NOTÍCIA SOBRE EURICO ALVES

Já agora, com a publicação deste livro, é possível o conhecimento do trabalho poético do brasileiro Eurico Alves, em sua provável totalidade, trabalho esse exercitado com probidade, em cultivado silêncio, desde a adolescência, até quando a saúde o permitiu, em seus últimos dias de vida. É assim, é esse o comportamento dos que confiam em si, isto é, dos autênticos. Quando, pelos seus próprios passos, ele surgiu entre nós, vindo da então romântica Feira de Santana, terra sempre presente ao seu espírito e ao seu sangue, para o curso superior de Direito, foi logo notado pela agitação dos gestos, pelo comportamento inquieto, pela excitação do diálogo, pela estridência da voz mas, sobretudo, pela efervescência das idéias, às vezes delirantes, denunciando o prenúncio de certa resistência, mais intuitiva do que racional, contra a atmosfera literária que se estendia por todo o país. Estávamos vivendo as primeiras luzes da década de trinta e era evidente a inconformação generalizada que preocupava o espírito da juventude, em sua insatisfação mental e em sua curiosidade cultural, nos planos da política, cujos líderes eram homens respeitáveis, da ciência, das artes, plásticas e da literatura. Entre nós, aqui na Bahia, as nuvens eram espessas. As nossas letras literárias encontravam-se esgotadas. Já tinham produzido, a seu tempo, o que podiam nos legar de duradouro, e não foi pouco, como contribuição à validade da literatura brasileira. Em verdade o que ocorria era a convicção, contagiada entre os que, àquela hora, despertavam para os segredos do mundo, atraídos pelo fascínio da palavra, da necessidade de rever e reformular, em seus critérios e postulados convencionais, a expressão formal e o conteúdo estético da criação literária, conduzindo-a a melhores destinos humanísticos. O tempo o exigia. A inteligência especulativa e a sensibilidade instintiva eram outras. A busca de novos valores se impunha, com o conhecimento dos seus fundamentos, da sua estrutura e, por aí, da sua substância. Substância que, apesar de pressentida e perseguida, permanecia distante, revelando-se aos poucos, excitante sempre, com a força de atração do mistério.

Se "cada obra pertence ao seu tempo", na sentença de Machado de Assis (Helena. Advertência inicial.), cada tempo literário exige de nós uma sensibilidade contemporânea, correspondente, simétrica, capaz de penetrar, de auscultar, de sentir e de, se com ânimo para tanto compreender e revelar o sentido das auroras e dos crepúsculos nele contidos. Foi numa hora assim, de convencimento comum, que o "novos" daquela época receberam Eurico Alves, aqui nesta hoje vilipendiada Cidade do Salvador. E logo nos confraternizamos na alegria de despertados pela literatura, de chamados pela literatura (os escolhi dos aguardarão no limbo ... ), alegria existencial, humanamente confortadora porque é a que nos proporciona os elementos da inteligência

Por que, em vida, Eurico Alves não publicou os seus poemas em livro, só o fazendo dispersamente em jornais ou em revistas especializadas? Admita-se que assim procedeu na convicção de que a hoje identificado importância da sua atividade literária resultaria do conhecimento do seu todo. Estava certo, vê-se agora com a divulgação póstuma da sua obra poética. É a unidade formal e de conteúdo das suas página o seu elemento característico, o que dificulta e mesmo torna inconveniente a invocação isolada de versos ou de estrofes. Elas, essas páginas, a rigor dispensariam os títulos que as distinguem e lhes foram emprestados, bastando-lhes apenas, como destaque, uma numeração crescente por ordem cronológica. O amor à infância jamais perdida e à paisagem irredutível fixada ou refletida toda a vida na sensibilidade do poeta o definem em seu panteísmo sensualista. E as expectativas e os êxtases indagadores em face da vida o denunciam em seu claro panteísmo espiritualista. Aí está o centro da sua poesia, Que motivo gerador uma possível ideologia poética pessoal, sabido como é que os fatos e as sensações se repercutem e se expressam diversamente na alma do artista e na do homem comum. Veja-se ainda, nos textos ora revelados, inéditos na sua quase totalidade, ditados uns pela inteligência e outros surpreendidos pela sensibilidade, a perfeita identidade nele existente entre forma e substância. É que o poema autêntico traz, congênita, desde o seu impulso subjetivo, a sua própria expressão mal. Foi que Eurico Alves encontrou, na poesia, o processo ideal de transmissão, ao seu meio, da sua insatisfação espiritual. Nessa poesia porque criada em estado permanente de consciência, surpreende por igual a justa adequação da linguagem metafórica à linguagem poética usual, esta como preparação cinematografia daquela. Também quando cantou a sua terra, de longe, animado por força interior sempre fluente, iluminou a imagem da nossa terra adormecida em nós. Sem esquecer que o poeta não foi insensível aos movimentos de idéias correntes em seus dias, deve-se dizer que o que nos legou reflete convicções culturais, com marcas positivas em sua sensibilidade. Admitindo-se a semelhança, ou a analogia, entro o comportamento do espírito que cria e o futuro da obra criada, vamos aceitar que a dele, construída em silenciosa vigília, será certamente em ocasião oportuna, reconhecida em sua irrecusável validade.

