo provincial por um grupo de escravos demonstrou inclusive algum letramento: “(...) nos é penoso trabalharmos sem falha do serviço só por moléstia, e não recebermos os munícios que nos é prometido, tem sucedido pararmos semanas inteiras sem comermos e continuando sempre o serviço”.
No mesmo requerimento, os escravos listavam a cota de feijão, toucinho e carne a que tinham direito e denunciavam que não recebiam cobertores novos havia oito ou nove anos.
Tendo se debruçado tanto sobre a documentação da fábrica e relatórios governamentais, a ponto de descobrir tais minúcias, Mário Danieli assegura: “Raras vezes algum administrador reclamou que os cativos fossem incapazes ou inadaptados e por isso prejudicassem a produção”.
O fim depois da guerra
A Fábrica Ipanema teve seu auge produtivo entre 1834 e 1850, seguindo-se uma década de penúria, quando muitos consumidores deixaram de comprar os produtos de ferro porque trocaram a cana pelo café, cuja cultura se expandia em São Paulo. Além disso, o fechamento do tráfico atlântico elevou internamente o preço dos escravos, que eram então tirados da fábrica pelos agricultores.
Quando surgiram os primeiros conflitos territoriais entre Brasil e Paraguai na Bacia do Prata, em meados da década de 1860, os administradores convenceram o governo imperial de que a Ipanema poderia apoiar a produção de ferro, armamento e munição para o iminente embate entre as duas nações.
O governo, porém, optou por transferir parte do maquinário e operários para Mato Grosso, com o objetivo de estabelecer novas fábricas na região. De qualquer forma, a Ipanema contou com novos investimentos do governo, podendo reacender os fornos por novo período.
Com o fim a Guerra do Paraguai, acentuou-se a instabilidade. Os problemas eram os de sempre, principalmente a falta de transporte para escoar uma produção em escala, a incidência de impostos e a concorrência de produtos estrangeiros.
Vieram então as tensões com o movimento abolicionista mesmo depois da Abolição em 1888, os operários continuaram trabalhando sob a antiga disciplina. Foi em 1895 que se decidiu pelo fechamento da Fábrica Ipanema, até porque para o governo republicano não interessava, naquele momento, investir numa indústria nacional e sim em manter elevado o preço do café.