A CRÔNICA
                     

O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil.

 

A Crônica Mundana

UMA LEITURA DO PERFEITO COZINHEIRO

Artigo apresentado originalmente no seminário sobre a crônica
realizado no auditório da Fundação Casa Rui Barbosa em 10/88,
e publicado no livro A CRÔNICA (Ed. UNICAMP e FCRB)

O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (edição fac-similar, em cuidadoso projeto gráfico de Frederico Nasser para a Editora Ex-Libris e financiado pelo Instituto Walter Moreira Sales). é uma reportagem viva e movimentada da vida intelectual e social do Brasil art nouveau; e uma crônica alegre do dia-a-dia de um grupo de intelectuais da São Paulo do início do século, montado em cinco meses, de 30 de maio a 12 de setembro de 1918, grupo esse que mais tarde construiu a literatura moderna do Brasil e atuou na vida política nacional. No estúdio que Oswald de Andrade mantinha no atual centro da cidade (Rua Líbero Badaró, 67, sobrado), um grupo de jovens entre 21 e 28 anos imaginou esse curioso livro coletivo, em forma de diário, em que uma normalista de 18 anos incompletos, única mulher do grupo, se transformou na estrela principal. Aliás, na razão de ser do álbum, "a Cíclone, ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa de feminino, para sua alegria e seu encanto". Oswald de Andrade, 28; Inácio da Costa Ferreira, 26; Edmundo Amaral, 21; Pedro Rodrigues de Alrneida, 28; Vicente Rao, 26; Léo Vaz, 28; Guilherme de Almeida, 28; Sarti Prado, 26; Menotti del Picchia, 25; Monteiro Lobato, o mais velho, 36 anos e Maria de Lourdes Pontes (a Miss Cíclone) construíram despretensiosamente um texto engraçado, irreverente e moderno quanto à concepção e estrutura. Realização interrompida talvez em virtude do vazio deixado pela mudança do "cozinheiro" Pedro Rodrigues de Almeida (o João de Barros) para o interior, bem como da musa inspiradora e pela ameaça de reajuste do aluguel do estúdio, como anunciava Oswald num dos seus recados no Diário: "0 Fiori subiu o aluguel do quarto. Agora é 260 000 - um terno do Carnicelli. Vamos nos mudar" Além disso, a Miss Cíclone, à distância, exigia a dissolução do "refúgio amoroso" decorado com "retrato da Anna Pavlova, reproduções célebres, loucuras do Di", quadros da Anita Malfatti e animado pela grafonola chiando ecleticamente obras clássicas e tangos. Quando estiveram reunidos nesse estúdio, Oswald e seus amigos aproveitaram para documentar essa convivência, deixando gravadas as aventuras de um animado grupo classe média, quase que unanimemente composto por bacharéis em Direito, freqüentadores da missa dominical em São Bento, cujo maior prazer era a visita sempre inesperada da fascinante Miss Cíclone. A agitação da garçonnière quebrava o ritmo morno da vidinha provinciana. Mais de uma vez eles se queixaram desse marasmo. Monteiro Lobato foi um deles:

É preciso salvar Ferrignac - para que Ferrignac salve São Paulo do Tédio. Só Pelágios. O boletim da Guerra às quinta... O viaduto! Taunay do Museu! A Revista do Brasil O Zeca ! o Quinzinho Queirós! O Zezinho do Dicto! A colaboração das leitoras! Os Urupês! a "Luizinha", o Bentinho de cá amargo e municipal, a Cíclone feita mico de baralho - longe, escondida o "Pequenino Morto" , sempre, sempre... Ferrignac acorda, salva-nos.

O cotidiano desses intelectuais era preenchido também por leituras (os franceses, Eça, Wilde, D'Annunzio, Scribe, Augusto de Castro, lbsen, Dostoievski, etc.), récitas, concertos no Municipal, almoços no Paço de S. José, passeios ao Brás e ao Triângulo, encontros no Hotel Rotisserie Sportsman (o hotel mais luxuoso de São Paulo, o único com elevador), chá "melancólico" no Mappin, crepúsculo no Jardim América e escrever em francês.

