Atelier: história de um poema*
Durante a série de 7 rascunhos autógrafos, Oswald às vezes substituia, reformulava o texto sem necessidade de reescrevê-lo, utilizando-se de riscos, escrevendo em cima das palavras, acrescentando novas palavras entre os versos ou ao lado do verso, etc. Nesses casos, procederemos diferenciando essas reescrituras simplesmente denominando, por exemplo; rascunho 2(1), 2(2), etc.; o primeiro número se refere à redação propriamente dita, o segundo à reescritura realizada pelo Autor, imediatamente durante o ato de escrever ou mais tarde no momento da leitura do texto. Tomaremos sempre como ponto de partida as mudanças sofridas por um dado texto e comparado com o seu anterior.
O rascunho inicial tinha duas
estrofes (a primeira com cinco versos e a segunda com quatro):
" Atelier paulista
Morro de Favela
Numa temperatura terrena
Congonhas sob o palio de Minas
Desenhos
Frutas e preocupações de criança
A artista sadia e linda
De minha terra
De rara e perfeita beleza
Chamada Dona Tarsila"
Desse texto, se compararmos com o resultado definitivo, permaneceu apenas a idéia, a intenção de fazer um poema. Ou melhor, nessa primeira tentativa o poema estava em sua fase embrionária e apesar do seu tamanho (nove versos) Oswald não conseguiu a exploração do tema com a síntese e a objetividade pregadas no seu texto programa (o Manifesto Pau brasil). Mal realizado tecnicamente, do ponto de vista da linguagem se mostrou inadequado para retratar a arte e a personalidade de Tarsila. Oswald, angustiado pelo desejo de contenção formal, buscou detalhes precisos, ao longo dessas reescrituras com o objetivo de criar, como Tarsila, por meio de verdadeiros exercícios geométricos de síntese, o perfil sonhado.
A partir do manuscrito que denominamos de 4(1), Oswald deu novos rumos à construção do poema. Passou a utilizar uma linguagem mais refinada, embora simples, recorrendo ao processo metonímico da substituição; permitindo ao leitor contribuir na tarefa de armar o poema. Vamos arrolar as passagens da primeira escritura que sobreviveram nas elaborações subseqüentes do poema, realizando o confronto verso por verso.
Nos manuscritos 1, 2, 3, 4(1) o sintagma "Morro da Favela" funcionou como primeiro verso. A propósito, Morro da favela é também o título de uma tela de Tarsila datada de 1924. Este sintagma atuou como primeiro verso até o quarto rascunho. Dentro da opção feita pelo poeta de apreender metonimicamente a realidade, foi imprescindível para Oswald a pinçagem de traços marcantes das várias fases do percurso artístico da grande pintora, com o intuito de compor seu retrato ideal. Ou seja, de empreender recortes variados que enfocassem momentos da vida e da arte de Tarsila. Morro da Favela é uma obra que realmente resume procedimentos, técnicas, tendências. Todavia, Oswald não se contentou com esse processo alusivo de citação sem apreender o essencial. O assunto do poema devia ser reduzido à própria linguagem poética, assim como a artista o fez na sua visão pictural do mundo. Daí porque preferiu deixar o leitor caracterizar a pintura de Tarsila com base nos aspectos plásticos e temáticos essenciais, recortados pelo poeta no conjunto das suas telas, transformando esses aspectos em discurso poético. Outra marca da poesia oswaldiana, consistiu na insistência em cavar inspirações de poesia nos fatos pessoais de vida numa maneira peculiar de ir direto às coisas, retirando delas apenas o necessário, como foi o caso desse Atelier tão próximo ao poeta.
