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Editorial
Por ocasião do I Congresso Internacional de Estudos Utópicos (“Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell'utopia e nella distopia”), ocorrido em maio de 2007, numa iniciativa conjunta da revista MORUS — Utopia e Renascimento e do Dipartimento di Studi Sullo Stato da Università degli Studi di Firenze (Itália), por determinação de seus participantes, decidiu-se realizar no Brasil um segundo encontro, que é justamente este II Congresso Internacional de Estudos Utópicos: O que é utopia? Gênero e modos de representação, nos dias 7, 8, 9 e 10 de junho de 2009 no Auditório da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP).
Visa este II Congresso Internacional de Estudos Utópicos delimitar a natureza literária da Utopia e definir as modalidades de seu conceito enquanto gênero e mesmo verificar se este projeto é possível. Tal questão leva à avaliação de sua historicidade, sua relação com a experiência da viagem, sua relação com a crítica social, isto é, com a política; a utopia mobiliza o raciocínio filosófico, lingüístico, antropológico, religioso, econômico, ético, todos os campos da arte: o fundamental é transformá-la de assunto em objeto. Trata-se de definir o gênero como ponto de partida e de chegada do pensamento, localizando-o dentro da História concreta, deduzindo-o de forma sintética e afastando o procedimento, mais dissolvente que esclarecedor, de qualificar como utopia qualquer figuração social imaginária.
O tema da Utopia possui grande relevância e tem sido objeto de reflexão privilegiado de muitos pesquisadores das principais universidades no mundo nos últimos anos. Algumas delas dispõem de Centros de Estudos dedicados ao tema da Utopia (além dos centros brasileiros sediados na UNICAMP e da UFAL, há centros em Lecce e Bologna (Itália), na Irlanda, em Portugal, na Inglaterra e nos EUA). Este Congresso promoverá o encontro de estudiosos brasileiros com a expressão de ponta da discussão sobre utopia realizada nesses centros e também fora deles, por outros pesquisadores, daí a natureza multilingue do evento. Cabe ressaltar que também é multilingüe a revista Morus — Utopia e Renascimento, o único periódico na área da utopia no Brasil, promotor principal deste congresso.
Os objetivos do II Congresso Internacional de Estudos Utópicos, de natureza interdisciplinar e multilingüe são, portanto:
1) Delimitar a natureza literária da Utopia e definir as modalidades de sua definição enquanto gênero, verificando se este projeto é possível;
2) Divulgar no Brasil o tema da utopia e das várias linhas de pesquisas a ele relacionadas e representadas pelos pesquisadores que virão a este congresso;
3) Promover o diálogo entre pesquisadores brasileiros e os principais pesquisadores sobre Utopia de universidades européias e americanas, aprofundando os contatos já existentes e possibilitando futuras parcerias;
4) Preencher uma lacuna na bibliografia brasileira sobre o tema utópico com publicação dos anais deste congresso;
5) Envolver, além de especialistas, discentes dos programas de graduação e pós-graduação das várias disciplinas relacionadas ao tema do congresso: Literatura, Língüística, História, Filosofia, Arquitetura e Artes.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Editor da revista MORUS – Utopia e Renascimento
Sumário
ORGANIZADORES
OBJETIVOS, JUSTIFICATIVA E ABRANGÊNCIA
CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DOS TRABALHOS
HISTÓRICO
O PROBLEMA UTÓPICO
PROGRAMMA TEMATICO DEL II CONVEGNO
INTERNAZIONALE DI STUDI UTOPICI
PROGRAMME THÉMATIQUE DU II CONGRÈS
INTERNATIONAL D'ÉTUDES UTOPIQUES
THEMATIC PROGRAM OF THE 2nd INTERNATIONAL
CONGRESS OF UTOPIAN STUDIES
PROGRAMA
DISCURSO DE ABERTURA
Carlos E. O. Berriel
Da idéia de perfeição como elemento definidor da utopia:
As utopias clássicas e a natureza humana
Jean-Michel Racault
Campanella, l'immaginazione utopica al servizio del cesaropapismo
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
La nuova linea dell'utopia
Arrigo Colombo
Crisi delle ideologie e delle forme nella narrativa utopica del Novecento
Vita Fortunati
Positivismo e utopia: la religione dell'Umanità di Comte
Claudio de Boni
L'utopie comme comble de la fiction à la Renaissance
Marie-Luce Demonet
Utopie et alchimie dans L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez (1610) de François Béroalde de Verville
Laetitia Bontemps
A cidade de Orbe no romance fabuloso de Barthélemy Aneau
Yvone Soares dos Santos Greis
A utopia tupi, segundo Montaigne
José Alexandrino de Souza Filho
Utopia, terra de hereges?
Hilário Franco Jr.
La naissance de l’utopie comme supplément au récit de voyage
Peter Kuon
A utopia e a sátira
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Reminiscências e observação no universo dos viajantes
dos séculos XIV e XV
Susani Silveira Lemos França
On the very notion of utopia
Costica Bradatan
Thomas More, utopista malgré lui
Jorge Bastos da Silva
Cidade utópica e cidade ideal em Francesco Patrizi da Cherso
Helvio Gomes Moraes Junior
Novas tecnologias, novas utopias
Fátima Vieira
Alotopias de Luciano de Samósata
Jacyntho Lins Brandão
La utopía gastronómica en la comedia griega antigua
Maria José García Soler
La antiutopía de las Amazonas en el Hipólito de Eurípides
Hernán Martignone
A possível República de Platão
Carolina Araújo
Livelli del pensiero utopico: antropologia, storia, letteratura
Cosimo Quarta
Utopia e socialismo
Ivone Gallo
Metáforas da utopia no espaço público contemporâneo:
evidências línguísticas em português
Margarida Salomão
Administração da diferença, preservação da hegemonia
Benjamin Abdala Jr.
Quando o futuro vira piada:
dimensões humorísticas das utopias modernas
Elias Tomé Saliba
Utopias e distopias no campo lingüístico:
as concepções e as teorias sobre as afasias
Edwiges Morato
Dante Alighieri e o projeto do vulgar ilustre
Bruno Dallari
Da dove ricominciare oggi per progettare l'utopia?
Adriana Corrado
Do utopismo iluminista ao (anti)utopismo romântico:
a crítica romântica da razão utópica
Marcio Seligmann-Silva
Zanzalá, uma utopia brasileira
Cristina Meneguello
O eu e o outro nas Lettres chinoises, de Voltaire
Emerson Tin
Utopia come scienza escapologica
Gianluca Bonaiuti
Entre utopias e distopias: indicações sobre a catástrofe
Iara Lis Schiavinatto
Das possibilidades de cidades utópicas:
os projetos urbanos no espaço do novo mundo
Antônio Edmilson M. Rodrigues
Le mappe dell’utopia
Marianna Forleo
L'utopia cosmopolitica moderna
Laura Tundo Ferente
Psicanálise e a vocação iconoclasta das utopias
Edson Luiz André de Souza
Perséfone no espaço.
A literatura e a morte dos mitos na ficção científica
Biagio d’Angelo
Em busca das utopias da/na América Latina:
identidades, literatura e cultura
Ildney Cavalcanti e Alfredo Cordiviola
Lingue d'utopia.
Un contributo essenziale per un assetto armonico
Nadia Minerva
A organização narrativa da imagem e da contra-imagem.
Da poética das utopias literárias
Willem Vosskamp
Declinazioni dello spazio abitato in terra d’utopia
Carmelina Imbroscio
ÍNDICE DAS EDIÇÕES DA REVISTA
MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO
Nº 1, 2004: Cidades utópicas
Nº 2, 2005: A definição do gênero utopia
Nº 3, 2006: O impacto das descobertas geográficas no imaginário europeu
Nº 4, 2007: Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia
Nº 5, 2008: Utopia, Reforma e Contra-Reforma
Capa
Editorial
A revista Morus – Utopia e Renascimento chega ao seu quinto número trazendo um dossiê dedicado ao tema “Utopia, Reforma e Contra-Reforma”, além de artigos avulsos relacionados aos temas da utopia e do Renascimento.
É pertinente conectar o surgimento da utopia, enquanto um gênero de representação autônomo, ao movimento da Reforma e da Contra-Reforma? A questão, aparentemente, é completamente pertinente, dada a contemporaneidade dos fenômenos; entretanto, não é consensual. Não resta dúvida de que Morus foi uma vítima da Reforma, e Campanella da Contra-Reforma. Tomado como gênero literário, a utopia afirmou-se na Inglaterra reformista, na Espanha e Itália da Contra-Reforma e na França das Guerras de Religião.
O essencial historiador Luigi Firpo coloca o Concílio de Trento, ponto de partida da Contra Reforma, como o núcleo dinâmico que redimensionou os problemas contemporâneos: a partir deste evento decisivo para o século XVI, as antigas questões são reequacionadas e passam a compor uma nova hierarquia de problemas a serem resolvidos. Em decorrência deste fato, uma nova agenda se formou, colocando na ordem do dia práticas como, por exemplo, o moralismo, na forma da confrontação sistemática e escrupulosa entre os valores humanistas do Renascimento e os, por assim dizer, perenes valores ético-religiosos da tradição. Na posição utópica, que consistia na proposta confiante e convicta de modelos de sociedades perfeitas, auto-suficientes e felizes, existiam elementos radicalmente incompatíveis com o clima espiritual trentino, que seriam: a) um fundo de epicurismo latente; b) uma busca de felicidade na Terra contrária à concepção cristã da cidade celeste, beatífica e perene; c) o sentido otimista da utopia civil; d) a implícita exaltação humanística da Razão e da autonomia do homem; e) a crença na auto-suficiência daquela sociedade imaginária, tão radicalmente autárquica que subsiste sem nenhum pressuposto de transcendência religiosa.
De fato, a religião no interior das utopias possui um caráter postiço e vago, um deísmo genérico, sem dogma, acolhido apenas em vista do valor social e moral das religiões e inclinado, portanto, a reconhecer nas diferentes crenças uma equivalência substancial. Para Raymond Trousson, a questão religiosa parece ser a única característica a fugir do dirigismo totalizante que caracteriza a utopia, principalmente a da Contra-Reforma. Nestas obras utópicas, a religião é reduzida a uma profissão de fé mínima: a fé é voltada para um Deus criador revelado pelo espetáculo da natureza. Há a crença na imortalidade da alma, mas sem aprofundamentos de ordem teológica: o culto é desinteressado, e há a ausência de uma igreja institucionalizada. A tolerância é absoluta, desde que não se provoquem desordens. Este inesperado liberalismo tem motivações profundas: em Utopia toda religião que fosse além de um simples deísmo pressuporia uma hierarquia e uma organização própria, e com isto seria uma potência autônoma, concorrente do Estado. Esta duplicidade de poderes dividiria o cidadão. A tolerância religiosa (religião do Estado) nasce, portanto, de uma intolerância civil. Por outro lado, a necessidade do irracional é admitida, desde que derivada para os cultos do Estado. No limite, a Utopia não tem uma religião, é uma religião, uma auto-adoração da Cidade. Como pólis/religião, há um culto social e os cidadãos são os oficiantes. A liberdade religiosa é apenas aparente: construção meramente terrena, não organiza o Além, não promete a Cidade de Deus no futuro, e oferece a Cidade do Homem.
Conforme Firpo, a esta tendência a Contra Reforma veio contrapor toda a complexa estrutura dogmática e teológica do catolicismo positivo, e tolhe subitamente a entusiástica fé nos ditames da razão humana. No Seicento a utopia se tornará, portanto, “fraca, privada de todo conteúdo social”, porque a nova época não é mais da razão, mas ligada à remota tradição dogmático-escolástica, e nela quer reconhecer os esquemas do viver associado. Firpo considera que para definir as características do utopismo do Renascimento seria necessário, ao mesmo tempo, definir o clima espiritual do início do Cinquecento. Predominaria neste sentido o que ele chama de racionalismo humanístico, no qual seria possível encontrar uma ânsia de alegria e autonomia humana, o orgulho da reconhecida supremacia e quase onipotência da inteligência, que se traduziria em otimismo operoso e no sentido desabusado e heróico da vida. Afinal, acostumado há séculos a comedir o próprio agir segundo uma férrea disciplina religiosa, o homem do humanismo reconhece estupefato no mundo uma razão suficiente, intrínseca, válida, a assegurar-lhe toda harmônica operação: a natureza. E no próprio íntimo esta natureza se faz consciente, e toma o nome de Razão. A Razão, por sua vez, torna-se guia e medida do agir. “Virtù” para Morus é “viver secondo natura”. Em decorrência, segue a guia da natureza aquele que obedece à Razão. Em outras palavras, a razão é a natureza consciente de si mesma, no seu íntimo.
Do impulso confiante de traçar por si a própria estrada no mundo, de forjar o mundo mesmo como criação da mente, nasce a crítica à tradição, uma atitude contra a estrutura histórica do viver associado, contra a complexidade do direito oriundo dos mandamentos bíblicos. Este rebelde processo intelectual, que tanto deve a Bernardino Telésio, opera um deslocamento do lugar da natureza: de cenário para cena (espetáculo). A questão é: esta natureza possuiria qual finalidade? A do auto-reconhecimento no e pelo Homem. Os sentidos (vasos comunicantes do Homem com a Natureza) tornam-se critério de conhecimento. Forjar o mundo a partir da mente: a mente é portadora da Razão que está na Natureza. Ligar-se racionalmente à natureza significa, em decorrência lógica, romper com a tradicional forma da vida associada. Em todos os campos a razão nutridora de experiência se põe confiante a ditar normas para todos os aspectos do agir prático.