O esquema da montagem desse manuscrito ou álbum (como queiram seus criadores) colorido por tons exóticos de tíntas - da famosa marca Gunther Wagner - lilás, verde, vermelho, grafite, lápis vermelho e azul foi bastante informal. Recortes, carimbos, desenhos, cartas, caricaturas, grampos, manchas de batom, músicas, versos soltos, etc. de parceria com as falas de Ferrignac e Oswald deram o tom alegre e insólito ao texto. O emprego da colagem sem intenção programática, apenas para divertir, resultou numa construção muito moderna, lembrando, em muitas passagens, as ousadas produções dadaístas da década de 20. Livro objeto funcionou como diário daquele retiro "colorido e musical", fez as vezes de mural de aviso, de livro-visita e antecipou a multifacetária estrutura do romance invenção de Oswald de Andrade. Provavelmente nasceu com O perfeito cozinheiro a idéia inovadora da realização do livro enquanto objeto de arte posta em prática por 'Oswald no Pau-Brasil e no Primeiro caderno, onde ilustração e texto se completam.

Além do eclético pano de fundo musical, que dialoga corn o estado de espírito dos personagens e se constitui num dos elementos da armatura do álbum, na sua tessitura perpassam fragmentariamente impressões variadas sobre assuntos e fatos palpitantes do momento: a literatura oficial, os figurões da época, a culinária, o jubileu cívico de Rui, a guerra, a Liga Nacionalista, a temporada teatral, os filmes do momento, etc. Vozes desarticuladas (pois o elo de ligação são as brincadeiras e a animada disputa pela Cíclone) que fazem a crônica cultural de São Paulo no agitado ano de 1918.

O grande conflito mundial inquietava o grupo que reage à sua maneira com muito humor: "a vergonha italiana findo no Caporeto". Os italianos eram os "tocadores de sanfona" que precisavam reabilitar a sua "vergonha militar". A guerra ecoou através de urna colagem de notícia tragicômica, colhida em um jornal qualquer: "PATRIOTISMO AS AVESSAS: um italiano que tinha de seguir para o front anavalhou o pescoço", e de um recorte de uma manchete de jornal anunciando secamente: "Tropas brasileiras para Europa". Não se sente nos comentários a dimensão trágica e problemática da guerra; por sinal, a guerra incomodou mais quando Paris foi ameaçada e o estoque de vinho importado no restaurante do Inácio acabou.

O oponente literário da turma do Perfeito cozinheiro parecia ser o grupo da contemporânea revista Panóplia, 1917-1918 ("mensário de arte, ciência e literatura"), cuidadosamente ilustrado dirigido por Cassiano Ricardo e Pereira Duprat, que tinha entre seus principais colaboradores, numa primeira fase: Wenceslau de Queirós, Da Costa e Silva, Renê Thiolier, Spencer Vampré, nomes citados entre as brincadeiras ("lemos coisas do sr. Thiolier - montão confuso de excremento literário"; um poema de Paulo Setúbal colado numa das páginas do Perfeito cozinheiro teve o nome Setúbal travestido: Masturbal). Em 1918 o elenco de colaboradores da revista foi ampliado: Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rodrigo Otávio Filho, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Paulo Setúbal, Nestor Vítor, Voltolino, etc. Quanto ao lendário Anatole France, tão cultuado entre os escritores brasileiros, nesse álbum sua leitura por Léo Vaz era sinônimo de apego ao século XIX.

A linguagem aforismática do manuscrito contou uma trágica história de amor e escreveu comicamente a crônica cultural do ano de 1918. A atividade de crítico teatral de Oswald de Andrade no Diário Popular e na Gazeta repercutiu nas páginas do Perfeito cozinheiro. Volta e meia comentavam as peças e o elenco das companhias estrangeiras em visita a São Paulo. Particularmente fizeram sucesso as atrizes da Comédie Française Sabine Landrag e Yvonne Mirval, também personagens do álbum. Marcante ainda para o jovem jornalista, foi a entrevista realizada com a dançarina russa Anna Pavlova, que rendeu várias piadas no livro e muita ciumeira da sua musa principal; mas Oswald de Andrade tratou logo de minimizar: "Ela tem marido, cachorro, frio e boceja como qualquer de nós".