O segundo verso "Numa temperatura terrena" foi substituído a partir do terceiro manuscrito pelo verso "Numa atmosfera nítida" (permanecendo no terceiro e no quarto manuscritos); "As atmosferas nítidas", manuscrito 4.2. O segmento de versos - "Congonhas descora na saudade/sob o pálio das procissões de Minas" - ficou inalterável nos manuscritos 2,3,4,5, variando apenas a posição dos versos dentro do texto integral. Nos manuscritos 6 e 7, esse sintagma se transformou num verso único e perdeu a palavra saudade."Congonhas descora sob o pálio das procissões de Minas" (verso 9); sendo desmembrado na 1a edição "Congonhas descora sob o pálio/ (verso 9) Das procissões de Minas" (verso 10). O verso "Congonhas sob o pálio de Minas" do primeiro manuscrito pode ser considerado o sintagma núcleo, gerador do poema, sendo presença constante em todas as etapas da reescritura. No manuscrito 2 o conjunto de versos - "Congonhas descora na saudade" (verso 3) "Sob o pálio das procissões de Minas" (verso 4) - serviu de matriz e foi o único elemento proveniente do esboço inicial, resistente a todas substituições. Essa imagem matriz simbolizava, como marcamos anteriormente, uma obsessão dos modernistas e do momento cultural e consistiu no ponto de união da obra dos dois artistas. Oswald planejou uma produção cultural atualizada, com cara de Brasil e a praticou nos poemas do Pau brasil, adequadamente ilustrados por Tarsila, cuja fase de geometrização da paisagem, de que o "Morro da Favela" é um exemplo, passou a ser conhecida por "pintura Pau brasil". A excursão de intelectuais modernistas acompanhando Blaise Cendrars ao Rio, no carnaval de 1924 e a viagem à Minas na Semana Santa do mesmo ano inspiraram os temas brasileiros, sonhados em 1923 em Paris. Essa integração entre a poesia de Oswald e a arte de Tarsila refletiu uma tendência comum da arte de vanguarda de contribuir para o interrelacionamento dos diferentes setores da atividade artística: pintores, fotógrafos, escultores, romancistas, poetas, músicos se entrosavam no sentido de criar uma arte controvertida e nova. As afinidades do casal não ficaram somente nesse aspecto. Também os uniu a paixão pelo Cubismo, movimento que contribuiu para sacudir a pintura da convencionalidade do seu passado, revelando sua própria convencionaldade 3; e para instaurar uma nova realidade poética pela quebra das convenções e dos padrões tradicionais. A última estrofe desse rascunho inicial ("A artista sadia e linda/De minha terra/De rara e perfeita beleza/Chamada D.Tarsila") uma quadrinha montada nos moldes da literatura de cordel, não convenceu. Foi suprimida por ocasião do segundo texto em sintonia com o projeto poético da simplicidade sem incorrer no vulgar. E para exprimir a tão falada beleza da sua amada, pesquisou uma linguagem sugestiva e requintada.
O confronto do primeiro rascunho com os demais praticamente tornou irreconhecível esse manuscrito diante do texto publicado. Restou apenas o verso matriz que funcionou como um refrão: "Congonhas sob o pálio de Minas". Passamos ao levantamento dos novos sintagmas incorporados no segundo rascunho considerando o primeiro texto, observando-se também as variações desses elementos ao longo dos demais manuscritos. Esgotadas as modificações realizadas, passemos às subseqüentes até chegarmos à forma definitiva.
Um outro bloco de versos, surgido por ocasião da segunda reescritura, progressivamente foi modificado, encurtado até desaparecer por completo no sexto manuscrito. Vejamos o seu percurso:
Ms.2(1)
"Esta emoção
Desta negra gigante
Polida
Lustrosa
Como uma bola de bilhar no deserto"
Ms.2(2)
"A emoção
Desta negra
Polida
Lustrosa
Como uma bola de bilhar do deserto"
Ms.3(1)
"A emoção
Desta negra gigante
Polida
Lustrosa
Como uma bola de bilhar"
Ms.3(2)
"A emoção
Desta negra polida lustrosa
Como uma bola de bilhar no deserto"
Ms.4 e 5(1)
"A emoção
desta negra polida lustrosa
Como uma bola de bilhar no deserto"
Ms.5(2)
"A emoção
desta negra
Como uma bola de bilhar no deserto"
O poeta certamente estava ainda sob o efeito da impressão que lhe causara a tela pré-antropofágica A negra (1923). Portanto, quis dar uma idéia do conjunto do trabalho e da técnica da artista, marcados sobretudo pela grande preocupação formal, máxima depuração, despojamento e perfeccionismo. A imagem da negra redonda e lustrosa se aproximou muito do programa que Tarsila conscientemente defendia para a sua arte. O perfeccionismo presidiu não apenas a obra oswaldiana mas sbretudo a pintura Pau brasil. Tarsila comentava em carta a Joaquim Inojosa: "Trabalho hoje com a paciência de Fra Angélico para que meu quadro seja lindo, limpo, lustroso como um Rolls saindo da oficina" 4. O fascínio pelas formas arredondadas e pela geometrização da realidade viva transformou-se em traço marcante de sua pintura, depois do aprendizado cubista. Basta observar as cabeças circulares de A família, O vendedor de frutas, Anjo, etc.
