Com um cuidadoso projeto gráfico de Frederico Nasser finalmente veio a público o tão esperado livro: O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo... A edição facsimilar da editora Ex-Libris, do manuscrito redigido em caderno pautado, formato aproximado de 33x24cm, para o público de hoje é uma boa amostragem da vida cultural e social do Brasil "art nouveau", agitado por récitas, concertos no Municipal, piqueniques em Santo Amaro, almoços no Jabaquara, encontros no Hotel Rotisserie Sportsman (lugar que Oswald de Andrade escolhe para morar depois da morte do pai, quando "estar findo o lar de D. Inês") e passeios ao Braz; e um retrato dos costumes e do comportamento de um grupo de intelectuais, da São Paulo do início do século, montado em cinco meses, de 30 de maio a 12 de setembro de 1918.
No estúdio que Oswald de Andrade mantinha no atual centro da cidade (rua Líbero Badaró, 67, sobrado) um grupo de jovens entre 21 e 28 anos imaginou esse curioso livro coletivo, em forma de diário, onde uma normalista de 18 anos incompletos, única mulher do grupo se transforma na estrela principal. Aliás, na razão de ser do álbum: "A Cíclone, ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa de feminino, para sua alegria e seu encanto". Oswald de Andrade 28, Inácio da Costa Ferreira 26, Edmundo Amaral 21, Pedro Rodrigues de Almeida 28, Vicente Rao 26, Leo Vaz 28, Guilherme de Almeida 28, Sarti Prado 26, Monteiro Lobato, o mais velho, 36 anos e Maria de Lurdes Dolzani de Castro (a Miss Cíclone), construiram um texto engraçado, irreverente e moderno quanto à concepção e estrutura. Realização interrompida talvez em virtude do vazio deixado pela mudança de alguns para o interior, particularmente da musa inspiradora e pela ameaça de reajuste do aluguel do estúdio, como anunciava Oswald num dos seus recados no Diário: "precisamos acabar este livro. Precisamos. Por quê? porque precisamos. O Fiori subiu o aluguel do quarto. Agora é 260$000 - um terno no Carnicelli. vamos nos mudar, sim? Vamos..." Além disso, a Miss Cíclone, à distância, exigia a dissolução do "refúgio amoroso" decorado com 2 retrato da Anna Pavlowa, reproduções célebres e loucuras do Di", e animado pela grafonola chiando Bocherini, Wagner, Debussy, Schubert, Schumann, Beethoven, Chopin, etc. de qualquer forma, quando ali estiveram reunidos, Oswald e seus amigos aproveitaram para documentar essa convivência e deixarem gravadas as aventuras de um animado grupo classe média, quase que unanimemente composto por bacharéis em direito, frenquentadores da missa dominical em São Bento e cujo maior prazer era a visita sempre inesperada da fascinante Miss Cíclone
O esquema da montagem desse manuscrito colorido por tons exóticos de tintas (lilás, verde), grafite, lápis vermelho e azul, entremeado de colagens, carimbos, desenhos, cartas, recortes, foi bastante informal. Esse livro objeto antecipou a multifacetária estrutura do romance invenção de Oswald de Andrade. Funcionou como diário daquele retiro "colorido e musical", fez as vezes de mural de aviso e de livro visita e seus criadores chamavam-no simplesmente de álbum. Além do eclético pano de fundo musical, na tecitura do livro perpassam fragmentariamente impressões variadas sobre assuntos e fatos palpitantes do momento: a literatura oficial, a guerra, os figurões da época, a cu linária, o jubileu cívico de Rui. a partir dessas vozes desarticuladas (pois o elo de ligação são as brincadeiras e a animada disputa pela Cíclone) pode-se traçar a história cultural de S.Paulo no ano de 1918. O grande conflito mundial inquieta o grupo que reage à sua maneira: com muit humor. Os italianos são os "tocadores de sanfona" que precisam reabilitar a sua vergonha militar". Colagens de jornais com notícias tragi-cômicas: "PATRIOTISMO AS AVESSAS: um italiano que tinha de seguir para o front anavalhou o pescoço". Recortes de manchete de jornal: "Tropas brasileiras para Europa". Não se sente a dimensão trágcia e problemática da guerra. Por sinal, a gurra incomoda mais quando Paris é ameaçada e quando o estoque de vinho no restaurante do Inácio acaba.