Mas seguramente não faltaram motivos sociais para o surgimento das utopias: uma nobreza frívola e ávida, um clero corrupto e ocioso, o parasitismo pululante, um pauperismo deprimente, a fome, que leva ao furto e ao delito, e as turbas de salteadores e de vagabundos. O amor pelo quieto viver condenará tudo isso e buscará os valores projetados na Utopia, na forma da restauração da legalidade na vida política e o saneamento do agudo mal-estar econômico como conseqüência das graves desigualdades na distribuição da riqueza. Chegamos assim a este ponto: voltar-se para a natureza buscando normas incorruptas de vida coletiva significava entregar-se ao mito pagão da idade de ouro, à tradição religiosa do paraíso terrestre.
Portanto, se considerarmos que a utopia nasce com a obra de Morus, parece inequívoco associá-la ao ambiente convulsionado da religião cristã no século XVI europeu. Em questão está a obra dos humanistas, notadamente Pico della Mirandola e Erasmo, que construíram uma imagem do homem como um análogo de Deus – como um ser autônomo, dotado de livre-arbítrio ilimitado, capaz portanto de construir livremente por sua virtù tanto uma vida individual quanto uma vida associada: uma práxis que se revelará insuportável tanto para os reformados quanto para os trentinos.
A questão não é pequena, e este número da Morus reúne posições diferentes sobre ela.
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O dossiê começa com o artigo, hoje clássico, de um dos mais importantes historiadores do século passado, o italiano Luigi Firpo: Utopias da Contra-Reforma italiana, tradução para o português do original publicado em 1948. Neste artigo, Firpo analisa uma série de escritos utópicos do Cinquecento, pertencentes ao período mais atuante da Contra-Reforma. Primeiramente, identifica os traços principais da utopia renascentista, como seu cunho marcadamente social, sua posição otimista quanto à capacidade da razão humana de criar formas novas, perfeitas, autárquicas de organização social, entre outros. A isto contrapõe, num segundo momento, o conjunto de valores advindos do novo clima espiritual instaurado pela Contra-Reforma (e suas conseqüências), detendo-se principalmente em autores como Agostini, Campanella e Zuccolo.
Ainda no Cinquecento se situa o artigo de Christian Rivoletti, O corpo físico e político da cidade ideal no Cinquecento europeu. Seu estudo faz uma leitura da relação entre os significados da imagem do corpo humano e o discurso político que se fundamenta sobre uma concepção organicista de sociedade ideal. Na primeira parte, o autor analisa certos aspectos constitutivos da tradicional metáfora política do corpo social, e em seguida percorre alguns momentos significativos de sua tradução iconográfica. Assim, vários autores representativos desta idéia são examinados, como Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin, Francesco Patrizi, Johann Putsch e Francesco di Giorgio Martini.
Em seguida, dois ensaios analisam um dos mais importantes autores da Contra-Reforma, Tommaso Campanella, que escreveu a utopia Cidade do Sol, em 1602. Maria Moneti, em Campanella, a cidade historiada, leva em conta seu aspecto reformador e revolucionário, a herança de More (e, por intermédio dele, de Platão, que cita freqüentemente), a tradição herético-utópica calabresa, que incluía entre seus grandes personagens o célebre Gioacchino da Fiore, e a paisagem italiana meridional do final do século XVI e da primeira metade do sucessivo, caracterizada pela dominação espanhola, pela regressão econômica e cultural devida à perda de liberdade política e pela forte presença da Igreja na forma da Inquisição.
Carlos Eduardo O. Berriel mostra em seu artigo Campanella: a consciência possível da Contra-Reforma. Considerações sobre o “Appendice della politica detta La Città del Sole di fra’ Tommaso Campanella – Dialogo poetico” porque A Cidade do Sol é a utopia mais sintética e formalizadora dos intrincados problemas da Contra-Reforma. Ele faz uma leitura da sociedade solariana focalizando especialmente na interpretação pessoal – teocrática e ao mesmo tempo aristocraticamente comunista – que tinha Campanella da filosofia da natureza de Bernardino Telésio, e na sua busca pela conciliação relação entre razão e fé. Tal busca leva, em Campanella, à transformação do contraste excludente, construído pelo agnosticismo renascentista, entre essas duas esferas, em uma explícita e gradual continuidade que conduz a filosofia da natureza a se transformar em argumento a favor do cristianismo.
Martine Thiébaut, em Entreprise missionnaire et utopisme à travers quelques lettres de la mission jésuite du Brésil (1549-1570), procura entender a atividade missionária jesuíta como um novo modelo de organização de uma coletividade humana. Com efeito, o programa missionário leva à criação de micro-sociedades autárquicas e regulamentadas, propostas come um ideal de organização cristã: a missão ou redução, entendida pela autora em todos os sentidos que a polissemia desses termos permite.
Os dois últimos artigos do dossiê tratam de autores franceses. Frank Lestringant nos apresenta em Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico e a Reforma, numa visão panorâmica, que vai do século XVI ao XVIII, a relação entre reformados franceses e gênero utópico, uma relação privilegiada e particularmente fecunda. Sua investigação remonta a Rabelais e às suas seqüelas calvinistas, a Palissy e ao seu jardim sonhado, ao engenheiro saboiano Jacques Perret e às suas cidades ideais fortificadas pelos salmos. Em seguida ele analiza a Histoire du grand et admirable royaume d'Antangil, de 1616, que é também uma utopia protestante, e, no tempo da revogação do édito de Nantes e às vésperas do Iluminismo, as três grandes “utopias narrativas” de Gabriel de Foigny, de Denis Veiras d'Alès et de Tyssot de Patot. Sua investigação leva também em consideração as contra-utopias satíricas, quer se trate da Ilha sonante e de La Mappe-Monde nouvelle papistique dos anos 1560 ou, muito mais tarde, no termo do processo, da fantástica Description de l'Ile Formosa do suposto George Psalmanaazaar.
O artigo monográfico de Ana Cláudia R. Ribeiro Precipícios cristãos e oráculos austrais apresenta uma análise da questão religiosa na utopia de Gabriel de Foigny, La Terre Australe connue, de Gabriel de Foigny, publicada em Genebra em 1676. A religião austral partilha algumas de suas características com o cristianismo, mas é com o deísmo que se pode melhor identificá-la, por isso, a autora inicia seu artigo definindo este termo. Em seguida, ela analisa o texto propriamente, seguindo passo a passo a maneira pela qual Foigny expõe os sistemas religiosos de austrais e cristãos em seu capítulo sobre a religião austral e explicitando o modo pelo qual Foigny, dissimuladamente, coloca em valor o deísmo austral em detrimento dos pensamentos cristão e ateu, segundo uma técnica de exposição libertina.
Fora do dossiê estão artigos sobre temas variados dentro das grandes questões da utopia e do Renascimento. O primeiro deles é de Jean Michel Racault, L’utopie festive, que aproxima e articula as noções de utopia e de festa na Utopia de More e na Histoire des Sévarambes, de Veiras por meio do raciocínio em torno de duas questões: a utopia seria uma contestação da norma social existente em nome de uma sociedade ideal ou uma empresa voluntarista que visaria a construir uma sociedade destinada a permanecer fixa em sua suposta perfeição?; a festa, por sua vez, seria a libertação anárquica de uma espontaneidade lúdica ou uma manifestação regulada de um ritual social imposto? O autor constata então que as noções de utopia e festa levantam as mesmas contradições em torno do problema do individual e do coletivo, do regulado e do espontâneo.
Em seguida, em A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”: um estudo sobre o Papel do índio brasileiro na entrada de Henrique II em Rouen em 1550 José Alexandrino de Souza Filho estuda a “festa brasileira”, representação de caráter teatral encenada durante a entrada de Henrique II em Rouen em 1550, cujo tema era a vida dos índios brasileiros. Partindo da análise da documentação existente sobre este acontecimento ele descreve como se deu a encenação, que se articulava com outro espetáculo, a naumaquia, o combate naval entre franceses e portugueses. Ambas as atrações, por sua vez, faziam parte de uma todo maior, que incluía as alegorias apresentadas em Rouen intramuros. O conjunto consistia em criar um grande espetáculo que representasse o triunfo da monarquia e da civilização francesas em articulação com um projeto de expansão territorial de além-mar: a conquista do Brasil.
Arrigo Colombo, em seu artigo-manifesto O novo sentido da utopia: a construção de uma sociedade de justiça, segue as premissas de Mannheim e de Ernst Bloch, para os quais a utopia é o fator constitutivo mais profundo e dinâmico-construtivo do processo histórico. Partindo da pesquisa sobre a história da utopia, reconstitui um itinerário baseado nos “movimentos religiosos de salvação”, nos “movimentos modernos revolucionários” e no itinerário construtivo que vai da Revolução inglesa ao nosso tempo, portadores, segundo ele, do projeto utópico como projeto da sociedade de justiça.
Em Dalla morte di un’utopia alla nascita di un mito: l’esperienza anabattista di Münster nelle sue rivisitazioni letterarie, Carmelina Imbroscio faz um percurso pelos escritos literários que evocam e relêem a experiência revolucionária, milenarista e mística de Münster, como modos de revivecência da memória deste episódio, por tantos motivos singular, entre os quais o fato de ser um acontecimento histórico transformado em mito e literatura, enquanto que a maioria das utopias da época percorrem o caminho inverso.
Helvio Moraes apresenta em seu artigo A ‘ars historica’ nos tempos do Concílio uma síntese do problema da ars historica na época da Contra-Reforma, estudando o caso particular dos Dialighi della Historia de Francesco Patrizi. Num primeiro momento, detém-se na problemática referente ao gênero da ars historica e da historiografia humanista até Maquiavel e buscamos compreender o ambiente intelectual em que os Dialoghi foram escritos, para daí, apresentar sua leitura da obra.
A imbricação dos gêneros da utopia e da contra-utopia é o motor do artigo de Paolo Coluccia, Utopia e contro-utopia nella Storia dei Galligeni di Tiphaigne de la Roche. Nessa sua última obra, Tiphaigne apresenta, em uma descrição de uma sociedade ideal conforme aos paradigma utópico moreano, os germes da discórdia, que levarão à presença da revolta e de um processo degenerativo na cidade utópica. Coluccia individua um fundo pessimista na pensamento do autor, que, se por um lado imagina a perfeição, por outro, entrevê sua impossibilidade, já que o homem está inexoravelmente ligado ao acaso do nascimento, ao sofrimento da vida e à decadência representada pela morte.
La donna nell’utopia sette-ottocentesca, de Laura Tundo, após passar em revista as diversas concepções filosóficas e sociológicas da família, discute as propostas de emancipação da mulher nas utopias do século XIX e sua influência na transformação da família, buscando individuar os fatores históricos desta mudança. São discutidas as posições de C. H. de Saint-Simon, da escola de P. Enfantin e o projeto utópico radicalmente inovador de Charles Fourier relativo à concepção do amor, à moral privada e pública, à condição pessoal e social da mulher e à transformação da família que diz respeito à toda a sociedade.
A forma como as utopias e distopias abordam a questão dos livros e das bibliotecasé o tema de As bibliotecas utopianas, de Maria do Rosário Monteiro. Seu artigo trata da articulação da leitura e da escrita, formas de liberdade individual e expressão da capacidade criativa da humanidade, com as utopias, essas propostas de organizações sociais que têm por objetivo o bem comum. Ela analisa o conflito potencial entre as esferas do privado e do público e a maneira como este conflito é resolvido ou evitado na Utopia de More, em Christianopolis, de Johann Valentin Andreae, L’an deux mille quatre cent quarante de Louis-Sébastien Mercier, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Utopia III, de Pina Martins e The Telling, de Ursula K. Le Guin.
