(Publicado em Principia 1(2): 255-69, 1997)
Realismo científico Empirista?[1]
SILVIO SENO CHIBENI
Departamento de
Filosofia - Unicamp
chibeni@unicamp.br
Resumo:
Um dos principais
filósofos anti-realistas científicos contemporâneos, Bas van Fraassen, assume
que sua posição é uma conseqüência do empirismo, entendido como a doutrina epistemológica segundo a qual o conhecimento
provém da experiência. Na literatura recente acerca do realismo científico essa
tese tem sido aceita de forma não crítica. Freqüentemente a própria distinção
entre anti-realismo científico e empirismo não é traçada, tendo-se tornado
comum o emprego do termo ‘empirismo’ para designar certas formas de
anti-realismo científico. Neste artigo inicialmente propõe-se que, a bem da
clareza conceitual, o anti-realismo científico não deve ser confundido com o
empirismo. Depois, indica-se que os principais argumentos a favor do realismo
científico de fato requerem que se confira valor epistêmico a princípios não
empíricos, como o poder explicativo, a simplicidade, a unidade, etc.
Ressalta-se, por fim, que embora o reconhecimento desse ponto em um certo
sentido apóie a tese de van Fraassen, a sustentação de formas atenuadas de
anti-realismo científico que, a exemplo de seu próprio empirismo construtivo,
retêm o realismo quanto aos objetos materiais ordinários, também depende do uso
epistêmico de tais princípios, pelo menos dentro do referencial epistemológico
dos filósofos empiristas modernos.
Abstract:
In his influential criticism of scientific realism,
Bas van Fraassen assumes that this doctrine is incompatible with empiricism,
according to which the sole ultimate basis of knowledge is experience. This
claim has been generally accepted in the contemporary literature in philosophy
of science. Thus, the very distinction between anti-scientific realism and
empiricism is often forgotten, the term ‘empiricism’ being now widely used to
designate a range of anti-realist positions, such as van Fraassen’s
“constructive empiricism”. In this paper it is argued, first, that empiricism,
in the traditional and proper sense of the word, is a thesis about the problem
of the foundations of knowledge, and should therefore be clearly distinguished
from anti-realism, which concerns the issue of the extension of knowledge. It
is then conceded that the main arguments for scientific realism do indeed
require that extra-empirical characteristics of scientific theories, such as
simplicity and explanatory power, should be ascribed epistemic weight. Although
this point lends support to van Fraassen’s claim, it is indicated here that his
constructive empiricism is threatened by the same kind of epistemological
objections which he raises against his opponents. Like some other scientific
anti-realists, van Fraassen avowedly embraces realism concerning ordinary material objects; but it is not clear that this form of realism
remains tenable when explanatory power, simplicity, etc. are regarded as merely
pragmatic, non-epistemic virtues.
Palavras-chaves: empirismo, realismo científico, van Fraassen
1. Empirismo e
racionalismo
Tradicionalmente, no
estudo do conhecimento humano em geral distinguem-se dois problemas: um
relativo às suas fontes e outro que diz respeito à sua extensão. A investigação
do segundo problema naturalmente pressupõe algum posicionamento quanto ao
primeiro. Não é claro, contudo, que uma solução do problema das fontes do
conhecimento conduza automaticamente a uma resposta unívoca para a questão da
extensão ou limites do conhecimento. Assim é, por exemplo, que no Ensaio sobre o Entendimento Humano Locke
examina de modo explícito e detalhado a extensão do conhecimento após, e mesmo
após, haver estabelecido sua teoria acerca das fontes do conhecimento.
Utilizamos
propositadamente a expressão ‘fontes do conhecimento’, embora sabendo que o
leitor poderá identificá-la como ambígua. Afinal, Kant distinguiu a questão da
fundamentação do conhecimento daquela relativa à sua origem ou “começo”.
