OSWALD DE ANDRADE    

OSWALD DE ANDRADE FILHO

Oswald emaranhado em dívidas: letras de câmbio, promissórias, desordem total nos negócios - sempre a esperança ingênua de vender um terreno e aplicar o dinheiro, O busto de Daysi esculpido por Brecheret na Caixa Econômica Federal, garantindo o empréstimo que Samuel Ribeiro concordou em fazer excepcionalmente em consideração ao escritor. Getúlio Vargas dá novas diretrizes ao seu governo - luta aberta contra a agiotagem. Visito inutilmente um, dos muitos escritórios, com Oswald, onde se tira dinheiro a juros escorchantes. Rua Álvares Penteado: centro de bancos, cartórios de protestos e agiotas. Largo do Café, de onde sai o "beco do escarro" de Marco Zero. Oswald anda afobado nesse laboratório de miséria. Aproveita todos os segundos para colher material. Enquanto consegue mais prazo para um "papagaio" vencido, vai tomando nota de tudo. Não são poucos os banqueiros que fazem parte de seus personagens. Pára no meio da rua para dar uma conversazinha com um padre louco que anda pela zona dos bancos e com quem mantém os diálogos mais diversos que sempre terminam com uma facadinha de dois mil réis que o padre dá com um sorriso de anjo. Ouve, enquanto fala com alguém que encontrou, a conversa de um agiota de beco, desses que ficam encostados à parede do fundo do Banco Comércio e Indústria e que aceitam jóias ou cautela da Caixa Econômica como penhor. Vai visitar um grande banqueiro com quem troca idéias sobre finanças e a situação do país. Tudo isso além do encontro com toda essa gente na hora do horrendo cafezinho tomado nos bares daquela zona. Cenário estranho... Pastéis, esfihas, kibe, empadinhas guardadas dentro de uma caixa de vidro onde uma resistência impede que os gordurosos pastéis esfriem, Além disso, o amontoado de gente correndo atrás de dinheiro. Loucura furiosa de uma humanidade desesperada e cheia de angústia. Entre eles estamos nós: Oswald e eu. Percorremos milhares desses escritórios. Um dos que eu me lembro trabalha também com câmbio. Tem uma fumaça de cultura, o que permite que empreste a Oswald uma soma qualquer tendo em garantia um Picasso, um Chirico, um Léger da grande época e um Tarsila. Tudo isso, menos o Chirico que consegui salvar, foi por falta de pagamento. Chamava-se Luigi Lorenzo Reldi. Seu sonho era escrever e viu em Oswald um ótimo orientador. Um dia encontrei-o na casa de Oswald esperando-o. - Você, esperando Oswald? - pergunto.

- É verdade. Estou esperando seu pai.

- Mas que honra...

- É assim mesmo. Quando ele precisa de mim, fica no escritório esperando necessário. Quando eu preciso dele, espero também. Cada um de nós com uma mercadoria...

Ele também faz parte de Abelardo I. É um dos maiores modelos desse personagem.

Outro escritório que freqüentamos foi de um agiota curioso. Uma sala, um corredor, um balcão. Onde Oswald indica no cenário o retrato de Gioconda horrenda reprodução não me lembro de que pintor em que se via uma mulher segurando uma criança. Sob o quadro lia-se "Ser mãe é sofrer no paraíso". Acredito que essa reprodução tivesse sido tomada de algum infeliz que teria ido pedir dinheiro emprestado e não pagou. Não me lembro do castiçal de latão que Oswald indica no cenário. Ele deve ter colocado essa peça para acentuar o aspecto irônico das cenas passadas ali. As caixas amontoadas, vi-as cheias de fitas de chapéus no escritório de outro usurário. Esse, quando fazia os cálculos para a cobrança de taxas de juros, acrescentava sempre trinta mil réis. Ao indagar o que representava essa soma, o cliente recebia a seguinte resposta - É para um eventual protesto...

Esse cobrou-nos uma ocasião cem por cento de juros por uma semana de prazo. O divã futurista estava presente em quase todos esses antros. Telefone e outros elementos que Oswald aproveitou existem de fato em diversos escritórios. Quanto ao sinal de alarme, talvez exista algum pois esse tipo de gente é muito medrosa. Luigi Lorenzo, se não usava esse aparelho, em compensação tinha sempre na gaveta um cassetete pronto para qualquer eventualidade. A porta de ferro nasceu no escritório onde havia a tal reprodução na parede. Encostado ao balcão, esperando ser atendido, vejo ainda Oswald que dizia: Está esperando a hora de soltar as feras esfomeadas para domá-las. O prontuário é colocado para acentuar o conceito que esse tipo de gente tem da humanidade "MALANDROS - IMPONTUAIS - PRONTOS - PROTESTADOS -PENHORAS - LIQUIDAÇÕES - SUICÍDIOS - TANGAS". Tempo difícil esse tempo. Tempo em que na transição de uma época feudal para tempos modernos Oswald sentiu na carne. Nunca mais conseguiu livrar-se dos "reis da vela". Ainda no Hospital das Clínicas, quando foi operado, ao ser levado para a sala, segui-o até a porta. Olhava angustiado: - Não se esqueça dos vencimentos, Nonê... os vencimentos... os vencimentos... Já com a porta fechada ouvi ainda essa recomendação.

 

  OSWALD DE ANDRADE  REMATES DE MALES Nº 6

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