Terminamos o presente volume com o artigo Utopia e processi di modernizzazione della Turchia attraverso il paradigma storico-letterario, de Lucia Antonazzo. Levando em conta um processo que se iniciou em 1839 e foi confirmado em 1923, por Mustafa Kemal Atatürk, a autora analisa o processo de modernização da Turquia, seu espelhamento na literatura – nos romances Yeni Turan, de Halide Edib Adıvar,e Ankara, de Yakup Kadri Karasmanoğlu – e seu caráter utópico, dedicando especial atenção à crise do patriarcado. Os personagens dos romances considerados revelam as dificuldades em aderir completamente às mudanças sociais que, embora desejadas, não são nunca efetivamente aceitas e praticadas.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Editor da revista MORUS – Utopia e Renascimento
Sumário
Dossiê: A utopia na Contra-Reforma
A utopia política na Contra-Reforma
Luigi Firpo
O corpo físico e político da cidade ideal no Cinquecento europeu
Christian Rivoletti
Campanella, a cidade historiada
Maria Moneti Codignola
Campanella: a consciência possível da Contra-Reforma. Considerações sobre o “Appendice della politica detta La Città del Sole di fra' Tommaso Campanella - Dialogo poetico” (1602)
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Entreprise missionnaire et utopisme à travers quelques lettres de la mission jésuite du Brésil (1549-1570)
Martine Thiébaut
Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico e a Reforma (séculos XVI-XVIII)
Frank Lestringant
Precipícios cristãos e oráculos austrais: uma análise da questão religiosa na utopia de Gabriel de Foigny
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Estudos
L'utopie festive: fêtes, cérémonies et célébrations de L'utopie de More à l'Histoire des Sévarambes de Veiras
Jean-Michel Racault
A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”: um estudo sobre o Papel do índio brasileiro na entrada de Henrique II em Rouen em 1550
José Alexandrino de Souza Filho
O novo sentido da utopia: a construção de uma sociedade de justiça
Arrigo Colombo
Dalla morte di un'utopia alla nascita di un mito: l'esperienza anabattista di Münster nelle sue rivisitazioni letterarie
Carmelina Imbroscio
A ars historica em debate nos Dialoghi della Historia de Francesco Patrizi
Helvio Moraes
Utopia e contro-utopia nella Storia dei Galligeni di Tiphaigne de la Roche
Paolo Coluccia
L'utopia di fronte ai problemi della famiglia e della donna nel fra Sette e Ottocento
Laura Tundo Ferente
As bibliotecas utopianas
Maria do Rosário Monteiro
Utopie e processi di modernizzazione della Turchia attraverso il paradigma storico-letterario
Lucia C. Antonazzo
Capa
Editorial
A revista Morus – Utopia e Renascimento nasceu há pouco mais de 2 anos, no Brasil. Nessa curta trajetória publicou 3 números e agora participa como copromotora deste Congresso, junto a Università di Firenze, representada pela pessoa extraordinária do Prof. Claudio De Boni. Resultado do esforço de um grupo de pesquisadores que se reúne no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), associados a especialistas de várias universidades e núcleos de pesquisa, a revista MORUS nasceu no sentido contrário da hegemonia pragmática dos tempos que correm. Nasceu sob o signo austero que regeu também as utopias no seu nascedouro histórico, o Renascimento. Como as utopias, a revista MORUS olha para o real aparente tentando descobrir a hipótese generosa sonegada por um tempo cruel e áspero. Aposta, assim, na possibilidade da retomada do fio histórico do Humanismo que foi cortado, e quer denunciar esse fato. Essencialmente histórica e crítica, a MORUS nasceu como uma publicação acadêmica interessada em estudos rigorosos que conceituem a utopia, em suas manifestações, problemas e como gênero, e principalmente - mas não exclusivamente - naquele complexo período que a historiografia do século XIX chamou de Renascimento. No mais, a revista fala por si. O leque, portanto, é amplo: reunimo-nos aqui para discutir a árdua relação entre ilhas perfeitas, ciência e técnica, o que é em si pensar a atualidade do problema utópico.
Existe no ar atualmente um clima de retorno ao tema da Utopia, e esta reunião de inteligências registra o fato. Depois de serem liquidadas por Engels, com sua tese de que o socialismo científico tornaria supérfluo e superado o socialismo utópico, e da ampla difusão das formas modernas de democracia, as utopias pareceram desaparecer definitivamente no oblívio da lata de lixo da História. O socialismo de tipo leninista deu a impressão a muitos, por um certo tempo, que iria realizar no mundo as idéias de um perfeito convívio humano, baseado na racionalidade. No entanto, o hiper-racionalismo stalinista jogara fora certos elementos utópicos necessários a um socialismo mais generoso, e esta lacuna tornou-se evidente com os trágicos acontecimentos que fazem a rotina dos jornais. O retorno do interesse pela questão utópica coincide, de certa forma, com a queda do muro de Berlim e os tormentosos desdobramentos do capitalismo financeiro e seu ceticismo intrínseco – a forma hodierna da credulidade fetichista. Entretanto, o longo sono das utopias, causado pela engenharia social das nações de capitalismo atrasado (que gerou o fascismo e o socialismo de tipo soviético) foi mais aparente que real: a miragem selvagem do fim da História jamais impediu a produção de vasta obra utópica, que, entretanto, pendeu para seu lado negativo: as distopias. Numerosas no século XX, eficientes complicadoras no horizonte do gênero, as distopias são o pesadelo social de que os romances 1984 e Animal Farm e a rica ficção científica são bons exemplos.
Circunscrita a estas temáticas, a revista MORUS sai com a finalidade de estudar todos esses problemas. Sob a regência da História e da crítica, publica estudos e investigações sobre a rica problemática das sociedades imaginárias e imaginadas, diversas do existente. Concebe o real não apenas como aquilo que existe empiricamente, mas também como aquilo que pode – e deve ser. Dignifica a virtualidade humana, e suspeita do pragmatismo. Tratamos do real, e se sonhamos, é porque, como disse o Bardo, somos feitos da mesma matéria dos sonhos.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Editor da revista MORUS – Utopia e Renascimento
Sumário
Presentazione – Carlos E. O. Berriel
Apresentação – Carlos E. O. Berriel
Saluto di Claudio De Boni
Saudação de Claudio De Boni
Testo di presentazione del convegno “Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia”
Texto de apresentação do congresso “Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia”
Programma del convegno “Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia”
Relazioni/Comunicações
Science sans conscience n’est que ruine de l’âme: bonheur, sciences et techniques
en Utopie
Raymond Trousson
Razionalità utopica e razionalità scientifica
Cosimo Quarta
Contraddittorietà e Storia: materie intrinseche dell’utopia
Carlos Berriel
Scienza, sapere umanistico e tecnica nell’Utopia di Thomas Morus
Christian Rivoletti
Immagini della scienza e della natura nelle utopie di Patrizi e di Bacone
Helvio Gomes Moraes Jr.
Scienza e tecnica nella Terre Australe Connue di Gabriel de Foigny
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Eutopias and Dystopias of Science
Lyman Tower Sargent
Utopie et science chez Charles Fourier
Ivone Gallo
Quelques utopies modernes à la lumière de l’arithmétique politique (1660-1820)
Alexandra Sippel
Flatlandia: testo e contesto nelle utopie matematiche
Marianna Forleo
Memorie politiche del sottosuolo. La monadologia utopica di Gabriel Tarde
Gianluca Bonaiuti
Utopia e positivismo: il caso italiano di Paolo Mantegazza
Claudio De Boni
Euclides da Cunha e Os Sertões come poetica delle rovine: l’immaginario distopico nella letteratura e nella storiografia brasiliana della fine dell’Ottocento
Francisco Foot Hardman
La tecnologia come momento del processo utopico
Arrigo Colombo
Verso una felicità razionale: città e tecnica dall’utopismo del Movimento Moderno
alla distopia di Eugenij Zamjátin
Margherita Fontanella
Building distopia
Nathaniel Coleman
L’ipermercato dei sogni: tecnologia e utopia nei parchi di divertimento a tema
Simona Sangiorgi
Lo sguardo di Windows. La seduzione della tecnologia nel pensiero di Ivan Illich
Paolo Coluccia
Il sublime tecnologico nei romanzi di Menotti Del Picchia
Gilson e Marilda Queluz
The Industrialization of the Kibbutz: Utopia and Practice
Henri Near
Ecologismo: a primeira utopia planetária
Arthur Soffiati
The technic and technicism as means of mythologization of utopian and antiutopian narrative in the Romantic and Wellsian fiction
Aleksander Golozubov
Samuel Butler e lo ‘spirito’ della Macchina
Beatrice Battaglia
Science as a Defense against Totalitarism in George Orwell’s 1984
Daniel Ogden
Biopotere, scienza e nuove tecnologie in Woman on the edge of Time (1976) di Marge Piercy
Brunella Casalini
Two Technological Dystopias: Le Monde tel qu’il sera and Alpha Ralpha Boulevard
Maria Monteiro
William Gibson e Pat Cadigan: il cyborg e le nuove configurazioni del corpo in una prospettiva comparata
Vita Fortunati e Eleonora Federici
Capa
Editorial
Apresentamos o terceiro número da Revista Morus – Utopia e Renascimento.
Em período inferior a três semestres, cumprimos o esforço de colocar à disposição do leitor especializado um acervo de ensaios, artigos e de traduções de utopias raras, em três números que, inequivocamente, repôs o tema utópico sob uma nova luz. A Morus, além de reorientar o debate no Brasil sobre o problema da utopia, constituiu-se em canal de amplo aspecto para os pesquisadores do tema, tomado este sob os ângulos mais variados: a história literária, a teoria dos gêneros, a ética, a história, a filosofia. Multitemática, multilingüe, a Morus tem buscado ter em si a forma de seu problema precípuo.
Em seu núcleo há um dossiê temático dedicado ao tema do impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia, e o registro deste impacto na obra de vários autores que se vinculam, direta ou indiretamente, ao pensamento utópico. Além do dossiê, o leitor encontrará uma série de artigos circunscritos aos temas da revista, e duas resenhas que inauguram este novo segmento da revista. As utopias, um gênero extraordinário em suas efetividades e conseqüências, nascem com a obra de Thomas Morus, em 1516. Nela, já há a problemática das viagens de descobertas: um navegante português, Rafael Hitlodeu, companheiro de Vasco da Gama, narra o que viu numa ilha inventada. A imaginação das ilhas desconhecidas, do país remoto no qual prospera a cidade ideal – matéria básica das utopias -, não é só imitação literária, mas um hábil recurso para suprimir, com o álibi da ignorada revelação cristã, a carga inteira da estrutura ético-religiosa daquela república fictícia. Como resultado, evita-se o confronto com as normas morais e a dogmática da Igreja.
Seguiram-se à obra de Morus várias utopias escritas em várias línguas, a primeira delas a de Antonio Guevara, espanhol empenhado nos preceitos éticos-políticos do nascente império ibérico. A utopia, portanto, surge como gênero literário nas circunstâncias correspondentes ao leque histórico das grandes descobertas, da constituição dos impérios coloniais, da afirmação das monarquias absolutas, dos desdobramentos do grande fato Trentino, a Reforma e a Contra Reforma. Indissociável dos eventos das Descobertas, a utopia em si mesma acusa o impacto dos descobrimentos marítimos na cultura européia.
Ao nascer, a utopia adota a forma do discurso testemunhal, como diálogo (um elemento integrante do gênero), em que um viajante conta o que viu no mundo até então desconhecido. Paira sobre as obras o clima cultural das descobertas, o espírito geral das navegações (povos estranhos, hábitos inusitados), mas ele é ficcional: o que se conta, no fundo, é a vida européia transfigurada. Usa-se a parábola: Utopia é, na verdade, a Inglaterra invertida. A constatação do mundus alter permite repensar a vida européia. A descoberta do Novo Mundo altera o imaginário político europeu.
Tratando de um país longínquo, a utopia possibilita o diálogo com o mundo do viajante, permitindo, através da comparação, a crítica da situação social em seu país de origem: estabelece-se um olhar que coteja a realidade e a obra literária. O viajante tem, na sua essência, uma função mediadora entre dois mundos, e seu depoimento, que é em si a utopia, põe realidade e ficção face a face, esta espelhando aquela, em cujo reflexo aparecem correções, modificações e, especialmente, inversões. A categoria paradigmática da inversão é aqui fundamental.
Nadia Minerva, em notável ensaio, estuda uma das constantes do texto utópico, o recurso à viagem, vista não como mero expediente, mas como princípio (I). A seu ver, a viagem é carregada de simbologia, podendo ser entendida como caminho para a verdade, constante mítica e mesmo antropológica. Nela, a relação entre real e ilusório é estreitíssima. O imaginário estrutura a experiência real, enquanto que esta serve de base para as elaborações interiores: as fronteiras entre real e ilusório são, assim, indefinidas. Paralelamente, na utopia, o ideal se sobrepõe ao real com o mesmo compromisso que, na viagem, une real e ilusório: as fronteiras entre verdadeiro e falso se diluem. Para Minerva, o interesse do texto utópico está não somente no projeto em si, mas também na maneira de contá-lo e no agenciamento das diversas unidades narrativas. A autora mostra a articulação da aventura, da ação e do movimento, próprios da viagem, em um gênero feito, paradoxalmente, mais de conceitos que de ações.
Em períodos mais posteriores à obra de Thomas Morus, o elemento romanesco é mais desenvolvido, mais verossímil, aproximando a utopia do relato de viagem, onde estão presentes duas modalidades de apresentação: a descritiva e a narrativa. De fato, o relato de viagem contém em si o relato de aventuras e exposição didática, alimenta verdadeira trama, nele existem ações concatenadas e princípio de causalidade. Com efeito, se algumas utopias são secas e essenciais, restritas à ossatura, outras apresentam, como narrativa, substanciosos elementos fantásticos e de aventura. O desenvolvimento desta modalidade ou estilo de utopia é observável a partir do século XVII, quando então se pode falar em “romance utópico”, efetividades literárias que podem ser identificadas com as viagens imaginárias e com os relatos de viagem (II). É evidente, pois, o impacto das descobertas geográficas no imaginário utópico. Os utopistas inspiraram-se nos relatos de exploradores e nos textos dos naturalistas em suas descrições, apropriando-se das descrições de lugares, de cenários, as peripécias, a trama narrativa.