Anteriormente a Kant, porém, os epistemólogos não estabeleciam de forma clara
essa distinção, e a investigação de como o conhecimento “começa”, se adquire,
se origina, era também entendida como se dirigindo à questão dos seus
fundamentos, ou justificação. Embora a tradição filosófica tenha reconhecido a
conveniência de se traçar a distinção, não acreditamos que se trate de um ponto
que dispense ulteriores exames críticos. No presente trabalho, todavia, nada
dependerá de forma essencial da posição que se adote quanto a isso, e
continuaremos falando em fontes do conhecimento, em sentido bastante amplo.
É à questão das fontes
do conhecimento assim entendida que o empirismo diz respeito. Trata-se da tese
epistemológica segundo a qual a fonte última do conhecimento é a experiência
(Locke, Berkeley, Hume). Em oposição a ela, o racionalismo mantém que é possível obter conhecimento, ou
justificá-lo, independentemente da experiência (Descartes, Leibniz).
Embora quando
caracterizados dessa forma geral empirismo e racionalismo digam respeito ao
conhecimento de quaisquer domínios, o tema deste trabalho permite que
analisemos exclusivamente o conhecimento do mundo físico, sem nos preocuparmos
com o conhecimento matemático, por exemplo. Além disso, não iremos tratar das
posições racionalistas, sem com isso fugirmos ao foco do debate atual sobre o realismo
científico. Aliás, o interesse dos epistemólogos que se ocupam das ciência
naturais parece ter-se inclinado irreversivelmente para o empirismo depois que
teorias consideradas paradigmas de conhecimento a priori, como a geometria euclidiana e a mecânica clássica,
cederam lugar a teorias incompatíveis, no processo evolutivo da ciência.
2. Realismo e
anti-realismo
Percebe-se facilmente
que é possível haver divergências entre empiristas e, igualmente, entre
racionalistas, sobre o que pode ou não ser conhecido acerca do mundo, sobre
quais objetos, propriedades e relações caem dentro do escopo da cognição
humana. Considerando-se então determinada classe de objetos, há, de modo geral,
duas posições epistemológicas possíveis: o realismo,
que defende que eles podem em princípio ser conhecidos (sua existência, suas
propriedades e relações), e o anti-realismo,
que os considera inabordáveis por nossas faculdades cognitivas.
Realismo e
anti-realismo têm recebido caracterizações e denominações particulares, dependendo
da classe de objetos em questão. Assim, por exemplo, o behaviorismo é uma forma
de anti-realismo quanto aos estados mentais; o construtivismo uma forma de
anti-realismo quanto aos objetos matemáticos; o fenomenalismo, quanto aos
objetos materiais ordinários. Neste trabalho discutiremos exclusivamente o
conhecimento das entidades e processos inobserváveis postulados pelas teorias
científicas para predizer e explicar aquilo que se observa. Temos, neste caso,
a tese do realismo científico, de
acordo com a qual a ciência já determinou a realidade de algumas dessas entidades
e processos; ou, em formulações mais fracas, que ela se aproxima gradualmente
de uma descrição correta da realidade inobservável ou, simplesmente, que tem
essa descrição entre seus objetivos.
A negação dessa tese
pode ser feita de diversas maneiras, resultando daí formas diferentes de
anti-realismo científico. A substituição da concepção clássica,
correspondencial, de verdade por concepções como a pragmática, ou a concepção
da verdade como coerência, por exemplo, leva a um anti-realismo bastante
radical, de índole relativista. Nas posições instrumentalista e redutivista a
noção clássica é em geral preservada, mas as proposições que se referem a
coisas inobserváveis são interpretadas de forma não literal. Para o
instrumentalismo elas são, na verdade, pseudo-proposições, que não asserem nada
sobre o mundo, não passando de instrumentos de cálculo ou predição que
auxiliam a conexão e a estruturação das proposições genuínas, sobre coisas e
processos observáveis. Para o redutivismo, aquelas proposições das teorias
científicas são proposições genuínas, porém de fato referem-se (indiretamente)
apenas ao que é observável, sendo abreviações para proposições mais complexas
sobre entidades e processos observáveis.