O termo de abertura do álbum, vazado em estilo meloso e decadente, próprio do João de Barros, explicou a função e utilidade do álbum - "livro mais útil e mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados" - que, juntamente com a morgada e os vinhos importados, serviu de companhia na solidão; e funcionou catarticamente como "um tablado, com lonas, gangas claras e bandeirolas, para nós clowns desarticulados, rirmos da vida, da Cíclone. . . "

Embora muitos usassem vários pseudônimos ou apelidos, a maioria deles foi passível de identificação. Para aumentar a carga de mistério e se divertir, a Cíclone imitava a caligrafia de alguns amigos; nas páginas 15 e 16, por exemplo, Oswald posteriormente identificou as falas da sua musa escrevendo a lápis MC (Miss Cíclone). As intervenções do poeta modernista Guilherme de Almeida, com sua inconfundível caligrafia rebuscada, marcaram presença geralmente em forma de poema: à página 51, algumas estrofes da segunda parte do poema "Ars Amandi" do capítulo "Dança das horas", que integraram o livro Messidor; outra presença do Guy (como assinava Guilherme de Almeida) na página 81 trouxe o poema "Os últimos românticos", incluído com algumas variantes no capítulo deste mesmo título também do livro Messidor, lançado em 1919. Há algumas pistas de desentrosamento do poeta de Natalika no ambiente informal, descontraído e sobretudo muito alegre do estúdio. Ventania, após uma das intervenções do Guilherme, reclamou:

outro gemido, outro queixume ... Guy ... deixa uma piada, uma piada rica para a gente rebolar entre as almofadas do Miramar, quando voltares, antes de nos ver, entregue o teu luto ao menino ascensor.

Monteiro Lobato não fugiu à regra, vestiu-se de várias personagens: Frei Lupus (p. 22); Ancylostomo (p. 35); Conselheiro Acácio (p. 44); Irmão Ancylostomo (p. 47); Chico das Moças (p. 75); Lob, Rowita, Constante Leitor (p. 164); Clone e Tutu Lambary Cuzcuz (pp. 174 e 175); por fim, Zé Catarro, na página de encerramento. Certamente as curtas e disfarçados aparições de Lobato se justificam pela sua posição social - autor consagrado de Urupês, dono de editora, editor da Revista do Brasil, etc. A propósito da dificuldade de se esclarecerem as entradas de Lobato no Diário, é interessante lembrar a observação de Edgard Cavalheiro, seu biógrafo, sobre a resistência do escritor em aparecer em público, a não ser sob o disfarce do pseudônimo. Imaginem o desconforto de Lobato, hoje, presenciando a edição desse álbum com sua participação identificada!

Viviano, Foguinho, ou ainda Viruta foi com certeza Edmundo Amaral, conforme depoimento do próprio cronista (A Tribuna, 27 mar. 1955). A confusão persiste em relação a Vicente Rao, advogado, amigo de Oswald, Ministro da justiça no Estado Novo e mais tarde Ministro das Relações Exteriores. Rao não se expõe, mas costumeiramente era citado por Oswald como integrante da turma da garçonnière. O artista plástico Ferrignac desfilava com o nome de Ventania, Chico Ventania e jeroly. Por sinal, depois de Oswald foi o mais atuante e criativo membro do estúdio; o futuro delegado de polícia de Tatui, Pedro Rodrigues de Almeida, colaborador da revista modernista Klaxon, abriu o manuscrito com o nome de João de Barros, prometendo: arte e paradoxo, que fraternalmente se misturarão para formar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida". As suas observações e as da Miss imprimiam as notações ingênuas e fim-de-século do álbum. Finalmente, Léo Vaz, o Bengala e Sarti Prado que se disfarçou de Miles nas páginas 158, 160 e 161. Não foi possível identificar a presença de Menotti del Picchia; duas vezes Miss Cíclone se referiu a Paulo (pp. 154 e 171). Na primeira pedia para Oswald mandar por Paulo suas coisas que ficaram no estúdio; da outra, ao escrever bilhetes para todos os "gravatas", enviou um também para Paulo. E Paulo Menotti del Picchia nas suas memórias fala sobre Dasy e Oswald como se tivesse encontrado os dois.