Oswald pretendeu captar os motivos que freqüentavam constantemente a pintura de Tarsila (A Feira, Feira) e que remetiam à infância da artista, ao ambiente e à paisagem familiar da vida na fazenda "Sertão" ou em "São Bernardo". Recuperando a temática do nacional, Tarsila colocou em circulação a linguagem tosca, com forte acento na ingenuidade daquele universo e com isso enriqueceu o debate do momento em torno da criação de uma arte brasileira. Observemos o roteiro que o poeta teve de seguir para chegar à singular fatura da terceira estrofe do texto publicado, que começa a ser atingida a partir do manuscrito três:
Ms.3(1)
"Frutas dos trópicos"
Ms.3(2)
"Um hotel dos trópicos
Quando a gente chega cansado da poeira Vermelha"
Ms.4(1)
"Um hotel dos trópicos
Quando a gente chega de Ford
Cansado da poeira vermelha"
Ms.4(2)
"A verdura
Um hotel dos trópicos
Quando a gente chega de Ford
Da poeira vermelha"
Ms.5(1)
"A verdura de um hotel dos
trópicos
Quando a gente vem de Ford
Da poeira vermelha"
Ms.5(2)
"A verdura
Quando a gente vem
Da poeira vermelha
E entra num hotel"
Ms.6
"A verdura
Quando a gente vem da poeira vermelha"
Ms.7(1)
"A verdura quando a gente
vem da poeira vermelha"
Ms.7(2)
"A verdura no azul Klaxon
entra
Cortada
Sobre a poeira vermelha"
A partir do sexto manuscrito, os versos "Um cheiro de café/no silêncio emoldurado" assumiram a posição definitiva: final do poema. Nada mais adequado do que este espaço, visto que são dois versos arremates, os chamados versos de efeito, muito ao gosto do poeta e que de alguma forma serviram de leitmotiv, estando presentes em todos os manuscritos, com exceção do primeiro, atuando como uma espécie de síntese do poema e da arte de Tarsila, maravilhosamente condensada por Oswald nessa originalíssima declaração de amor. Ao longo dos rascunhos 2, 3, 4 e 5 permaneceu sempre no meio do poema e sua variação teve o seguinte trajeto:
Ms. 2(1)
"Um cheiro de café
no silêncio
Emoldurado numa máscara negra"
Ms. 2(2)
"Um cheiro de café
no silêncio
Emoldurado numa máscara"
Ms.3(1)
"Um cheiro de café
Emoldurado"
Ms.3(2) , 4 e 5(1)
"Um cheiro de café no silêncio emoldurado"
Ms.5(2)
"Um cheiro de café no silêncio"
A primeira estrofe do poema Atelier - "Caipirinha vestida por Poiret/A preguiça paulista reside nos teus olhos/Que não viram Paris nem Picadilly/Nem as exclamações dos homens/Em Sevilha/À tua passagem entre brincos" - foi o trecho mais intensivamente trabalhado. O poeta chegou inclusive a reescrever esta estrofe duas vezes à parte, isto é, em folha separada. Caipirinha é também um quadro de Tarsila de 1923, do auge do seu aprendizado cubista, quando tentava obter uma síntese dos recursos e das técnicas daqueles mestres e com esse instrumental conseguir gravar o assunto brasileiro: "Quero na arte ser a caipirinha de São Bernardo, brincando de bonecas do mato, como o último quadro que estou pintando"5. Oswald foi minucioso na pesquisa de expressões adequadas que revelassem a verdadeira dimensão dessa artista simples, dominando perfeitamente as técnicas mais modernas de pintura, fiel ao universo caipira (o espaço da infância, as características da terra e do meio) sempre presente na sua memória e na sua arte. O poeta condensou os versos ao longo das sucessivas reescrituras, até atingir em pinceladas rápidas e curtas o essencial da mesma forma que Tarsila: singeleza e sofisticação da caipirinha que chamava a atenção nos lugares que freqüentava pela rara beleza e naturalidade, unanimemente aclamadas.