Boa parte do debate
contemporâneo acerca do realismo científico gira em torno do empirismo construtivo, doutrina
anti-realista científica proposta por van Fraassen (1980). Segundo esse
filósofo, as proposições sobre entes inobserváveis são proposições genuínas e
devem ser interpretadas literalmente; porém a determinação de seu valor de
verdade não constitui objetivo da ciência. “A ciência objetiva a nos fornecer
teorias que são empiricamente adequadas; e a aceitação de uma teoria envolve,
como crença, apenas que ela é empiricamente adequada” (van Fraassen 1980, p.
12). Trata-se, pois, de uma forma de anti-realismo científico aparentemente
mais fraca e plausível do que redutivismo, já que van Fraassen desenvolveu sua
posição a partir do reconhecimento da insustentabilidade do projeto redutivista
do positivismo lógico. Quanto às relações dessa posição com o instrumentalismo,
poderíamos talvez aproveitar uma distinção traçada por Newton-Smith (1981, p.
30), e dizer que o empirismo construtivo é um “instrumentalismo
epistemológico”, enquanto que o descrito no parágrafo precedente é “semântico”.
Para as análises a
serem desenvolvidas logo mais, é importante observar que van Fraassen
compartilha com o realista científico típico de nossos dias não apenas a interpretação
literal das teorias científicas e a noção clássica de verdade mas também o realismo
quanto aos objetos materiais ordinários e o empirismo, tal como caracterizado
na primeira seção. Sobre esse último ponto, afirma explicitamente que
“identifica o empirismo com a tese epistemológica de que a experiência é a
única fonte legítima de informação sobre o mundo” (1985, p. 286).
Todavia, van Fraassen
junta-se aos instrumentalistas semânticos e redutivistas ao considerar que o
conhecimento se limita estritamente
ao que é diretamente observável. Defende, ademais, que essa tese anti-realista
científica é uma conseqüência do
empirismo. No mesmo parágrafo em que expressa corretamente a posição empirista,
na citação que acabamos de fazer, acrescenta: “Eu diria que a crítica empirista
do conhecimento corta todas as bases do realismo científico” (ibid.).
Nessa passagem, van
Fraassen está respondendo à acusação de Brian Ellis (1985, p. 48) de que seu
conceito de empirismo não é o tradicional. De fato, o leitor atento de The Scientific Image terá boas razões
para concordar com Ellis. Já na primeira linha desse livro, por exemplo, o
autor afirma que “a oposição entre empirismo e realismo é antiga”, confrontando
assim posições que se referem a problemas epistemológicos diferentes. Conforme
salientamos no início, o empirismo opõe-se, mais propriamente, ao
racionalismo, enquanto que ao realismo opõem-se diversos tipos de
anti-realismo. Em nenhum lugar, antes de ser pressionado por Ellis, van
Fraassen traça uma distinção explícita entre empirismo e anti-realismo
científico. Infelizmente, a literatura recente mostra acentuada tendência para
confundir essas duas doutrinas. Esteja ou não correta a tese de que o
anti-realismo científico decorre do empirismo, a clareza recomenda que elas
sejam diferençadas conceitual e terminologicamente. Popper e Carnap, por
exemplo, eram ambos empiristas, divergindo, no entanto, quanto aos limites do
conhecimento. Para Popper, porém não para os positivistas lógicos, hipóteses
acerca da existência e propriedades de entes inobserváveis poderiam ser
consideradas veículos de genuíno conhecimento, desde que submetidas a controle
experimental.
3. Realismo científico
empirista?
O vínculo forte
proposto por van Fraassen entre empirismo e anti-realismo científico não é
trivial, o que já se percebe pela inspeção de algumas de suas conseqüências.
Ainda na resposta a Ellis, por exemplo, não podendo negar que Galileo agia como
se tivesse adotado uma postura realista, van Fraassen é forçado a afirmar,
implausivelmente, que talvez o grande gênio fosse um “empirista que tinha
prazer em fazer lances de fé [...] ou então um empirista que não via as
implicações de sua própria posição”.
Evidentemente, o fato
de Galileo ou qualquer outro cientista haver adotado uma posição realista não
pode ser evocado como uma razão filosófica a seu favor. Parece-nos bizarro, no
entanto, manter que gênios da ciência com amplo conhecimento filosófico como
Galileo e Einstein, por exemplo, tenham sido incapazes de perceber as
conseqüências filosóficas de suas próprias posições, e não dispusessem de
argumentos ponderáveis para sustentá-las, entregando-se ao irracionalismo puro
e simples.