Oswald estava saindo de uma fase de decepção amorosa que o deixou moralmente muito abatido. O rumoroso caso com Carmen Lydia, dançarina alemã de aproximadamente 14 anos foi manchete de jornal. Em alguns momentos, desesperado com a pressão da família e o insucesso amoroso pensou até em suicídio. O relacionamento com Cíclone abria novas perspectivas. Sentia-se outro. Bradava no Diário: "Saúde - Forca - mocidade: emoção - Rubinstein - 2$ 000 no bolso - boa vontade - Literatura." O desabafo mostrou bem o estado de espírito do escritor, aliás, o mesmo de todo o grupo, movido a Chambertin nos momentos de bonança e a caninha nos dias magros, sem perder o humor:

Trago rapadura de cidra e uma alma pré-homérica cheia de pinga com limão. Positivamente amanhece na vida. O cisne desliza agonizante na fonola, está tudo azul, o céu, a vida, a tinta.

Na salada de experiências e de estilo do manuscrito, Oswald dominava, imprimia criatividade e irreverência ao texto, geralmente assinando Garoa, Miramar e M. e poucas vezes Nenê Rodrigues, nome este arranjado por Cíclone com o intuito de despistar a curiosidade dos seus familiares. Para o nome Miramar foram criadas inúmeras e divertidas variações, combinando com o assunto e o momento das intervenções (Miramarne, Mirabismo, Miramartir, Miramargura etc.). Comumente as investidos miramarinas em tom jocoso subvertiam o assunto e o discurso da passagem anterior, tomando a frase do companheiro como se fosse um mote, a fim de brincar de preferência com o estilo e fazer trocadilhos: "Cúmulo da paciência: Catar carrapatos com luvas de boxe . . . " escrevia Viruta; retrucava Oswald: "Da impaciência: jogar boxe com luvas de pelica." Esses trechos e outros assinados por Torquedilho e Troçocadilhista prenunciam a irreverência do estilo brincalhão do Oswald modernista da Revista de Antropofagia (l928-1929) e do Serafim Ponte Grande (l933). A verve miramarina despontava, embora diluída pela ingenuidade das brincadeiras com os companheiros e pela insistência em praticar as teorias estéticas de Wilde e D'Annunzio.

Oswald estava atento às primeiras centelhas indicadores da modernidade no Brasil. já havia acontecido a exposição de Anita. E a propósito é interessante notar que além de ter sido o único dentre os futuros modernistas a defender a pintora publicamente na época, Oswald comprou vários de seus quadros e muitos Di para decorar as paredes do estúdio. Por outro lado, DI Cavalcanti, ajudado pelo escritor, tentava estabelecer-se em São Paulo. Um ano antes, os dois Andrades do modernismo tinham se encontrado e em 1918 começava a ser formado, a partir das repercussões da exposição de Anita, o primeiro grupo modernista. Ainda naquele momento, Oswald detectava imediatamente a importância do Urupês, obra recém-lançada: "É um formidável livro de combate ao atraso nacional e (... ) Monteiro Lobato é a ironia mais moderna que possuímos". São essas as observações de um recorte de jornal, anexado ao diário: Patriotada culinária certamente de autoria de Oswald, criticando o almoço oferecido pelos admiradores do "príncipe da prosa brasileira" organizado pelo jornalista Simões Pinto. Portanto a atmosfera de novidade desse livro está diretamente vinculada a esses acontecimentos.