Ms.2.(1)
"A fazenda nos olhos pequeninos
que viram Paris
O barulho das capitais
As exclamações dos homens
Com uma indiferença que não sabe"
Ms.2.(2)
"A fazenda nos olhos pequeninos
que viram Paris
O barulho das capitais
As exclamações dos homens
Com uma indiferença que não sabe"
Ms. 2(3)
"A fazenda nos olhos pequeninos
que viram Paris
A elegância e a forma
O barulho das capitais
As exclamações dos homens
Com uma indiferença que não sabe"
Observemos o filão dessa estrofe ao longo da série dos outros rascunhos:
Ms.3 (1)
"Caipirinha cubista
A fazenda permanece
Nos olhos pequeninos que viram Paris
O barulho das capitais
A exclamação dos homens
Viva usted y viva su amante!
Com uma indiferença que não sabe"
Ms.3 (2)
"Caipirinha
A fazenda paulista permanece
nos teus olhos
pequeninos que viram Paris
O barulho das capitais
A exclamação dos homens
Com uma indiferença que não sabe"
Ms.4 (1)
"Caipirinha
A fazenda paulista permanece
Nos teus olhos pequeninos que viram Paris
Piccadilly a Riviera Sorrento Toledo
O barulho das capitais
A exclamação dos homens
A tua passagem
Com uma indiferença perpendicular
Como teus brincos"
Ms.4 (2)
"Caipirinha
A fazenda paulista permanece
nos teus olhos que viram Paris
Piccadilly e Riviera Sorrento Toledo
A madorra das travessias
O barulho das capitais
A exclamação dos homens à tua passagem
Com uma indiferença perpendicular
Como teus brincos"
Ms.5 (1)
"Caipirinha vestida por
Poiret
A fazenda paulista permanece nos teus olhos pequeninos
Que viram Paris, Piccadilly, a Riviera, Sorrento, Toledo
A madorra das travessias
O barulho das capitais
A exclamação dos homens à tua passagem
Com uma indiferença perpendicular
Como teus brincos"
Ms.5 (2)
"Caipirinha vestida por
Poiret (verso décimo sexto)
A fazenda paulista dorme nos teus olhos
Pequeninos
Que não viram Paris, Piccadilly, a Riviera, Sorrento, Toledo
O barulho das capitais
A exclamação dos homens à tua passagem
Com uma indiferença perpendicular
Como teus brincos"
Ms. 5(3)
"Ela esqueceu tudo Piccadilly,
a Riviera, Toledo
A fazenda paulista dorme nos teus olhos"
Ms.5 (4)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris, Piccadilly, a Riviera, Sorrento, Toledo
Nem as exclamações a tua passagem"
Ms.5 (4.1)
"Caipirinha vestida por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos"
Que não viram Paris, Piccadilly, a Riviera, Sorrento, Toledo
Nem as exclamções à tua passagem"
Ms.6(1) (esses versos passam para o início do poema)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly, nem Toledo
Nem as exclamações dos homens à tua passagem
Entre brincos"
Ms.6 (2)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
Imóvel entre brincos
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris, nem Piccadilly, nem Toledo
Nem a exclamação dos homens a tua aparição
entre brincos"
Ms.6(3)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris, nem Piccadilly, nem Toledo
Nem as exclamações dos homens à tua aparição
Imóvel entre brincos"
Ms.6(4)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
que não viram Paris, nem Piccadilly, nem Toledo
Nem as exclamações dos homens à tua passagem"
Ms.6(5)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly nem Toledo
Nem as exclamações dos homens
À tua passagem entre brincos"
Oswald fez um risco na palavra passagem substituindo-a por aparição; depois recuperou a palavra passagem.
Ms.7(1)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly nem Toledo
Nem as exclamações dos homens à tua passagem
Entre brincos"
Ms.7 (2)
"Caipirinha vestida por
Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram nem Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens em Sevilha
A tua passagem entre brincos"
As transformações ocorridas a partir do manuscrito 5(2) foram decisivas para definir a natureza do projeto intelectual oswaldiano e confirmar, ao nível da criação, o esforço de atualização engajado na pesquisa da identidade nacional e na recuperação de nossos valores poéticos tradicionais.