Referindo-nos a essa
passagem, queremos sobretudo salientar que, de um modo geral, a tese de van
Fraassen obriga-o a introduzir um corte radical entre a metodologia da ciência (que ele admite depender de procedimentos
naturais em uma filosofia realista; ver e.g. 1980, pp. 80-83 e 93, e 1985,
parte I) e a interpretação epistemológica
da ciência (anti-realista, segundo ele). Não apenas as práticas da ciência
parecem ricas demais para caberem na magra epistemologia empirista de van
Fraassen, mas também nela não há recursos suficientes para tratar a
questão-chave da escolha de teorias. Isso conduz van Fraassen a propor a cisão
entre crença e aceitação de teorias. Esse tópico exige que examinemos brevemente
as motivações e justificações do empirismo construtivo.
O principal argumento
de van Fraassen contra o realismo científico é o de que as teorias científicas
que baseiam suas previsões e explicações dos fenômenos em supostos mecanismos
inacessíveis à observação direta são subdeterminadas empiricamente, ou seja,
os dados empíricos são por princípio insuficientes para determinar o valor de verdade
de algumas de suas proposições fundamentais. Assim, é possível que duas
teorias incompatíveis em suas proposições acerca do inobservável sejam
empiricamente equivalentes, isto é,
coincidam no que afirmam a respeito do que é observável. Para manter sua posição, o realista científico tem de fornecer
critérios para a discriminação epistêmica das teorias empiricamente
equivalentes, critérios que indiquem qual é a verdadeira, ou qual se aproxima
mais da verdade.
Ora, por necessidade,
esses critérios não poderão ser empíricos, e tipicamente envolvem fatores como
o poder explicativo, a simplicidade, a unidade, etc. É precisamente nesse
ponto que van Fraassen centra sua crítica: o apelo a tais princípios não
empíricos (ou “superempíricos”, como
às vezes se diz) significaria um rompimento com os ideais empiristas
tradicionais, introduzindo inaceitáveis elementos não objetivos no conhecimento.
O desejo de salvar o credo filosófico empirista é, assim, a motivação básica de
van Fraassen, conforme apontou Arthur Fine (1986, p. 167).
Van Fraassen reconhece
o papel essencial dos princípios superempíricos na escolha e aceitação de
teorias. Em nome da preservação do empirismo, porém, relega-os ao domínio
pragmático, negando-lhes qualquer relevância epistêmica, ou seja, não os
considera motivos de crença ou indicação de verdade (1980, pp. 87-88). Vejamos
esta passagem significativa (1985, p. 286-87):
Suponha, porém, que
aceitemos alguns desses critérios propostos e tomemos sua satisfação como
razões para crença. Teremos assim identificado algo novo como uma fonte de
informação legítima sobre o mundo. E então [...] já não seremos empiristas.
Pois aquilo que constitui a melhor explicação disponível [...] depende de
fatores tais como que teorias fomos capazes de imaginar, e [...] também de
nossos interesses e outros fatores contextuais capazes de conferir conteúdo
concreto à noção de ‘melhor explicação’. Essas características dos
participantes e de outros aspectos do contexto de descoberta, todas
independentes daquilo que a experiência já revelou sobre os fenômenos
relevantes, desempenhariam [segundo o realista científico] um papel na formação
de nossas expectativas quanto ao futuro. Isso está em conflito direto com a
tese empirista de que a experiência é a única fonte legítima [de tais
expectativas].
Assim, segundo van
Fraassen, a desqualificação epistêmica das virtudes superempíricas de uma
teoria se impõe pelo fato de não dizerem respeito às relações da teoria com o
mundo, mas com os usuários da teoria, dependendo de fatores históricos,
culturais, psicológicos, sociológicos, etc. A esse respeito, já em The Scientific Image podemos ler (p.
88):
Na medida em que forem
além da consistência, da adequação empírica e da força empírica, elas [as
virtudes] não dizem respeito à relação entre a teoria e o mundo, mas ao uso e à
utilidade da teoria. Fornecem razões para se preferir a teoria
independentemente das questões sobre a verdade.