O oponente literário da turma do Perfeito Cozinheiro parecia ser o grupo da contemporânea revista Panóplia (mensário de arte, ciencia e literatura, cuidadosamente ilustrado) que tinha entre seus colaboradores: Wenceslau de queiroz, Da costa e Silva, Renê Thiolier, Spencer Vampré, citados entre as brincadeiras da revista. O lendário Anatole France tão cultuado entre os escritores brasileiros nesse álbum sua leitura por Leo Vaz é sinônimo de apego ao século XIX.
Além do termo de abertura vazada no estilo meloso e decadente próprio do João de Barros, que explica a função e utilidade do álbum: "livro mais útil e mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados" O livro juntamente com a morgada e os vinhos importados serviram de companhioa na solidão funcionando como "um tablado, c om lonas, gangas claras e bandeirolas, para nós clowns desarticulados, rirmos da vida, da Cíclone..."
Embora muitos usassem vários pseudônimos ou apelidos, a maioria deles foi passivel de identificação. Para aumentar a carga de mistério e se divertir, a Cíclone imitava a caligrafia de alguns amigos; nas p.l5 e l6, por exemplo, Oswald posteriormente identificou as falas da sua musa escrevendo a lápis MC (Miss Cíclone).
As intervenções do poeta modernista participante da Semana de 22, Guilherme de Almeida foram poucas. Com sua inconfundível caligrafia rebuscada marcou presença nas páginas 51,81,193, geralmente em forma de poema: a página 51, estrofes da segunda parte do poema "Ars Amandi" do capítulo "Dança das horas", que integraram o livro Messidor; outra presença do Guy (como assinava Guilherme de Almeida) na página 81 traz o poema "Os últimos românticos", incluído com algumas variantes no capítulo deste mesmo título também do livro Messidor, lançado em 1919. Há algumas pistas de desentrosamento do poeta de Natalika no ambiente informal, descontraiddo e sobretudo muito alegre do estúdio. Ventania após uma das intervenções do Guilherme, reclama: "outro gemido, outro queixume...Guy...deixa uma piada, uma piada rica para a gente rebolar entre as almofadas do Miramar. quando voltares, antres de nos ver, entregue o teu luto ao menino ascensor"
Monteiro Lobato não fugiu à regra, vestiu-se de várias personagens: Frei Lupus p. 22; Ancylostomo p. 35, Conselheiro Acácio p. 44; Irmão Ancylostomo p. 47; Lob, Rowita, Constante Leitor p. 164; Clone e Tutu Lambary Cuzcuz p. 174 e 175; por fim Zé Catarro na p. de encerra- mento: "Para encerrar este álbum convidado, neste horrível dia de constipação ponho aqui o único pingo de que disponho...o pingo do nariz! Certamente as curtas e misteriosas aparições do Lobato se justificamm pela sua posição social - autor consagrado de Urupês, dono de editora, editor da Revista do Brasil, etc. A propósito da dificuldade de se esclarecer as entradas de Lobato no Diário, é interessante lembrar a observação de Edgard Cavalheiro, seu biógrafo, sobre a resistência do escritor em aparecer em público, a não ser sob o disfarce do pseudônimo. Imaginem o desconforto de Lobato, hoje, presenciando a edição deste álbum com sua participação identificada!
Viviano, Foguinho, ou ainda Viruta foi com certeza Edmundo Amaral, conforme depoimento do próprio cronista (A Tribuna 27 mar. l955). A confusão persiste em relação a Vicente Rao, advogado, amigo de Oswald e Ministro da Justiça no Estado Novo. Rao não se expõe, mas frequentemente era citado por Oswald como integrante da turma da "garçonniere." O artista plástico Ferrignac desfilava com o nome de Ventania Chico Ventania e Jeroly, por sinal, depois de Oswald foi o mais atuante e criativo frequentador do estúdio; o futuro delegado de polícia de Tatui, Pedro Rodrigues de Almeida abriu o manuscrito com o nome de João de Barros, prometendo o "livro mais útil, mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados", as suas observações juntamente com às da Miss imprimiam as notações ingênuas e fim de século do álbum. Finalmente, Leo Vaz, o Bengala e Sarti Prado que se disfarçou de Miles nas p. 158, 16O e 161.