Um dos resultados deste procedimento está no fato de que a geografia utópica passa a ser verossímil, a ficção pura dando lugar ao realismo narrativo, alimentado que é por uma correspondência na realidade. Ganha, deste modo, a confiança do leitor. A viagem autêntica e estrutura a utopia, tornando-a veraz e mais eficiente.Os utopistas extraíram dos relatos de viajantes não apenas o detalhamento dos cenários naturais, como também procedimentos narrativos e estratégias retóricas, que agregam veracidade ao texto, como por exemplo a narração em primeira pessoa, conforme o modelo dos diários de bordo, dando a clara impressão de ser o utopista um viajante que testemunhou tudo aquilo que escreve de modo veraz, e o uso de léxico especializado em descrições minuciosas da fauna, da flora e outros aspectos do mundo descoberto.
A adoção da narrativa retrospectiva, em primeira pessoa, que segue o fluxo da memória e do testemunho, traz a utopia para o acervo das obras literárias que contribuíram para o próprio nascimento do romance enquanto gênero literário.
Ainda segundo Nadia Minerva, o relato de viagem se funda sobre o princípio da legibilidade do mundo. Ele pode perder a dimensão de movimento para tornar-se descrição da realidade encontrada e catálogo de seus componentes. A utopia, por sua vez, é a descrição de uma imagem ilusória mostrada como se fosse real. No relato de viagem e na utopia estão estreitamente articuladas as categorias do verdadeiro, do verossímil e do ilusório. Por outro lado, sendo a descrição de um mundo perfeito, racionalmente pensado, que se quer autêntico, a utopia pretende fugir do ilusório fazendo recurso às características do relato de viagem. Lugar de nenhum lugar, ilha recortada do mundo da nossa civilização, projeção em uma dimensão imaginária de um estado de coisas que não tem nenhuma correspondência com a realidade contingente, a utopia é, portanto, ilusão que finge ser real e que, do real, assume todos os detalhes, todos os traços, para desenhar um quadro vivo. Por isto a utopia se mostra em movimento, se teatraliza, procura efeitos capazes de suscitar a impressão de encontrar-se em contato direto com a realidade e não com uma das suas representações, para dar um corpo àquilo que na realidade não existe. Certamente, um dos aspectos mais singulares da utopia é esta estreita trama de categorias que normalmente caminham sobre duas vias paralelas: o puramente ideal e o imaginário se cruzam com o real, o ser com o devir (III).
Esta edição da Revista Morus abre com o artigo Le « Jardin des Délices » de Jéróme Bosch: Une utopie du désir sublimé, de Claude-Gilbert Dubois, que discute o significado do célebre tríptico de Hieronimus Bosch, O Jardim das Delícias, cujo título se manteve devido a uma tradição arbitrariamente instaurada, já que o pintor não havia intitulado sua obra. Na primeira parte de seu artigo, Dubois aprofunda duas interpretações distintas do quadro. Segundo a mais antiga, Bosch teria realizado uma ilustração clássica da seqüência teológica do cristianismo mais ortodoxo, representada pelos momentos da criação da inocência, da degradação terrena e da punição após a morte. A esta interpretação, no entanto, se opõe outra, que vê no painel central o paraíso, onde se dá a realização de jogos eróticos em uma atmosfera de beatitude e inocência. Na segunda parte, o autor se interessa pela concepção teológica da obra. Segundo a interpretação tradicional, corroborada pela atmosfera trágica da época do pintor, o fim da Idade Média, em que se manifesta um cristianismo pessimista, o tríptico não ilustraria a redenção, conceito essencial da teologia da salvação cristã. Dubois, no entanto, demonstrará que, ao contrário, a presença do redentor se encontra multiplicada nos diversos painéis.
Cosimo Quarta, em Utopia: gênese de uma palavra-chave, busca voltar às origens da palavra “utopia”, para entender seu sentido originário, liberando-a, assim, das incrustações que, segundo o autor, sedimentadas ao longo dos séculos, deturparam-na a ponto de torná-la quase irreconhecível. Para tal, examina a gênese do termo, ressaltando que este é um dos aspectos mais negligenciados pelos estudiosos da obra de Morus. Assim, reconstrói as circunstâncias e os eventos que levaram à cunhagem do termo que, “embora tendo tido muita fortuna, tem sido, contudo – por causa de sua originária ambigüidade, ou melhor, polissemia – fonte de muitos e graves equívocos no plano conceitual”.
Arrigo Colombo, em Formas da utopia – As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiça, faz um percurso pelos vários sentidos da palavra utopia, desde a obra inaugural de Morus, vista pelo autor como descrição de um modelo político exemplar, inspirada nos pontos basilares de um arquétipo utópico, ou seja, de um projeto que exprime as estruturas constitutivas de uma sociedade de justiça. O livro de Morus “torna-se um modelo histórico que perpassa toda a modernidade; traduz-se em um gênero literário, ou político-literário”. Partindo, portanto, de Morus, Colombo analisa o fenômeno utópico na modernidade – como um processo de caráter dinâmico, criativo, continuamente inovador, estendido sobre o futuro e que corresponde ao processo construtivo de uma sociedade de justiça – , passando pelos primeiros utopistas e a grande produção de escritos utópicos, pela crítica marx-engelsiana e o “ponto de desvio” causado por ela (e por suas leituras), chegando a abordar os grandes estudiosos do pensamento utópico no século XX, principalmente Mannheim e Bloch, como autores que delimitam a utopia em sentido histórico e, assim, alargam o seu significado.
O artigo de Christian Rivoletti, intitulado Strategie della finzione nelle utopie del Cinquecento europeo – Sulla ricezione dell’Utopia di Thomas More nei testi di Eberlin von Günzburg, Antonio Brucioli, Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin e Tommaso Campanella, dá ênfase à combinação entre esforço intelectual – ressaltando o caráter lúdico do escrito como estratégia ficcional - e empenho político na Utopia de Morus, o que faz o autor desenvolver sua análise numa perspectiva histórico-estética, ou seja, a da recepção da obra moreana em diferentes momentos e ambientes também diversos, quais sejam: 1) o dos leitores humanistas do texto; 2) o de suas traduções em línguas vernáculas; e 3) o da produção européia de textos utópicos. Rivoletti procura também traçar uma tipologia das estratégias ficcionais em Morus, individuando elementos como a predominância do testemunho direto sobre a dialética argumentativa, a extensão imaginária das dimensões espaciais, o valor metafórico da viagem, o jogo onomástico ressaltando o caráter paradoxal do texto e a inclusão, no texto, de um juízo discordante.
O editor desta revista, em Utopie, dystopie et histoire, propõe algumas reflexões acerca dos termos “utopia” e “distopia”, traçando alguns paralelos. Estabelece dois princípios para o surgimento das utopias: 1) a experiência histórica, como metáfora; e 2) uma Idéia, enquanto construção abstrata que desce do Céu para a Terra. As distopias surgem, em sua maior parte, deste segundo princípio, sendo derivadas das utopias desligadas do mundo empiricamente concreto. Outros pontos de contraste são expostos, como o hiato entre a História real e o espaço reservado para as projeções nas utopias e a continuidade das distopias com o processo histórico, enfatizando suas tendências negativas. Divergente também é o fato de que, enquanto nas utopias a estrutura negativa da organização humana existente é sobreposta à estrutura positiva da Cidade Ideal, nas distopias, a realidade não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação de um mundo grotesco.
Jean-Michel Racault, em seu artigo intitulado La question des langues dans “L’Utopie” de Thomas More, analisa o problema das línguas na obra paradigmática de Morus, alargando o sentido da questão a todas as formas de troca lingüística que problematizam a utopia enquanto texto literário, levando em conta não somente as línguas inventadas pelos utopistas, mas também outras, que afetam real ou ficticiamente o texto utópico, especialmente a língua do viajante-narrador, aquela com a qual ele escreve seu relato e a que usa para se comunicar com o leitor. Racault leva ainda em consideração os fenômenos de interferência lingüística ligados aos problemas de tradução, da diversidade dos sistemas gráficos, da questão do livro como vetor de alteridade e da função mediadora da linguagem.
No artigo No sertão do Maranhão, o império das Américas – Planos racionais de povoamento nos roteiros de viagem do Grão-Pará e Maranhão do séc. XVIII, Maria Lucia Abaurre Gnerre procura mapear um repertório de temas utópicos, originários das utopias dos séc. XVI e XVII, que reverberam em textos de viajantes que percorrem o estado do Grão-Pará e Maranhão no século XVIII. Através da análise de um importante relato de viagem, o anônimo Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauí e de outros textos pertencentes a este mesmo gênero, produzidos na segunda metade do séc. XVIII, a autora busca identificar as marcas de um substrato utópico que se faz presente nestes textos, além de compreender de que modo as utopias servem como embasamento para planos reais de povoamento e colonização de regiões enormes e incivilizadas.
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Abrindo o dossiê “O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia”, temos o artigo de Andrea Battistini, Dois exploradores em cotejo: os novos mundos de Colombo e Galileu, que nos apresenta um vasto panorama referente à repercussão das descobertas dos dois exploradores, com ênfase na função retórica que as evocações de tais descobertas cumpria nos escritos do tardo Cinquecento e Seicento, numa gradual predominância das “descobertas astronômicas, que se apóiam sobre fundamento celeste”, sobre “a contingência mais efêmera da descoberta da América, de natureza “terrestre” e, por isso, deteriorável”.
No artigo O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da utopia, Frank Lestringant desenvolve a relação entre utopias e viagens de descoberta em quatro partes: a primeira trata das interferências de viagens reais - acontecidas em um mundo real equivalente a um arquipélago geográfico e confessional - na Utopia, significativamente uma ilha; na segunda o autor ressalta o papel de Luciano como fundador de boa parte do utopismo, fundando a declamatio, um gênero retórico-filosófico especialmente desenvolvido no Renascimento definido pelo jogo e pela ficção, tendo por objeto o “real-irreal”; a terceira parte discute o cotejo da vida dos habitantes de terras longínquas com os europeus, intensificado pelas viagens de descoberta, encontrado em autores como Vespúcio, Cartier, Montaigne, Lescarbot, dentre outros; por fim, a quarta parte trata de Le Royame d’Antangil (1616) que, conforme Lestringant, seria a segunda utopia escrita na França, bastante próxima do modelo moreano, e a primeira a ilustrar o mito da terra austral.
O objeto do artigo de Maria Moneti Codignola, Filosofi, utopisti, selvaggi, é a mudança de paradigma - de estrutura logico-epistemológica, de significado e de intenções – que intervém na utopia da era moderna, em relação à utopia clássica e, mais especificamente, platônica, devido ao efeito da revolução filosófica e espiritual produzida pelo encontro da cultura européia com as estruturas lógicas e epistemológicas das chamadas “sociedades selvagens” do novo mundo. A autora leva em consideração as utopias em sentido estrito, mas também pensadores como Mannheim e Bloch, procurando entender como a utopia redefiniu seu próprio status ao longo das principais revoluções filosóficas da era moderna.
Em Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l’utopia della felicità secondo natura, Claudio De Boni analisa a relação entre a expansão do mundo real e sua conseqüência, a “descoberta” literária de lugares inexistentes nos quais são projetados os desejos de aperfeiçoamento social no âmbito do século das Luzes, quando a descoberta de novas terras à margem da civilização alimenta o mito da “ilha feliz”, estreitamente ligado ao motivo iluminista do estado de natureza como termo de confronto e de juízo. De Boni analisará dois autores que se inserem nesta rede de relações: Louis-Antoine de Bougainville, autor do relato de viagem de uma das mais longas e celebradas viagens reais do século dezoito, e o filósofo Denis Diderot, autor do Supplément au voyage de Bougainville, de 1772.
Antonio Edmilson Martins Rodrigues, em América renascentista – um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía da Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais, defende a idéia de que a cidade do Rio de Janeiro não nasceu como feitoria, estando “mais próxima de uma cidade de ladrilhadores, aproximada de uma cidade clássica e apresentava-se possuindo duas portas, uma para a Europa e outra para o interior da América e uma esfera política capaz de animá-la com a idéia de um governo de colonos” – o que lhe possibilita ver a América como invenção renascentista.
José Alexandrino de Souza Filho, em A arte do blefe: Montaigne e o “mito do bom selvagem”, analisa e discute o célebre episódio da visita dos índios canibais brasileiros à França, tal como o escritor e filósofo Michel de Montaigne o descreveu no ensaio “Dos Canibais”, demonstrando que ele foi inventado a partir de determinados fatos históricos, que o ensaísta alterou em prol dos seus objetivos literários, intelectuais e políticos. Historicamente falando, o autor considera tanto a visita quanto a “conversação” com os indígenas um blefe; literariamente, ele a julga uma pequena obra-prima de sagacidade e imaginação criadora. Num segundo momento são trazidas à luz, com base em documentos, as verdadeiras circunstâncias históricas que serviram de inspiração ao ensaísta francês, qual o suporte bibliográfico de que se serviu e como esses elementos aparecem no texto.