Oswald reafirmou a necessidade de equilíbrio entre o binômio "floresta e escola" também a nível microcósmico, ou seja, nas filigranas do processo poético; sentiu a urgência estratégica de deixar em segundo plano a visão da sofisticação, do refinamento:
"Ela esqueceu tudo* Piccadilly, a Riviera, Toledo"
Ms.5(3)
"Caipirinha enfeitada por
Poiret
A fazenda paulista preguiça nos teus olhos"
Que não* viram Paris, Piccadilly, a Riviera, Sorrento Toledo" As alterações efetuadas do manuscrito 7(1) para o 7(2) procederam de forma bastante simples: as palavras substituídas foram riscadas a lápis, por cima das mesmas o poeta escreveu outra palavra mais adequada. Assim foi o caso de "enfeitada", substituída por "vestida" por "fazenda" por "preguiça" e finalmente por "reside"."A tua passagem" e "entre brincos" passaram a formar um verso separado. Na primeira edição o conjunto 7(2) foi absorvido com uma ligeira modificação: "Sevilha" formou um verso à parte. O trabalho artesanal do poeta a fim de concluir a última estrofe também aconteceu intensamente. Essa estrofe começou a se aproximar da forma definitiva somente a partir do rascunho 6.
Oswald datou pela primeira vez o poema - 21.3.25 - talvez indicando a conclusão do texto e o tempo gasto nesse laborioso artesanato:
Ms.6 (1)
"Brincas de Arranha-céus
De viadutos de Fords americanos
Com teus pincéis
Fords
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado
Imóvel
Entre brincos"
Ms. 6 (2)
"Arranha-céus
Viadutos
Fords
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado
Entre brincos".
Mas não se contentou com a forma encontrada, embora a partir exatamente do rascunho 6(2), o poema atingisse uma fisionomia muito próxima da forma definitiva:
"Arranha-céus
Fordes
Um cheiro de café
No silêncio emuldurado"
Sua estrutura diferenciou-se das anteriores, sobretudo pela brutal alteração de antigos versos e expressões que sugeriram e inspiraram os primeiros contornos da última estrofe, reestruturada em três ocasiões. Nesse momento vislumbrou a forma sonhada e perseguida para o poema em homenagem à sua musa. É interessante notar como foi atingida essa estrutura: Oswald riscou as palavras indesejáveis, sem nada acrescentar à estrofe em questão, lembrando às vezes o gesto da artista plástica de retirar o excesso de tinta ou de material supérfluo. Desta maneira o poeta preferiu radicalizar a sua técnica, optando por flashes de substantivos, numa seqüencia de nomes arrematados por um conjunto que não comportava verbos nem outros ornamentos, com exceção do adjetivo emoldurado, elevado à categoria de substantivo. Essa série remeteu a personagens habituais na obra de Tarsila, traduziu a ânsia de atualização da artista, trouxe os signos do seu tempo, da modernidade, os sinais do progresso, que invadiam a tranquila paisagem paulistana alterada por arranha-céus, automóveis e pela industrialização emergente. Tudo isso misturado à tradição nacional, gravada por Tarsila silenciosamente com cheiro de café.
Os "exercícios" oswaldianos rumo à forma definitiva do poema Atelier com exceção dos manuscritos 1, 6 e 7, constituíram um bloco único de versos. No manuscrito 6 a segunda estrofe e a última foram separadas e o segmento de versos, que estamos discutindo, formado por um só conjunto, passou a compor duas estrofes isoladas. Comparando os textos -
Ms. 7 (1)
"Arranha-céus
Viadutos
Fords
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado"
Ms. 7 (2)
"Arranha-céus
Fords
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado"
1ª ed.
"Arranha-céus
Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado"
- constatamos que o poeta apenas inverteu a ordem do verso 3 que passou a segundo e vice-versa. Ocorreu também no texto final o aportuguesamento do plural Ford-Fords-Fordes, mantido até a composição 7(2) como Fords.
Outra grande alteração que o manuscrito 6 apresentou foi o surgimento da segunda estrofe, com uma estrutura próxima daquela conhecida pelo público em 1925:
Ms.6
"Locomotivas e bichos brasileiros
Geometrizam atmosferas nítidas
Terrenas
Congonhas descora sob o pálio das procissões de
Minas
A verdura
Quando a gente vem da poeira vermelha"
Ms. 7 (1)
"Locomotivas e bichos brasileiros
Geometrizam atmosferas nítidas
Terrenas
Congonhas descora sob o pálio das procissões de
Minas
A verdura quando a gente vem da poeira vermelha"
Ms. 7 (2)
"Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio das procissões de
Minas"
A verdura no azul Klaxon entre
cortada
Sobre a poeira vermelha
1ª edição
"Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas
A verdura no azul Klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha".
