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Josué de Castro e a crise dos alimentos

Walter Belik

No momento em que comemoramos o centenário de Josué de Castro, legendário brasileiro autor de “Geografia da Fome” (1946) e primeiro presidente da FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (1952) –, precisamos nos perguntar se o mundo está melhor hoje que na sua época. Essa é uma boa oportunidade para analisar a nossa evolução dentro de uma perspectiva histórica.

Na década de 1940, grande parte da população brasileira vivia no campo e a produção de alimentos, baseada em pequenas propriedades, era insuficiente para abastecer as crescentes massas que corriam para as cidades. O produtor rural, por sua vez, mal conseguia produzir para a sua subsistência, dado o tamanho da propriedade, as técnicas rudimentares de cultivo e a falta de crédito e incentivos por parte do governo. Quando o agricultor conseguia furar todos esses bloqueios, não conseguia colocar o seu produto no mercado, pois a presença de intermediários e as estruturas precárias de comercialização absorviam boa parte dos seus ganhos. A situação da alimentação no Brasil era contraditória: de um lado o produtor não conseguia retorno sobre o seu trabalho e, de outra parte, o consumidor pagava preços exorbitantes pelos alimentos. A pobreza se generalizava e a fome era um “flagelo fabricado pelos homens contra outros homens”.

No cenário internacional o mundo saía de uma guerra devastadora. O aparato produtivo europeu estava totalmente destruído e a agricultura levaria quase dez anos para se recuperar. Até o final dos anos 1950, a Inglaterra, por exemplo, racionava alimentos. A Índia vivia o seu processo de independência e a China estava nos primórdios da sua revolução e coletivização da agricultura. O mundo via a fome de perto.

Em prefácio à edição portuguesa do seu livro “Homens e Caranguejos” em 1966, o nosso Josué comentava: “... e quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era drama universal. Aquela lama humana do Recife, que eu conheci na minha infância, continua sujando até hoje toda a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome”.

Hoje a FAO estima que o mundo possua um contingente de 854 milhões de indivíduos subnutridos. Portanto, estamos muito distantes das metas acordadas na Cúpula Mundial de Alimentação de 1996, que pretendia reduzir o número de subnutridos para “apenas” 415 milhões em 2015. Também vamos passar muito acima da meta menos ambiciosa estabelecida nos Objetivos do Milênio de reduzir a porcentagem de pessoas subnutridas para “apenas” 7% da humanidade. Na melhor das hipóteses vamos chegar a 17% de subnutridos em 2015.

Para reverter essa trajetória de fracasso vamos continuar contando com o empurrão dado pela China na última década. Hoje esse país é o maior produtor mundial de grãos com 413 milhões de toneladas anuais. Nos últimos 10 anos as políticas de modernização do campo chinês permitiram retirar aproximadamente 45 milhões da subnutrição. Se não fosse a prosperidade chinesa talvez tivéssemos cifras ainda piores. De outra parte, na recente conferência de Roma, o Diretor Geral da FAO afirmou que a recente alta no preço dos alimentos pode ter lançado mais de 100 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, com evidentes impactos nos indicadores de subnutrição.

Mas o problema não é somente de oferta. Segundo os especialistas do Banco Mundial, a turbulência com relação ao equilíbrio entre oferta e demanda de alimentos poderá diminuir ao redor do ano 2017, quando os estoques de alimentos estarão mais ajustados. O problema é também de acesso aos alimentos, como nos chamava a atenção Josué de Castro nos anos 1940.

Na Ásia e nas Américas a pobreza extrema da população não permite o acesso aos bens mais elementares. Nem os pequenos produtores da área rural estão imunes à fome, já que as pequenas superfícies de cultivo e as técnicas primitivas mal garantem o sustento das famílias. Na África, acrescente-se a esses fatores, as lutas tribais, guerras e a corrupção dos dirigentes que não permitem que os alimentos cheguem à população.

Ao final dos anos 1940 o mundo produzia um total de 500 milhões de toneladas de grãos, hoje essa produção atinge 2,3 bilhões. A população mundial nesse período foi multiplicada por 2,5 vezes, mas a produção (só de grãos) aumentou 4,5 vezes. A situação é grave e algumas propostas tímidas já foram apresentadas pela comunidade internacional. Essas passam pelo aumento a ajuda alimentar, programas de proteção social, programas de crescimento pró-pobres e até mesmo um novo Plano Marshall para os países pobres, reapresentando o plano mundial que tirou a Europa da fome. Tudo isso leva tempo e infindáveis negociações. Enquanto isso, o mundo vive uma enorme instabilidade política. Parece que o os homens não evoluíram. Como diria Josué de Castro, “a natureza é generosa”, mas ainda “vivemos em um mundo de abundância em meio à miséria”.

Walter Belik é professor livre docente do Instituto de Economia da Unicamp (IE)

 
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