O andrógino, o hermafrodita, o canibal e o selvagem: habitantes de terras utópicas, de Ana Cláudia Romano Ribeiro, discute o sentido dos significados atribuídos a estes quatro tipos de habitantes de terras utópicas expondo, em um primeiro momento, a origem e localização histórica dos mitos do andrógino, mítica expressão da completude, e do hermafrodita, seu contrário híbrido e desarmônico; em um segundo momento, analisando como o andrógino platônico torna-se o termo de comparação entre europeus e selvagens em “Dos canibais”, de Montaigne; e em um terceiro momento, relacionando os dois mitos aos habitantes bissexuados de duas utopias francesas do século XVII: A Ilha dos Hermafroditas, atribuída a Artus Thomas, e A Terra Austral Conhecida, de Gabriel de Foigny.
Maria de Fátima Costa investiga um mito geográfico, surgido no interior da América Meridional: o da Laguna dos Xarayes, em La Laguna de los Xarayes. Un lugar en la geografia maravillosa de Sudamerica. Para tal, a autora acompanha sua invenção através das narrativas do século XVI, seus meios de difusão através de mapas dos séculos XVII e XVIII, e, por fim, sua dissipação durante os trabalhos de demarcação de limites, realizados durante a década de 1750, depois do Tratado de Madrid.
Emerson Tin apresenta a tradução de doze d’As Cartas Iroquesas, escritas em 1752 por Jean-Henri Maubert de Gouvest. Nelas, um “Iroquês, de nome Igli, é enviado pela assembléia de valentes de seu povo para estudar os costumes dos europeus. As Cartas Iroquesas, escritas ao amigo Alha, são o resultado dessa viagem, em que o selvagem iroquês se depara com o civilizado mundo francês do reinado de Luís XV. Ou, melhor dizendo, o civilizado iroquês se depara com o selvagem mundo francês do reinado de Luís XV”. Mais do que mera cópia das Cartas Persas do Barão de Montesquieu, como foram consideradas, as Cartas Iroquesas, com sua crítica à religião, aos costumes da sociedade francesa e ao governo monárquico, configuram-se “como mais um dos inúmeros escritos que levariam a monarquia francesa ao desmoronamento, quatro décadas depois”.
O artigo de Raymond Trousson, O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a Renascença, empreende uma ampla retomada da “ilusão americana” em cinco séculos de literatura utópica, em que a América, ornada inicialmente pelo prestígio dos desconhecidos longínquos, vestígio da idade de ouro na terra prometida, pátria do bom selvagem, espaço virgem aberto às comunidades de boa vontade, torna-se, paulatinamente, exemplo de anticivilização, de anti-humanismo, como se vê nas distopias, mas sem a qual, este gênero literário não teria podido desabrochar tão largamente.
Inaugurando a sessão de resenhas, a Morus 3 traz Ciudades en Utopía. En torno a un estudio de la ciudad ideal, de Hanno-Walter Kruft, escrita por Pablo Diener, que apresenta a proposta do autor de Städte in Utopia. Die Idealstadt vom 15. bis zum 18. Jahrhundert, lúcida, inovadora e atenta a seguir uma perspectiva problemática e multidisciplinar para uma compreensão cabal da cidade ideal, considerando componentes históricos, artísticos, filosóficos, éticos, estéticos, além de questões no âmbito da sociologia.
Por fim, a resenha de Susana Souto Silva, Utopia em várias perspectivas, nos apresenta o número especial da Revista Leitura, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística/UFAL, que tem tema homônimo ao núcleo de pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas que o organizou: Literatura & Utopia.
Boa leitura.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel | Editor
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Helvio Gomes Moraes Jr.
Co-editores
I MINERVA, Nadia. “Viaggi in utopia . Note su alcuni romanzi dei secoli XVII e XVIII” em Utopia e... amici e nemici del genere utopico nella letteratura francese, Ravenna: Longo Editore, 1995.
II MINERVA, op. cit., p. 42.
III Idem, ibidem, p. 52-53.
Sumário
Le “Jardin des délices” de Jérôme Bosh: une utopie du désir sublimé
Claude-Gilbert Dubois
Utopia: gênese de uma palavra-chave
Cosimo Quarta
Formas da utopia. As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade
de justiça
Arrigo Colombo
Strategie della finzione nelle utopie del Cinquecento europeo. Sulla ricezione
dell’Utopia di Thomas More nei testi di Eberlin von Günzburg, Antonio
Brucioli, Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin e Tommaso Campanella
Christian Rivoletti
Utopie, dystopie et histoire
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
La question des langues dans l’Utopie de Thomas Morus
Jean-Michel Racault
No sertão do Maranhão, o império das Américas – Planos racionais de
povoamento nos roteiros de viagem do Grão-Pará e Maranhão do séc.
XVIII
Maria Lucia Abaurre Gnerre
DOSSIÊ TEMÁTICO
O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia
Dois exploradores em cotejo: os novos mundos de Colombo e Galileu
Andrea Battistini
O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da
utopia
Frank Lestringant
Filosofi, utopisti, selvaggi
Maria Moneti Codignola
Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l’utopia della felicità secondo natura
Cláudio De Boni
América renascentista – um ensaio: as experiências modernas no espaço da
Baía da Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre
utopias e ideais
Antonio Edmilson Martins Rodrigues
A arte do blefe: Montaigne e o “mito do bom selvagem”
José Alexandrino de Souza Filho
O andrógino, o hermafrodita, o canibal e o selvagem: habitantes de terras
utópicas
Ana Cláudia Romano Ribeiro
La Laguna de los Xarayes. Un lugar en la geografia maravillosa de
Sudamerica
Maria de Fátima Costa
As Cartas Iroquesas de Jean-Henri Maubert de Gouvest (1752)
Emerson Tin
O Mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a Renascença
Raymond Trousson
RESENHA
Ciudades en Utopia. En torno a un estudio de la ciudad ideal, de Hanno-Walter Kruft
Pablo Diener
Utopia em várias perspectivas
Susana Souto Silva
Capa
Editorial
Entregamos ao leitor interessado o segundo número da Revista Morus – Utopia e Renascimento. Nele vai um dossiê necessário: um esforço conjunto de definição da utopia como gênero literário. Em parte na vontade de salvar o conceito da banalização de seu uso sentimental, em parte na aposta de sua extraordinária riqueza quando bem compreendido, e resolutamente na convicção de que definir e separar gêneros é atividade central do pensamento. Neste empenho, cumpre elucidar os desdobramentos que a utopia conheceu no seu meio milênio de existência: a mais atual, certamente, a distopia.
Salvo melhor juízo, as utopias (principalmente no seu século inicial, em que o gênero ainda se afirmava e constituía seus delineamentos) são geradas por dois princípios distintos: 1) a partir de uma experiência histórica, como metáfora (a de Morus é exemplar como metáfora da Inglaterra concreta), e 2) a partir de uma Idéia, de uma construção abstrata que desce do Céu para a Terra (sendo a Civitas Solis o melhor exemplo, como formalização da racionalidade restritiva tridentina). Desta hipótese surge a idéia de ser a distopia primordialmente oriunda deste segundo princípio, da série distópica derivar das utopias desligadas do mundo empiricamente concreto.
É bem sabido que a distopia nasceu da utopia, e que ambas expressões são estreitamente ligadas. Há em toda utopia um elemento distópico, expresso ou tácito, e vice-versa. A utopia pode ser distópica se não forem compartilhados os pressupostos essenciais, ou utópica a distopia, se a deformação caricatural da realidade não for aceita. A distopia, que revela o medo da opressão totalizante, pode ser vista como o oposto especular da própria utopia. É preciso considerar a relatividade daquilo a que se referia Margareth Mead, quando avisava ser o sonho de um o pesadelo do outro. Afinal, o sonho de um pode ser perfeitamente inócuo para o outro. Trata-se principalmente da constatação de que o “sonho” perfeito de um, quando é oriundo de um constructo abstrato (que é efêmero mas se quer eterno, que é singular mas se imagina universal, que aspira a decretar o fim da História por se crer o ponto de chegada da vida humana) este sonho é o que gera o pesadelo da distopia.
Julga Bronislaw Baczco que “a utopia não orienta por si só o curso da história: em função do contexto no qual se coloca, essa corresponde aos desejos e às esperanças coletivas (...). Todavia, nenhuma utopia carrega em si o cenário histórico para o qual contribuiu eventualmente para sua realização: nenhuma utopia prevê o seu próprio destino histórico, o próprio futuro” (“Finzione storiche e congiunture utopiche”, in “Nell’ anno 2000 – Dall’utopia all’ucronia”. Leo S. Olschki editore, Firenze, MMI). Em outras palavras: as utopias, partindo de elementos reais, reconstroem todas as Histórias possíveis, todos os cenários que a História não realizou. A raiz desta idéia vem da Poética de Aristóteles, onde está dito ser a poesia mais ampla que a História, pois realiza até o fim aquilo que a História apenas esboçou. Hegel conceituará uma realidade notavelmente rica, em que o existente contará com várias dimensões – todas reais. Aquilo que aparece como uma tendência concreta, mesmo que não venha a se efetivar, também ganha estatuto de realidade. A utopia legaliza-se filosoficamente aí: é uma tendência da realidade, operante e efetiva, mas que não se efetiva enquanto Estado. Habita a dimensão ética. A sua condição de gênero está nos quesitos tendência de realidade e não-efetividade.
A relação entre real e ilusório é estreitíssima na utopia, assim como no relato das viagens de descobertas. O imaginário estrutura a experiência real, enquanto esta serve de base para as elaborações posteriores: as fronteiras entre real e ilusório são, assim, indefinidas. Na utopia, o ideal se sobrepõe ao real com o mesmo compromisso com que, nas viagens de descobertas, une real e ilusório: as fronteiras entre verdadeiro e falso se diluem.
São muito diferentes as perspectivas pelas quais os autores de utopias e distopias edificam as suas construções; ambas, entretanto, são regidas pelas mesmas leis, como a tragédia e a comédia também o são, segundo o juízo clássico, aristotélico. Podemos considerar que:
a) a utopia clássica se desenvolve construindo um hiato (insanável) entre a História real e o espaço reservado para as projeções utópicas; a descoberta de um país distante, até então ignorado (como no enredo de Morus, Campanella e outros) se tornaram símbolo de uma fratura não apenas geográfica, mas, sobretudo histórica;
b) a distopia busca colocar-se em continuidade com o processo histórico, ampliando e formalizando as tendências negativas operantes no presente que, se não forem obstruídas, podem conduzir, quase fatalmente, às sociedades perversas (a própria distopia).
Na utopia, a sociedade configurada histórica, cultural e politicamente é formalizada com o objetivo de ser superada através da imagem da Cidade ideal instaurada. Neste sentido é exemplar a adoção, por parte de muitos utopistas, do conto de uma viagem aventurosa que faz o narrador desembarcar em uma terra desconhecida. Tal presença reveste na utopia um papel fundamental: constitui aquela fratura espaço-temporal que permite a existência mesma da representação utópica; o longo percurso permite ao narrador deixar atrás de si a sua própria experiência social, política, religiosa e econômica para viver em um mundo cujo isolamento geográfico, e conseqüentemente histórico e cultural, criou instituições e costumes que nada tem em comum com a realidade originária do viajante. Somos assim colocados frente a uma sociedade radicalmente diversa; mas tal diferenciação na utopia se torna contraposição especular: a estrutura negativa da organização humana existente é sobreposta àquela estrutura positiva da Cidade Nova imaginada. Desta maneira, o utopista procura superar a realidade contingente propondo, como alternativa, uma sociedade perfeita enquanto racionalmente fundada.
Ao contrário, na distopia a realidade não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da estrutura de um mundo grotesco. Em suma, é próprio da dimensão histórica a determinação da diferença entre a utopia e a distopia: o lugar feliz imaginado é realmente um não-lugar, no sentido em que não se coloca espacialmente na história mesma de quem escreve; porque aquilo que deseja o utopista é «mostrar» aos homens a imagem de um mundo feliz e racional, e através desta demonstração admoestá-los para que se sintam compungidos a imprimir energicamente à História um sentido diverso daquele até então predominante.
Como já se sabe, a utopia de Morus tem uma base real, que é a Inglaterra de fato, que nesta obra é severamente estudada. Ela, a Utopia, não é o produto de um delírio, mas nasceu das necessidades concretas de combater o destino, de fundar uma “segunda natureza” para o homem – a História. Esta é a face generosa da utopia.
Mas nem todos os exemplos desse gênero foram assim. As utopias da Contra Reforma não partiram de uma sociedade usada como referencia, portanto transfiguradas, mas conceberam uma polis e uma vida coletiva a partir de conceitos abstratos elaborados por uma Igreja intensamente defensiva. São metástases dos conventos e dos mosteiros, em que as práticas necessárias da vida extra-monacal (trabalho, convivência, casamento, reprodução, representação política, etc.) passam por um completo regramento que retiram dessas mesmas atividades a espontaneidade civil, e são traduzidas em disciplina clerical. Isso é central e constitutivo no orwelliano 1984, por exemplo.