O perfeito cozinheiro pode ser criticável do ponto de vista da inconsistência ideológica e da pobreza do seu conteúdo. Todavia, sua transformação em livro, 70 anos depois, é importante não apenas pelo trabalho gráfico de primeira categoria. Notabiliza-se por se constituir no gérmen das posições radicais assumidas por Oswald no Modernismo: a sua estrutura caótica, a manipulação de objetos prontos e estranhos à linguagem literária tradicional, aliada ao humor constante são também a engrenagem do Miramar e sobretudo das obras antropofágicas. A experiência desse diário ajudou Oswald a se distanciar da atmosfera simbolista e melancólica das duas peças publicados em francês (Leur âme e Mon coeur balance), em colaboração com Guilherme de Almeida dois anos antes. A atribulada vida sentimental de Oswald teve como roteiros paixões fortes e passageiras de desfechos mercantes para o escritor. Experiências pessoais que, por terem sido importantes, impregnaram sua obra. Paralela à recriação desses tipos, na Trilogia do exílio estão desenhadas a estrutura fragmentária do mundo intelectual criticado também nos dois textos de vanguarda (Míramar e Serafim) de modo mais violento. A sátira aos literatos decadentes nasceu nas trocadilhescas intervenções que zombavam da risada literária do João de Barros, do estilo bas-bleu de Cíclone e particularmente nas estocadas em direção à revista Panóplia ("a Panopliafelina"). A figura da Miss é desenhada muito vagamente. Seus companheiros falam de uma "silhueta de mistério terminando na mecha interrogativa a cair sobre os formosos olhos ingênuos". E contribuem rnais ainda para a indefinição do seu perfil: "Ela é multiforme e variável, na sua interessante unidade de mulher moderna".

Perfil este gravado por Brecheret com maestria no busto (Dasys financeiras durante a década de 30, que Oswald, em dificuldade conseguiu foi obrigado a empenhá-lo na Caixa Econômica e não recuperá-lo (hoje encontra-se no acervo artístico do Palácio do Governo do Estado de São Paulo). A imagem de mulher fatal transparecia nas observações dos "gravatas" sempre reconhecendo algumas marcas premonitórias: ... ,as suas áridas pupilas tenebrosas, em cujo fundo parecia velar perpetuamente urna Quimera aterradora", "Dasy - outono fim de tarde". A certa altura do manuscrito, suas aparições tornaram-se repentinas e escassas e, quando acontecia, passava uma visão de mundo amargurada e pessimista: "uma ansiedade má que me tortura um pouco... Sinto a premeditação que a alma tem para a desgraça. Que será que tu tenho em mim". Sentimentos inusitados numa normalista de dezoito anos e conflitantes com a frivolidade e o vazio das discussões dos literatos. De certo modo as duas atitudes se explicam. Pelo lado da jovem, provavelmente um pouco da sua melancolia e angústia se relacionasse com a situação social familiar: em São Paulo, morando de favor na casa de parentes, dependia da mãe que, por sua vez, experimentava um segundo casamento na pacata Cravinhos. Da parte dos seus cortejadores - literatos, pequenos burgueses - quase todos casados ou comprometidos afetivamente, o estúdio da Líbero Badaró era o espaço onde poderiam estar livremente, divertindo-se longe das amarras familiares; um esconderijo do qual as respectivas famílias não tinham conhecimento.

A "toda poderosa" Miss Tufão, com a sua "mecha fatal", exercia um tremendo fascínio entre seus companheiros. Os visitantes da garçonnière sentiam-se atraídos pela "feminilidade esquisita" dessa jovem de forte personalidade. Sintomáticos eram seus apelidos: além de Miss Tufão, Miss Zéfiro, Miss Terremoto, Miss Furacão, Miss Puticar, Miss Cíclone. Suas reações e atitudes desconcertavam o conservadorismo comportamental desses homens, a começar pela irreverente apresentação a Oswald contada nas suas memórias. Na São Paulo belle époque, esses intelectuais tinham na cabeça modelos literários de heroínas européias: Manon Lescaut, Mimi Pinson; e vislumbravam no olhar desfalecido da normalista "esquelética e dramática" os sonhados modelos ou ainda as modernas vamps encarnadas nas telas da Paramont (Francesca Bertini, Lyda Borelli, June Caprice, etc.). "Nós todos somos como ela, a Cíclone, temos o prodígio inato de viver almas de ficção", observava Oswald. O desenvolvimento urbano do país, o progresso da imprensa e a repercussão do cinema determinaram mudanças nos padrões de comportamento feminino. O cinema basicamente impulsionou a liberação do corpo, com reflexos diretos na moda, diminuindo a quantidade de tecido no novo vestuário; a urbanização permitiu o acesso às novas profissões, causando muita manchete de jornal a vitória de algumas mulheres no mercado de trabalho exclusivamente masculino. Por outro lado, os movimentos feministas faziam eco no Brasil. E a Miss soube muito bem aproveitar-se dessas mudanças.