No texto definitivo visualizamos claramente duas partes: a primeira (a estrofe 1) revelou o retrato integral de Tarsila mulher: fisionomia, comportamento, preferências, caráter, etc. O poeta transmitiu ao leitor, nesta seleção de traços marcantes, a simplicidade da Tarsila bem sucedida e admirada por todos.
Por falar em musas, não é novidade a admiraçào de Oswald por suas mulheres. Dedicava-lhes a maior atenção e as queria sempre belas e cobiçadas, envadecia-se com o fascínio que elas despertavam em público. Assim aconteceu com Julieta, Antonieta e sobretudo com Tarsila, companheira e musa dos tempos agitados, alegres e prósperos do Modernismo. Estimulava Tarsila a cuidar-se, forçava-a a visitar Poiret, e Patou, famosos costureiros e decoradores de quem o casal foi cliente, tendo comprado quase todo enxoval e o vestido de casamento na Maison Poiret, como informou Aracy Amaral. Em cartas a Tarsila, Oswald alternou recomendações sobre a aparência com conselhos de ordem profissional: "Visite Poiret e Patou"; "Traga deslumbramentos para o noivado social. Antes de partires, mostra os trabalhos e sobretudo informa-se bem do que passa este ano, qual o ponto de evolução dos mestres, etc. Qual a orientação, etc".6 Aracy Amaral recolheu muitos depoimentos que confirmaram o sucesso de Tarsila em Paris e no Brasil: "era uma das mulheres mais bonitas de Paris, essa caipirinha de Monte Serrat. Lembro-me certa noite em que, no Ballet des Champs Elysées, toda a platéia se voltou para vê-la entrar em seu camarote, com a negra cabeleira lisa descobrindo e valorizando o rosto e os brincos extravagantes quase tocando-lhes os ombros suavemente amorenados". Oswald eternizou uma imagem muito divulgada de Tarsila penteada com os cabelos para trás e usando brincos presenteados pelo poeta; imagem essa gravada pela artista no famoso Auto Retrato (1926) e evocada também por Nonê, filho mais velho de Oswald: "Num baile de ópera/veste um vestido/Cor de rosa/simples, muito simples, muito simples/com vasto laço atrás/De suas orelhas/pendem as lágrimas/baianas de ouro".8
Finalmente, o restante do poema (a segunda e a última estrofe) trata da pintura de Tarsila. Oswald o construiu como se pegasse uma câmara e fosse focalizando os quadros mais importantes, demorando-se em dados significativos relacionados com a técnica, os motivos, as cores da pintura Pau brasil.
Os intervalos demorados entre a primeira composição da obra e sua data de publicação são sintomáticos de uma metodologia cuidadosa bem como de um exaustivo trabalho de artesão e ao mesmo tempo da bem sucedida busca de um ideário autêntico e modernos. Anunciam, antes de mais nada, a paciente tentativa do poeta em aperfeiçoar o seu estilo, transformando-o no retrato das suas idéias estéticas do momento, intimamente ligada ao projeto Pau brasil e a vontade de construção de uma arte brasileira de categoria.
Com essa história resumida do percurso criativo do poema "Atelier", parte integrante de uma pesquisa mais ampla sobre o projeto literário Pau brasil , esperamos ter mostrado ao público um pouco do empenho de Oswald de Andrade em encontrar ao longo de sua obra uma linguagem moderna e primitiva.
Notas:
*
Texto originalmente apresentado no I Encontro de Crítica Textual: O manuscrito
moderno e as edições. São Paulo, set. 1986. e reformulado
para a publicação no nº 7 de Remate de Males.
1. Novíssima. São Paulo, 6 ago. 1924. p.13.
2. Decio Pignatari. Marco Zero de Andrade. O Estado de S.Paulo. São Paulo, 24 out. 1964 (Supl. Literário p.5).
3. Georges Yudice. Cubist aesthetics in painting and poetry. Semiotics 36 (1/2): 107-133. 1981.
4. Tarsila do Amaral. Carta a Joaquim Inojosa de 6 nov. 1925, citada por Aracy Amaral cit. p.176.
5. Idem, carta a sua mãe de abril de 1923.
6. Cartas de Oswald de Andrade citada por Aracy Amaral. cit. p. 151-155.
7. Sérgio Milliet. Apud Aracy do Amaral cit.
8. Oswald de Andrade Filho - Dias seguintes e outros dias (livro inédito)