A distopia, portanto, é o alongamento do perfil das utopias construídas a partir de proposituras abstratas, e não de metáforas ou alegorias. O controle social absoluto, a partir das consciências, nascido na Contra Reforma, conduziu a uma variante de utopias, que encontra na Civitas Solis sua plena expressão, seu melhor exemplo, que fornecerá os elementos para a futura distopia. Esta não surge inesperadamente, como um raio num céu azul, mas já respirava nas anteriores utopias da Contra Reforma (Agostini, Patrizi, Buonamico).
A noção de perfectibilidade social, então, não nasce – nem poderia nascer - de uma experiência humana concreta, geradora de problemas solúveis, mas nasce incontaminada pela História, nasce como constructo ideal, em que a dimensão empírica do homem está removida. A solidão que emana das pinturas de Piero della Francesca sobre a cidade ideal (em que pese a especificidade de suas condições de realização) diz muito sobre isso; não são cidades construídas para o homem realmente existente, mas um conjunto no qual a arquitetura e o urbanismo cederam lugar e substancia à escultura, e a presença humana desequilibra e borra o conjunto. Sua racionalidade resulta áspera, e seus índices de condução à emancipação da vida associada mesclam-se ao seu oposto, à sua própria negação: como Édipo em Colono, o indivíduo acaba expurgado da polis que ele libertou da quimera enigmática.
Existiram dois momentos centrais da História marcados pela intolerância, e que possivelmente forneceram os elementos fundantes da distopia; foram duas conjunções sociais frágeis, instáveis, defensivas – apesar da aparência em contrário: a Igreja Católica tridentina e o Estado soviético. Essas instituições, no seu processo afirmativo, criaram a ilusão de serem perfeitas por não poderem suportar a dissensão – o que efetivamente poderia destruí-las. A ilusão de serem formas perfeitas, utopias já realizadas, gerou, ainda que involuntariamente, o material que será formalizado na distopia.
A abstração social tridentina talvez possua um equivalente no hiper-racionalismo de tipo soviético, que derivou de Lênin e alcançou sua plena tradução com Stálin. As utopias, ou o seu recurso imagético, encontraram um virtual obstáculo nas manifestações do marxismo vulgar. Os Estados soviéticos desautorizaram e implicitamente coibiram a reflexão utópica, por considerarem que a perfeição social já estava obtida pela perfeita disposição do Estado para alcançar a perfectibilidade. O desideratum oficial deveria bastar para dissuadir cogitações utópicas.O hiper-racionalismo faz prevalecer uma concepção tida como racional (quando no fundo são equações abstratas, filhas da engenharia política) mesmo quando ela apresenta sintomas inquietantes, principalmente na forma da desintegração dos indivíduos - que são removidos do universo problemático. Fogueiras quinhentistas e gulags modernos acabaram formando uma simetria.
Quando Campanella construiu sua cidade perfeita como uma hipostasia da vida monacal, estava implicitamente considerando a Igreja como a perfeição da vida coletiva; quando a esquerda do século XX considerou a utopia um não-assunto, estava considerando o coletivismo soviético como o ápice insuperável do viver associado.
Destas atitudes derivou a distopia.
A grande questão é aquilo que constitui a face oculta, o não-dito utópico: que a perfectibilidade reside na completa previsão das ações e desejos humanos, que são realizados antes mesmo de serem pensados. O Estado pensou antes e já o realizou. Ou o vetou. Em termos mais amplos, a História não se efetivaria pela concreta experiência humana, mas como produto de um Estado onisciente; a História apareceria como subproduto das pulsões humanas, coadas pelo filtro estatal. O resíduo obstruído pelo Estado acumular-se-ia aonde? A resposta será a distopia: ela é o resíduo obstruído pelo Estado completamente racional.
A distopia é afinal, espelho da suspensão da História; sua imagem é o exílio da humanidade, tornada resíduo, esta, pela razão enlouquecida. Aqueles que recentemente teorizaram o fim da História, à sombra benevolente do capital financeiro, proclamavam o pesadelo como se fosse uma boa nova.
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Dentro do Dossiê A Utopia como gênero literário, a Morus 2 traz um texto já clássico de Luigi Firpo, essencial para o esforço de definição das utopias. Prudente, Firpo já acreditava em 1986 ser necessário evitar que o interesse despertado pelo utopismo “nos leve a dilatar excessivamente seus confins até transformá-lo em tudologia”, ou seja, que a excessiva abrangência acabe por perder a definição do gênero. Muitas são efetivamente as dimensões da cultura – o urbanismo, a política, a reforma das estruturas sociais – que interessam à utopia; e Firpo crê ser nosso dever começar um trabalho de classificação para estabelecer quais são exatamente os limites que devem separar os nossos campos de investigação, principalmente para poderem falar todos da mesma coisa. Convencia-se o grande historiador “que uma utopia, para poder ser definida como tal, para poder ingressar neste “gênero”, deva ser global, radical e prematura”: “global porque o projeto de reforma, sendo substancial, sendo perturbador, mas limitado a uma pequena instituição, a um aspecto singular da nossa vida em comum, não pode, aspirar ao nome de utopia”; “radical, porque um projeto que implique leves variantes, pequenos retoques, um deslocamento quase imperceptível das estruturas da sociedade em um ou outro sentido, é assunto de todos os dias”; e enfim, “a característica mais importante de todas, aquela que realmente distingue o ‘gênero’ utópico dos programas de reforma e do reformismo em geral, é a lúcida consciência do seu caráter prematuro”. Daí sua célebre imagem: “A utopia é historicamente uma mensagem na garrafa, a mensagem de um náufrago”.
O artigo de Cosimo Quarta (L’utopia come progetto e processo storico: dall’età antica all’alto Medioevo) parte da sólida convicção de que a utopia não deve ser considerada apenas como um mero fato literário, sem que se leve em conta seu próprio conceito e que se revele seu papel histórico. Sem diminuir a real importância que possuem os projetos histórico-literários, Quarta propõe voltar a atenção sobretudo para a utopia histórica, ou seja, para os projetos que a humanidade não apenas tem elaborado desde sempre, mas também historicamente realizado. Ao conceber a utopia como projeto e processo histórico, seu campo de investigação cresce enormemente, incorporando em seu horizonte a inteira história humana. Proposta ambiciosa e estimulante, sem dúvida. Teria, para ele, chegado o momento de pensar a elaboração de uma história universal da utopia.
Raymond Trousson, em Utopia e Utopismo, lança uma indagação seminal: devemos nos interrogar sobre as condições necessárias e suficientes para constituir aquilo que deveria poder se definir como gênero literário, que é ao mesmo tempo expressão de um comportamento geral do espírito e distinto de outros gêneros, limítrofes ou aparentados? Em uma palavra, como delimitar a amplitude da investigação e circunscrever o corpus? Na busca de resposta, Trousson inclina-se pela posição de Bronislaw Baczko que, falando das fronteiras movediças da utopia, lembra que duas abordagens metodológicas são concebíveis: 1) a apreensão lato sensu do fenômeno, que julga que sendo a utopia literária somente um dos modos de expressão do imaginário social, convém abrir a pesquisa às manifestações híbridas, recorrendo a múltiplos paradigmas discursivos, permitindo assim a compreensão das imagens-guia e das idéias-força, estruturando este imaginário em uma dada época; 2) a apreensão stricto sensu, que reconhece ter sido a viagem utópica durante muito tempo a forma privilegiada do pensamento utópico. Uma primeira tarefa talvez consista em definir a utopia de maneira negativa, distinguindo-a por seu propósito ou sua intencionalidade, de gêneros limítrofes ou aparentados. Com efeito, se a utopia – como o utopismo – supõe a vontade de construir um mundo outro e uma história alternativa, ela se revela essencialmente humanista ou antropocêntrica, na medida em que, pura criação humana, ela torna o homem mestre de seu destino.
Desta forma, talvez admitamos que o gênero utópico seja definido em primeiro lugar por uma diferença radical de intencionalidade em relação aos gêneros aparentados. Enquanto eles evocam o abrigo, o refúgio, a demissão frente ao real, a utopia recusa a submissão à transcendência – o que explica a ausência de utopia stricto sensu na Idade Média, cujo pensamento religioso não conhece os outros mundos, mas o outro mundo, para o qual o homem deve se preparar pela purificação de sua existência terrestre. Contrariamente, a utopia propõe uma redenção do homem pelo homem, nascida de um sentimento trágico da história e da vontade de dirigir seu curso. Procura de uma felicidade ativa, ela visa a dar uma finalidade terrestre à aventura humana e testemunha uma consciência sociológica desperta. Neste sentido, talvez não haja uma definição formal do relato utópico, mas antes uma série cronológica de definições respondendo ao porvir dos meios de expressão.
Em seu artigo, Vita Fortunati (Utopia and Melancholy: na Intriguing and Secret Relationship) expõe que a utopia e a melancolia, à primeira vista, parecem ser dois termos contraditórios, já que a utopia está sempre associada à idéia de felicidade ou harmonia e deleite. De fato, utopia é apresentada como um projeto racional, sustentado por uma razão que quer remover todos os defeitos e males da realidade para criar ordem no caos e corrigir a desarmonia e a maldade do mundo. Sua hipótese de trabalho consiste em revelar um paradoxo: as obras concebidas conforme os princípios da razão são freqüentemente provocadas por uma reação irracional. Por essa razão, ao estudar o íntimo e intrigante vínculo entre utopia e melancolia, parece ser muito importante traçar as razões que induziram o utopista a esboçar sua obra.
Lyman Tower Sargent (What is Utopia?) levantará algumas das razões para a existência de questões persistentes no campo da conceituação da utopia, cujas fronteiras são movediças, e afirmará que, apesar de existirem definições equivocadas, é impossível esperar que uma única definição esclareça o gênero em todas as suas épocas. Quatro dificuldades obscurecem o campo da definição da utopia literária e fazem com que seus problemas permaneçam em discussão. A primeira foi dada pelo próprio Morus, quando brincou com os dois sentidos extraídos da mesma palavra, pronunciada em inglês: utopia e eutopia. A segunda vem do fato de que a categoria “utopia” designa obras muito diversas entre si, já que seus autores souberam ampliar largamente suas fronteiras conceituais, complexificando os sentidos atribuídos ao gênero. Em terceiro, a palavra inventada por Morus serve também para definir uma maneira de pensar, chamada utopismo, que parece ser universal, e que também encontra expressão em formas variadas, freqüentemente confundida com o gênero literário. Em seguida, este campo conta com pesquisas que se aplicam somente a determinados períodos, e que deixam de lado toda a variedade que o gênero apresenta. Lyman relaciona teóricos com posições conflitantes sobre a natureza mais ou menos perfeita da utopia. O problema sugere duas versões possíveis da perfeição: humana e social. Indagando-se sobre a essência da utopia, julga haverem dois aspectos centrais na caracterização do gênero: primeiramente, a sociedade descrita não pode existir; em segundo, o autor deve, de alguma maneira, avaliar esta sociedade. Conclui afirmando a existência de fato de um gênero literário utópico que, no entanto, tem partes diversas, além de suas fronteiras serem constantemente ampliadas pelos autores.
No artigo O sentido do gênero literário utópico no século da Ilha dos Hermafroditas, Ana Claudia Romano Ribeiro localiza a Ilha dos Hermafroditas, de Artus Thomas (1605) em relação às outras utopias publicadas na França no século XVII, estabelecendo assim um sintético panorama das utopias e do sentido do gênero utópico neste século. Observa que nessa circunscrição histórica, a criação literária utópica toma impulso, especialmente no fértil terreno filosófico de novas elaborações do paradigma: “a utopia corresponde ao projeto absolutista que ela ilustra e reforça”. As utopias deste século mostram uma vontade de laicizar o Estado, de limitar ao máximo a presença da Igreja nas decisões do governo, de afirmar a dessacralização da natureza e de recusar a religião.Além deste significativo fato, as descobertas geográficas, estimuladas pela política de colonização de Colbert, inspiram relatos de viagens que contribuíram para a associação da utopia com a viagem imaginária. Os relatos de viagens reais povoam as entrelinhas das obras utópicas deste período, e serviram de base para as descrições nas utopias francesas, dotadas de abundantes informações, de detalhes, de verossimilhança, enfim, de realismo narrativo. Os utopistas procuravam uma linguagem que reproduzisse o mesmo sabor de autenticidade característico dos relatos de viagens reais neste século, e o aspecto romanesco prima sobre os demais, contrastando vivamente com as primeiras utopias, de Morus, Bacon ou Campanella: o texto utópico se aproxima da ficção, os utopistas adquirem o gosto da precisão, do verismo, com menos especulações filosóficas, detalhando informações sobre a vida do protagonista, recheando seus textos com informações científicas específicas, com detalhes geográficos, descrições paisagens, animais e comportamentos exóticos, situando com exatidão suas cidades utópicas, obtendo credibilidade e verossimilhança.
O artigo de Francisco Calazans Falcon (Utopia e Modernidade) guarda mesmo um certo pioneirismo na visagem do tema utópico no Brasil. Proferido como palestra em 1993, por ocasião do XVII Simpósio Nacional – "História e Utopias", Calazans Falcon indagava: é a Modernidade que deve ser pensada enquanto utopia, ou será a natureza da Utopia no seio da modernidade que se deve analisar? A hipótese de que estas duas indagações sejam pertinentes do ponto de vista da História é o seu ponto de partida.