Em literatura há os que escrevem rumorosamente, sob a pressão do instante vivido, para imediata divulgação e com propósitos de êxito apenas mundano. Nesses a palavra vale em sua superfície de reflexos efêmeros, como aventura útil de pronto retorno. E há os que escrevem sem pressa, em calada labuta interior, com intenções futuras e determinados propósitos, na preocupação de serem exatos quanto à expressão formal e substancial daquilo que meditadamente pensam, sentem e procuram transmitir a possíveis semelhantes futuros, sonhando a sobrevivência da sua mensagem. A utilização da palavra, para esses, como instrumento único de composição literária, em todos os seus níveis, é ato de dignidade pessoal, um' a vez que, por intermédio dela, assumem, moral e intelectualmente, e em conceito amplo, atividade confessional perante o seu tempo. Se a confissão é válida, ela resistirá e sobreviverá. Se inautêntica, se exaurirá em si mesma. Eurico Alves foi da categoria dos calados, dos aparentemente tranqüilos, dos que confiam na seriedade do seu trabalho, dos que aguardam a sua hora com esperança. E essa hora se aproxima. Com a publicação dos seus poemas, demoradamente resguardados com carinho e pudor, temos a revelação de um poeta vinculado, por seus melhores achados, à sua geração e à sensibilidade da sua época, podendo dessa forma dar plena expansão ao próprio temperamento artístico, em suas inevitáveis oscilações. Com essas perspectivas é que deverá ser julgado, isto é, por suas evidentes qualidades, e não pelos seus inevitáveis descuidos, que todos cometemos. A intenção desta simples notícia é apenas a de despertar a consideração dos futuros críticos de Eurico Alves como criador de perfeita fidelidade a ' si mesmo, ao criar poesia porque era poeta, não sendo poeta porque escreveu versos. A realidade é que também se aproximou, nos momentos melhores das suas possibilidades, valendo-se para tanto do seu amplo panteísmo, do sentido oculto das coisas, daquela fonte hoje muito esquiva onde se resguarda, e sempre se resguardará, o mistério da poesia. Para isso apoiou-se em postulados de natureza estética, adotados ao longo de igualmente paciente busca, daquilo que coincidiam com os valores literários como tal por ele intuitivamente assimilados. E afora o artificialismo, às vezes comprometedor, das excentricidades e dos prejuízos formais do modernismo incipiente, do qual não se esquivou de todo, temos em Eurico Alves um poeta consciente da arte de que dispunha para dar, como deu, e a seu modo, o melhor de si mesmo. De lugar assegurado na literatura baiana, na brasileira portanto, também pelo seu excelente "Fidalgos e Vaqueiros", longo ensaio de sociologia regional, escrito paralelamente às suas atividades de magistrado em peregrinação pelo interior do Estado, igualmente em fase de publicação, e ensaio que um escritor da responsabilidade de Wilson Lins considera "uma réplica ao fabuloso e sempre atual Casa Grande e Senzala, de mestre Gilberto Freyre" - o que parece cumpre aos estudiosos da obra de Eurico Alves é senti-Ia em seu tempo e em seus largos propósitos, analisando-a, compreendendo-a em profundidade, para que possam comunicá-la ao nosso futuro cultural na plenitude do seu respeitável e incontestável valor.

Carvalho Filho