Para Dasy o contato com o pessoal do sobrado da Líbero Badaró abria a possibilidade de se informar, de conviver com gente diferente da mediocridade dos seus lentes ou dos parentes do Brás; de se abastecer de bons livros. Todavia, com uma postura altaneira desprezava as iniciativas de controle de sua vida pessoal e a sua exagerada discrição aguçava a curiosidade e enchia os seus fãs de ciúmes. Cíclone fazia coro lá fora, procuravam tornar aceitável o comportamento liberal da mulher na sociedade. Apesar de reconhecerem na Cíclone "um desenho moderno do sexo", no fundo permanecia o desejo de controle e de posse. Até na disputa cordial e interna dos "gravatas" havia ciúmes e, consequentemente, a indignação e os protestos verbais são sentidos: "Pelo que vejo o Lobato será obrigado a batizar Miss Cíclone de Dona Joana"; "Dasy - andorinha de dois verões - inquieta edificadora de ninhos", atacava o enciumado Miramar, ao saber da viagem da Miss para ltaporanga com João de Barros. Mas "o grande vício ligeiro , a musa gravolhe" ninguém quer perder. Suas ausências foram lamentadas, seus retornos comemorados floridamente com rosa, ciúmes e observações em tom de reprimenda: "Cíclone voltou! No grande olhar desfalecido traz a vermelhidão tracômica de velhas noites de libertinagem".

O perfeito cozinheiro sobreviveu praticamente um mês, depois da partida "da musa gravoche" para Cravinhos. Os parentes com quem morava ern São Paulo descobriram a sua ausência constante à Escola Normal e deram-lhe um ultimato. A certa altura do diário a Miss desabafou os motivos das suas escapulidas da Escola:

fui à aula! Mas como envelheceram os meus pobres lentes (biconvexas)... cada vez mais chato e mais encardido fazendo uma profusa distribuição de "hinos nacionais" de sua lavra ...

É em Cravinhos que Oswald vai reencontrá-la no dia da pátria, graças a uma providencial conferência arranjada por algum amigo ligado à Liga de Defesa Nacional para ser pronunciada num lugarejo próximo; provavelmente Sarti Amado Prado que foi membro da Liga e participou do Diário. Oswald não pertencia à Liga, cujas manifestações foram motivo de chacota no Perfeito cozinheiro:

Passou por aí a procissãozinha do Lessa, do Steidel e da Sociedade Hípica … O Paulino Piza… o Plínio Barreto. O Lobato diria que isso é que é guerra, o mais é história Os jornais amanhã vão afirmar que havia 20 000 pessoas. É mentira.

A sessão cívica em Tijucópolis foi recriada com boa dose de humor por Oswald neste manuscrito e repetido nas Memórias - Sob as ordens de mamãe. No Perfeito cozinheiro contou a sua aventura patriótica, numa série de lances satíricos, levando o leitor forçosamente a compará-la com trechos das Memórias sentimentais de João Miramar e do Serafim. Não faltaram as cenas deliciosamente hilariantes, dignas de uma "première de Max Linder": o Pe. João solenemente tropeçando na escada, Miramar de rabona, esperando a reação da platéia ao duvidoso témino do discurso; a confusão do nome do escritor com o famoso sanitarista Osvaldo Cruz, etc.

O entediante exílio em Cravinhos da Miss Zéfiro terminou em fevereiro de 1919. Oswald, depois da morte do Sr. Andrade, montou na Rua Santa Madalena (Paraíso) uma casa para Dasy e a vó, onde as duas permaneceram até a morte da Cíclone, em 24 de agosto de 1919. Um casamento in extremis uniu o desesperado Oswald a sua Miss, vitimada por complicações decorrentes de um aborto mal feito. Foi sepultada no jazigo da família Andrade no cemitério da Consolação, conforme recorte de jornal colado na última página do Perfeito cozinheiro, recorte esse que arrematou essa trágica história de amor e acabou com o suspense em torno de certos nomes escondidos pelos pseudônimos. Não apenas a identidade da Miss foi revelada, mas a de todos os "gravatas" que, acompanhados de suas respectivas mulheres, enviaram flores para Maria de Lurdes Pontes de Andrade. O casamento, mesmo numa situação de desespero como aquela, apagou antigos ressentimentos e preconceitos.