Na primeira parte deste texto o autor incursiona nos domínios teóricos de várias disciplinas, além, é claro, da História, a fim de tratar os campos conceituais dos significantes "utopia" e "modernidade". Na segunda parte aborda alguns aspectos e problemas que resultam da análise da utopia, ou melhor, das utopias, no espaço-tempo da modernidade: formas, conteúdos, processos e relações com algumas outras regiões do "imaginário social". Na terceira parte examina a hipótese de ser a modernidade ela mesma uma utopia, derivada da utopia das Luzes, o Iluminismo, mas convertida, no século XX, na ideologia dominante. Falcon examina, ainda, a persistência ou não de utopias opostas à modernidade e a necessidade do pensamento utópico como instrumento de superação dos impasses da própria modernidade, preservando-se ou não, conforme as perspectivas em conflito, o essencial da herança iluminista.
Além do Dossiê Utopia como Gênero Literário, a Morus 2 traz matérias de interesse para o estudioso do Renascimento.
A filósofa Agnes Heller no seu artigo O que é Natureza? O que é Natural? – Shakespeare como Filósofo da História, observa que o bardo, em sua obra, dificilmente menciona a ordem cósmica, tendo-a subestimada. Shakespeare tampouco teria criado um espaço ou uma ordem metafísicos: “Seu senso de ordem, particularmente seu senso de ordem espacial, está mais próximo do Renascimento que do Barroco. Sua visão trágica não é apocalíptica, mas estritamente histórica. Eventos incomuns e ameaçadores, catástrofes naturais ou irregularidades, como tempestades e abortos, são freqüentemente lidos pelas personagens shakespearianas como sinais de males políticos presentes ou indícios de uma futura mudança histórica, mas não têm nenhuma implicação cósmica”. Na sua fórmula, o tempo estaria fora dos eixos: “Não há nenhuma intervenção cósmica ou divina no teatro shakespeariano”. Shakespeare não concordaria plenamente com o ditum hegeliano de que a única coisa que se aprende da história é que nada foi, jamais, aprendido a partir dela. Apesar de considerar a História imprevisível, Heller compara Shakespeare a Maquiavel: afinal, o florentino estabeleceu algumas regularidades na história política, e se elas existem, então se podem prever certos desenvolvimentos; daí que certos tipos de regularidades também podem ser observados em Shakespeare. Mas Shakespeare está menos interessado em regularidades que na singularidade de uma ação, no encontro pessoal fortuito e no impacto recíproco de personalidades, e, assim, no desenrolar dos acontecimentos. A política é sempre medida pelos resultados de ações, e a História pela sua qualidade. Mas não há retorno ao início, e não se pode traçar um movimento unidirecional na seqüência de acontecimentos. E isto é decisivo, pois mesmo que não haja um relato completo do porquê e do “para quê”, toda personagem é marcada pelos seus atos: até onde uma personagem vai, a que ponto uma personagem se detém, tem importância absoluta. Pois há um ponto do qual é impossível retornar. Uma pessoa pode se inventar e se reinventar. Seu caráter se desdobra, e ela pode começar novamente. Contudo, depois de um certo ponto, a personagem entra em queda livre: a aceleração. Não há retorno a partir do momento que a queda livre começa. Esta é a razão de Lukács ter dito no ensaio “A Metafísica da Tragédia” (A Alma e as Formas) que o herói trágico está morto no momento que surge em cena. Heller discorda deste juízo, pois crê que as personagens de Shakespeare podem se reinventar até um certo ponto.
Na visão da história de Shakespeare, o importante não são os fatos, mas o modo de pensá-los ou imaginá-los: há o predomínio ou o peso da subjetividade. A pior historiografia seria acreditar em uma única interpretação de um fato como sendo algo final. É má historiografia atribuir uma única interpretação a um fato, porque, ao fazer assim, identifica-se o fato com esta interpretação e com a teoria. Com toda a probabilidade, o fato será mal interpretado. Como as coisas “realmente” aconteceram é uma questão relevante para as personagens de Shakespeare. Mas “realmente” não seria um fato, mas um espaço que permite várias interpretações: suas personagens agem com base em suas crenças e crenças simuladas, concebem como verdade o que desejam ser verdadeiro: esta é a verdade para elas.
Na matéria intitulada “A invenção do campo disciplinar da Arquitetura: contribuições e contraposições renascentistas”, Carlos Antônio Leite Brandão indica que, se a constituição madura do campo disciplinar da Arquitetura só ocorrerá no século XVIII (quando da consolidação do agrupamento moderno das artes), pensar a Arquitetura como disciplina no Renascimento só pode ser visto como um momento proto-moderno, quando ela não mais se enquadra nos agrupamentos medievais enquanto arte mecânica ou subalterna - na medida em que foi aproximada das artes liberais do espírito e do desenho, como em Vasari - mas ainda não adquiriu a constituição autônoma que a distinguirá das ciências, da moral e das demais artes. Brandão busca estudá-la nesse intermezzo e dar a ver em que medida se altera o local que ela ocupa na cultura e no saber diante do medievo, e quais as contribuições que ela, se examinada neste novo local cultural, fornece para a nossa produção e seu estatuto disciplinar na contemporaneidade.
O artigo relata algumas contribuições oferecidas pela Renascença para a constituição futura do campo disciplinar da Arquitetura, tal como ele será compreendida no moderno sistema das artes. Contudo, isto não recobre toda a Renascença pois é justamente ao não definir-se rigidamente dentro de uma determinada fronteira que a arquitetura do quattrocento deixar-se-á contaminar por outros campos, tais como a ciência, a matemática, a retórica, a literatura clássica, os studia humanitatis e as demais artes. Brandão conclui seu estudo examinando como a invenção na arquitetura do Renascimento (Alberti e Leonardo) se deu justamente a partir deste contágio e de ser seu campo difuso.
O artigo de Helvio Gomes Moraes Jr. (Percorrendo a Cidade Feliz: uma leitura da utopia patriziana) pode ser lido como complemento àquele em que apresentou a tradução de La Città Felice, de Francesco Patrizi da Cherso, publicado no primeiro número da Revista Morus. Ali, indicou algumas especificidades da cidade utópica patriziana às quais, agora, se detém, propondo, assim, uma espécie de roteiro de leitura do trattatelo. Busca, principalmente, compreender o pensamento político e filosófico, ainda em formação nesta obra inaugural de Patrizi. Sua composição data de 1551, quando o autor freqüentava o Studio paduano. Foi publicada dois anos mais tarde, em Veneza. Porém, mais que exercício acadêmico, no sentido de uma disputatio, tal escrito chama a atenção por já conter os germes de temas bastante caros a Patrizi, a serem desenvolvidos posteriormente e que virão a constituir o cerne de seu pensamento.
Partindo de uma realidade histórica atual, a da escolha em andamento de três línguas paras comunicações oficiais na Comunidade Européia – o francês, o inglês e o alemão – Laura Schram Pighi faz uma reflexão sobre a língua italiana, que não encontrou lugar na proposta européia, colocando-a em relação com a língua futura representada nas utopias, apoiando seus argumentos sobre o italiano do futuro em um conjunto de utopias literárias italianas dos dois últimos séculos, e também em textos não utópicos.
O editor desta revista comparece com a tradução para o português de A Ilha de Nársida, de Matteo Buonamico, uma das utopias italianas do século XVI. Este escrito pretende demonstrar, em estilo altamente característico do período, aquilo que convém a um príncipe – trata-se de um espelho de príncipes. Admoesta o autor ao hipotético leitor a exigência de liberar-se das paixões, de desfazer-se dos vícios, para bem viver no consórcio civil; e, assim, moralmente livre, poder abraçar a sujeição a Deus e ao Príncipe, que seria, portanto, a servidão voluntária. Uma das qualidades deste tratatello é demonstrar como o sentido utópico era comum no Itália do cinquecento. Desta forma a Revista Morus dá continuidade ao seu projeto de ampliar a biblioteca de obras utópicas em língua portuguesa.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Editor
Sumário
O que é Natureza? O que é Natural?
Shakespeare como Filósofo da História
Agnes Heller
Tradução de Helvio Gomes Moraes Jr.
Percorrendo a Cidade Feliz: uma leitura da utopia patriziana
Helvio Gomes Moraes Jr.
A invenção do campo disciplinar da Arquitetura:
contribuições e contraposições renascentistas
Carlos Antônio Leite Brandão
Quale Italiano per L’Europa Futura?
Laura Schram Pighi
DOSSIÊ: Utopia como gênero literário
O Elogio dos Garamantes de Mambrino Roseo (1543)
Tradução e apresentação de Carlos Eduardo O. Berriel
Utopia e Utopismo
Raymond Trousson
Tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro
Utopia and Melancholy: an Intriguing and Secret Relationship
Vita Fortunati
What is a Utopia?
Lyman Sargent Tower
Utopia e Modernidade
Francisco Calazans Falcon
L’utopia come progetto e processo storico:
dall’età antica all’alto Medioevo
Cosimo Quarta
O sentido do gênero literário utópico
no século da Ilha dos Hermafroditas
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Para uma definição de “Utopia”
Luigi Firpo
Tradução de Carlos Eduardo O. Berriel
Capa
Editorial
Nasce a Revista Morus – Renascimento e Utopia. Resultado do esforço de um grupo de pesquisadores, nasce a contrapelo da hegemonia pragmática dos tempos que correm. Nasce sob o signo austero que regeu também as utopias no seu nascedouro histórico, o Renascimento. Como as utopias, a Revista Morus olha para o aparente e vislumbra o apenas insinuado, a hipótese generosa sonegada por um tempo cruel e áspero. Aposta, assim, na possibilidade da retomada de um fio histórico que foi cortado, e quer denunciar este fato.
Existe no ar atualmente um clima de retorno ao tema da Utopia. Depois de serem liquidadas por Engels, com sua tese de que o socialismo científico tornaria supérfluo e superado o socialismo utópico, e da ampla difusão das formas modernas de democracia, as utopias pareceram desaparecer definitivamente no oblívio da lata de lixo da História. O socialismo de tipo leninista deu a impressão a muitos, por um certo tempo, que iria realizar no mundo as idéias de um perfeito convívio humano, baseado na racionalidade. No entanto, o hiper-racionalismo stalinista (conceito elaborado por Georg Lukács) jogara fora certos elementos utópicos necessários a um socialismo mais generoso, e esta lacuna tornou-se evidente com os trágicos acontecimentos de 1989 para cá. O retorno do interesse pela questão utópica coincide, de certa forma, com a queda do muro de Berlim e seus tormentosos desdobramentos. Entretanto, o longo sono das utopias, causado pela engenharia social das nações de capitalismo atrasado (que gerou o fascismo e o socialismo de tipo soviético) foi mais aparente que real: a miragem selvagem do fim da História jamais impediu a produção de vasta obra utópica, que, entretanto, pendeu para seu lado negativo: as distopias. Numerosas no século XX, eficientes complicadoras no horizonte do gênero, as distopias são as utopias negativas, o pesadelo social de que os romances 1984 e Animal Farm e a rica ficção científica são bons exemplos. A distopia, porém, está muito próxima de sua antípoda gêmea, pois o sonho de um é o pesadelo de outro, como dizia sabiamente Margareth Mead. A semântica, porém está bem embaralhada: afinal, o que é uma utopia? Podemos tentar definir este gênero, necessariamente situando-o no período de seu nascimento – o século XVI.
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Em primeiro lugar, embora pareça que a sombra das utopias se estenda ao supra-histórico, ela é sempre ligada à realidade presente pelo desejo de modificá-la, e pelo seu repertório de imagens: a utopia é sempre datada, porque apresenta solução de problemas históricos bem localizados. Para alguns estudiosos a utopia seria uma antecipação do futuro, uma previsão que apenas gradativamente pode produzir resultados no sentido desejado, uma mensagem na garrafa que só muito mais tarde pode ser recolhida, entendida e aplicada. Para o historiador Luigi Firpo, o “utopista é um reformador tão profundamente consciente do caráter prematuro e extemporâneo do seu projeto, que sabe não poder redigir em forma de programa concreto e se induz, portanto, a cogitar uma forma diferente de comunicação e de proposta”.
Para alguns, a utopia seria uma projeção longínqua da realidade política existente no momento mesmo da redação do texto, e uma inteligência antecipadora com relação aos acontecimentos históricos que se efetivarão posteriormente. Assim, a utopia seria uma aspiração subjetiva, um desejo de renovação que colide com a mentalidade comum. Para outros, a utopia seria uma corrente histórica de renovação social, fundada sobre valores e necessidades considerados essenciais, tais como liberdade, igualdade, justiça, irmandade – e que foram esquecidos ou descurados. A utopia seria o contínuo retorno desses valores e necessidades como exigência perene, ineliminável. Com certeza não faltaram motivos sociais para o surgimento das utopias: o caos do nascente capitalismo mercantil, uma nobreza frívola e ávida, um clero corrupto e ocioso, o parasitismo pululante, o ofício das armas reduzido à rapina de ociosos, um pauperismo deprimente, a fome, o escombro da antiga sociedade e o nascimento brutal de uma nova forma de Estado. O amor pelo quieto viver condenará tudo isso, e buscará os valores projetados na Utopia.
A explicação mais geral do nascimento deste gênero literário, tão próximo da história, da filosofia e da política, segue basicamente a idéia de que a Utopia foi gerada pelo processo burguês de racionalização da vida, tão própria do Renascimento. Naquela atmosfera, o homem do Renascimento experimentava a idéia de se conceber como autor de sua própria existência, e a utopia foi uma busca de soluções racionais para os complexos problemas da convivência humana, em todos os planos. O gênero utópico reflete as tensões da época, a difícil busca do equilíbrio entre tradição e reforma.
Para os homens daquele tempo, possuídos pela idéia de guiarem por si mesmos a sorte pessoal e o destino da humanidade, foi decisivo a fixação de normas de conduta e a regulamentação de cada aspecto da vida prática. Todos podiam e deviam responder a critérios universalmente válidos: para cada setor de atividades havia uma norma, uma guia, uma regra, um código.
É provável que nenhum dos principais autores das utopias do Renascimento cresse que a sociedade descrita fosse realizável – ao contrário dos socialistas utópicos do século XIX. Mas quiseram criticar a sociedade de sua época e propor reformas, cumpridas imaginariamente na sociedade utópica.
A obra de Morus, que funda o gênero, aparece no seu complexo como um esforço no sentido de uma idéia mais justa e mais humana nas relações entre indivíduos e nações. Em toda utopia a Cidade é o elemento fundamental, com a sua organização e o seu devir terreno; é uma construção humana fundada sobre a fé na salvação do homem não por meio de uma graça transcendental, mas por ele mesmo. Neste sentido Morus é bastante moderno: as suas principais preocupações são a dignificação do trabalho, a planificação da produção e uma frutuosa organização do tempo livre. As relações externas – como sempre nos utopistas – são pouco freqüentes; os habitantes dos mundos imaginários se contentam com suas autarquias e este isolamento lhes preserva da corrupção externa. Ascetismo e frugalidade pertencem à norma. Morus é, sobretudo atento a um desenvolvimento harmônico do indivíduo: privados de preocupações materiais, sem dissidências internas e ameaças externas, os utopianos estão livres para aprofundar as suas consciências, abrir as suas almas e as suas mentes: cultivam a música, a dialética, a aritmética e a geometria, mas desprezam a escolástica, a metafísica e a astrologia. Ao mesmo tempo estóicos e epicuristas, limitam-se a viver segundo a natureza.
Sua economia igualitária corresponde um ordenamento político que busca reduzir ou mesmo eliminar as diferenças sociais. Nesta federação democrática de condados autônomos – compromisso entre cidade antiga e Estado moderno – a coesão se apóia sobre consensus omnium: a vontade coletiva é maior que a soma das vontades individuais.
A Utopia de Morus é definitivamente um livro da razão. Mas, mesmo criando um regime em condições de eliminar as chagas da sociedade daquele tempo, não indica, porém, os recursos para passar da teoria à prática, permanecendo assim no plano especulativo. Está de acordo com as aspirações do humanismo que preferia a justiça à ação revolucionária – está longe do Príncipe e do Que Fazer. Contra as utopias redigiram-se pesadas críticas, em que foram apontadas como promotoras de uma atitude cega para as “realidades humanas”, tais como as ambições, o desejo de poder, etc. É fácil conceber uma sociedade ideal quando a dura realidade, que sempre oferece obstáculos, não é levada em consideração. Uma sociedade utópica funcionaria perfeitamente apenas porque funcionaria no vazio. Também já foi dito que o espírito revolucionário utópico acabaria por se dissolver por si mesmo, já que numa sociedade perfeita não cabem revoluções nem, portanto, mudanças e progresso.
É evidente que no paraíso de Utopia respiram inquietantes sintomas de opressão. O indivíduo é sempre exposto ao olhar coletivo, e “o estar sob os olhos de todos gera a necessidade de dedicar-se ao trabalho usual ou a lazeres não desonestos”: é o mito da transparência, o palácio de cristal atento ao desvio individual. Morus é atormentado por um dilema comum a todos os utopistas: para salvaguardar a instituição ideal, criada para o indivíduo, ele corre o risco ao contrário de oprimi-lo, e como todos os utopistas, resolve o problema pressupondo que cada qual reconheça a coincidência entre necessidade e liberdade: a opressão não está nas intenções, mas nos fatos. O que é, então, esta utopia? O sonho de um filósofo platônico? Ou uma sociedade evangélica sobre o modelo das primeiras comunidades cristãs? É uma sátira da política inglesa do período ou talvez um anseio de conjunção entre o comunismo aristocrático de Platão e o comunismo moderno? Ernst Bloch considerou Morus como um “um ponto de referência na via do socialismo científico”. Todavia, como já observara Karl Kautsky, Morus não ousou colocar um fim na exploração dos pobres, e apenas previu a possibilidade de instaurar o comunismo pelo alto, por meio de um príncipe. A Utopia, resultado da tensão entre feudalismo e capitalismo, é na realidade a obra de um humanista cristão (depois um santo da Igreja) que vê no orgulho um verdadeiro câncer social, e no seu reino imaginário não existe traço daquele egoísmo que é o primeiro sintoma da economia monetária; os alimentos consumidos em comum, o uniforme, a mesma educação, a abolição da propriedade privada, o trabalho obrigatório e uma vida austera derivam deste abscesso confessional. A perspectiva de Morus não é econômica, mas ética: é a de um homem da ordem que quer a felicidade do povo, mas não através do povo, do qual teme a violência.
O notável Luigi Firpo considera que, para definir as características do utopismo do Renascimento, seria necessário ao mesmo tempo definir o clima espiritual do início do Cinquecento. Predominaria o que ele chama de Racionalismo Humanístico, no qual existe um anseio de alegria e autonomia humana, o orgulho da supremacia e quase onipotência da inteligência, que se traduziria em otimismo operoso e no sentido destemido e heróico da vida. Afinal, acostumado há séculos a comedir o próprio agir segundo uma férrea norma positiva transcendente, o humanista reconhece estupefato no mundo uma razão suficiente, intrínseca, válida, que lhe assegura toda harmônica operação: a natureza. E no seu próprio íntimo esta natureza se faz consciente, e toma o nome de Razão. A Razão, por sua vez, torna-se guia e medida do agir. “Virtù” para Morus é “viver secondo natura”. Em decorrência, segue a guia da natureza aquele que obedece à Razão, que é a natureza consciente de si mesma, no seu íntimo.
Do impulso confiante de traçar por si a própria estrada no mundo, de forjar o mundo mesmo como criação da mente, nasce a crítica à tradição, a negação da estrutura histórica da vida associada. Este processo intelectual, que tanto deve a Bernardino Telésio, desloca o lugar da natureza de cenário para cena. A questão é: a natureza possuiria qual finalidade? A do auto-reconhecimento no e pelo Homem. Os sentidos (vasos comunicantes do Homem com a Natureza) tornam-se critério de conhecimento. A ciência moderna, galileana, depende deste novo princípio: forjar o mundo a partir da mente, que é portadora da Razão que está na Natureza. Conectar-se racionalmente à natureza significa, por decorrência lógica, romper com a tradicional forma da vida associada. Em todos os campos a razão nutridora de experiência se põe confiante a ditar normas para todos os aspectos do agir prático: daí ser o Cinquecento a idade dos manuais. O retorno à natureza, para dela extrair normas incorruptas de vida coletiva, envolvia imediatamente, no terreno político, o conceito de igualdade, que por sua vez conduzia ao conceito de legalidade; o despotismo desabusado da idade dos tiranos, a brutal concepção do Estado Absolutista, patrimonial, capaz de todas as arbitrariedades, claramente contrastava com a visão idílica da concórdia fraternal dos Homens. Em outras palavras, o Racionalismo de base naturalística opunha-se ao instituto da Monarquia Absoluta, que guardava ligações substanciais com a tradição na vida associativa. Esta aversão ao Estado-força renascentista buscaria restaurar os princípios jurídicos subtraídos pelo arbítrio dos déspotas, e impunha o reconhecimento dos direitos congênitos da pessoa, que amadurecerá na teoria do direito natural – mas aí já estaremos no século XVIII.
O mesmo Luigi Firpo coloca o Concílio de Trento como o núcleo dinâmico que redimensionou os problemas contemporâneos: a partir dele os antigos problemas se esvaziaram, e em decorrência novos problemas tornaram-se hegemônicos, como por exemplo o moralismo, na forma da confrontação sistemática e escrupulosa entre os valores humanistas do Renascimento e os perenes valores ético-religiosos da tradição. Na posição utópica, que consistia na proposta confiante e convicta de modelos de sociedades perfeitas, auto-suficientes e felizes, existiam elementos radicalmente incompatíveis com o clima espiritual trentino. Predominava nas utopias um fundo de epicurismo latente, um otimismo na busca de felicidade na Terra contrária à concepção cristã da cidade celeste, beatífica e perene; havia a implícita exaltação humanística da Razão e da autonomia do homem e um imanentismo recôndito no íntimo daquela sociedade imaginária tão radicalmente autárquica, que subsiste sem nenhum pressuposto de transcendência. Além disso, a religião no interior das utopias possui um caráter postiço e vago, predomina um deísmo genérico, sem dogma, acolhido apenas em vista do valor social e moral das religiões e inclinado, portanto, a reconhecer nas diferentes crenças uma equivalência substancial.
A esta tendência a Contra Reforma veio contrapor toda a complexa estrutura dogmática e teológica do catolicismo positivo, e congelou bruscamente a entusiástica fé nos ditames da razão humana. Segundo Firpo, no Seicento a utopia se tornará, “fraca, privada de todo conteúdo social”, porque a nova época não é mais da razão, mas ligada à remota tradição dogmático-escolástica, e dela quer extrair os princípios normativos da vida associada. A Contra Reforma infligiu um duríssimogolpe à liberdade de imaginação dos utopistas. Temerosa e prudente, a utopia retorna à ordem e ao seio da Igreja. O ideal da “virtù” se enfraquece, enquanto a utopia empobrecida se limita a um cauto reformismo controlado pela autoridade. É este o crepúsculo da utopia italiana do Renascimento, submetida à dramática reductio ad unum da Contra Reforma.
Tal ofuscamento do pensamento utópico não ocorre apenas na Itália. Na segunda metade do século a obsessão da religião e do rigorismo ético influi pesadamente sobre o sonho da cidade ideal, que assume uma rigidez e uma austeridade nas quais o humanismo não pode mais ser reconhecido. Um grande exemplo disso está na Cidade do Sol, de Campanella: raramente uma utopia se mostrou tão opressiva e destruidora das mais elementares liberdades individuais. Na sua Civitas Solis apenas o Estado conta: cada coisa é “observada religiosamente para o bem público, não privado”. Arregimentado do nascimento até a morte, duramente privado de qualquer vontade anárquica, o que deve prestar contas ao Estado inclusive das suas menores ações e dos seus pensamentos, não conhece amor e família, e se anula na coletividade, na qual encontra reconfortante anonimato e é, em aparência, muito feliz. Com realismo e misticismo, com paixão e lógica rigorosa, Campanella constrói uma cidade que deságua, em nome da felicidade e da virtude, num mundo de campos de concentração, cujos habitantes são ao mesmo tempo carniceiros e vítimas.
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Circunscrita a esta dupla temática, Renascimento e Utopia, a Revista Morus sai com a finalidade de estudar todos estes problemas. Sob a regência da História e da crítica, publicará estudos e investigações sobre a rica problemática das sociedades imaginárias e imaginadas, diversas do existente. Concebe o real não apenas como aquilo que existe empiricamente, mas também como aquilo que pode – e deve ser. Dignifica a virtualidade humana, e suspeita do pragmatismo. Em algum lugar, além do horizonte, o céu é (ou pode ser) azul.
Carlos Eduardo Ornelas Berriel | Editor
Sumário
Progetti utopici ed architettonici:
La città ideale nell’Italia del Rinascimento
Vita Fortunati
L’utopie au XVI e siècle comme idéal de rénovation
et comme gel de la métamorphose
Claude-Gilbert Dubois
La Cité, l’architecture et les arts en Utopie
Raymond Trousson
De uma definição a outra: sobre alguns prefaciadores
franceses de Utopia de Thomas Morus
Nadia Minerva
Tradução de Ana Cláudia Romano Ribeiro e Helvio Gomes Moraes Junior
A cidade perfeita e a ficção do conselho:
O Livro I da Utopia de Morus
Ricardo Hiroyuki Shibata
Percursos de aproximação de A Tempestade,
de William Shakespeare, à literatura utópica
Fátima Vieira
La Basiliade nello sviluppo dell’opera di Morelly
Claudio De Boni
A Cidade Feliz: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi
Helvio Gomes Moraes Junior
Uma utopia plebéia do Cinquecento: Mondo Savio e Pazzo
Carlos Eduardo Ornelas Berriel
A Ilha dos Hermafroditas em seu ambiente histórico
Ana Cláudia Romano Ribeiro
Formação e caráter da utopia italiana no Renascimento
Carlo Curcio
Tradução de Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Capa
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