Van Fraassen procura
elaborar esse ponto especialmente no caso do poder explicativo, desenvolvendo
uma teoria pragmática da explicação (1980, cap. 5), na qual o papel das teorias
científicas nas explicações vai para um segundo plano, como fornecedoras de
conhecimento de fundo, e a ênfase recai nos referidos fatores “contextuais”. A
estratégia de van Fraassen aqui é bem calculada, dado que o poder explicativo
é, reconhecidamente, o princípio superempírico de maior peso na metodologia
científica e na epistemologia realista.
De fato, a defesa
positiva do realismo científico tem seu principal ponto de apoio nos argumentos
abdutivos, ou seja, aqueles que evocam alguma ligação entre o poder explicativo
das teorias e razões para a crença em sua verdade. Os dois argumentos dessa
classe mais discutidos na literatura são os chamados “argumento da coincidência
cósmica”, exposto por Smart, e o “argumento do milagre”, formulado por Putnam.[2]
Simplificadamente, o primeiro argumento é o de que se uma teoria é capaz de
explicar uma grande quantidade e variedade de fenômenos é improvável que seja
falsa acerca da realidade inobservável que postula. Se as entidades
inobserváveis postuladas pela teoria não existissem, e se o que a teoria diz
sobre elas não fosse aproximadamente verdadeiro, somente uma coincidência de
proporções cósmicas poderia explicar seu sucesso empírico, especialmente quando
há antecipação de fatos de tipos não levados em conta quando da sua formulação.
Embora também envolva
um raciocínio abdutivo, o argumento exposto por Putnam não deve ser confundido
com o argumento da coincidência cósmica, como freqüentemente ocorre na
literatura, pois opera em um nível superior,
por assim dizer. Do mesmo modo como Smart alega que a capacidade de uma teoria
científica explicar certos fenômenos
constitui evidência de sua verdade, Putnam sustenta (em sua fase realista) que
a capacidade de uma teoria filosófica
¾ o realismo científico ¾ explicar o sucesso da ciência fornece
evidência de sua verdade. O realismo, diz Punam, “é a única filosofia que não
faz do sucesso da ciência um milagre” (1975, p. 73). Embora ambos os argumentos
forneçam apoio à mesma tese, o realismo científico, fazem-no de formas
diferentes.
Não podemos
estender-nos aqui na análise desses argumentos. Por meio de um esclarecimento
de seus pressupostos, estrutura e implicações, acreditamos ser possível mostrar
que van Fraassen aparentemente não capturou de forma adequada sua real
natureza, deixando-os conseguintemente sem resposta efetiva.[3]
Se essa tese estiver correta, van Fraassen ficará apenas com a objeção geral de
que a inferência abdutiva não merece confiança epistêmica.
Aparentemente chegamos
aqui a um ponto terminal da argumentação racional. Os realistas reconhecem os
princípios superempíricos como instrumentos epistêmicos, enquanto que van
Fraassen e outros anti-realistas admitem apenas o seu papel pragmático, todos
com o propósito exclusivo de manter suas posições.
Acreditamos, porém,
que o impasse não seja total. Por um lado, o realista haverá de conceder que se
sua posição realmente só puder ser mantida por um apelo ao poder explicativo,
à simplicidade, à unidade, etc., estará, ipso
facto ultrapassando as fronteiras de um empirismo estrito, já que não se
pode evidentemente pretender que a atribuição dessas características a uma
teoria possa ser decidida unicamente com base na experiência. Por outro lado,
se o anti-realista científico for, a exemplo de van Fraassen, um realista
quanto aos objetos materiais ordinários,
terá de justificar esse realismo sem
recorrer àqueles princípios, para que sua argumentação contra o realismo
científico não fique comprometida.
Ora, essa parece uma
tarefa difícil, quando não impossível, pelo
menos dentro do referencial empirista dos grandes filósofos do período moderno.
Tradicionalmente, na perspectiva empirista assume-se que a base última do
conhecimento sobre os corpos são os dados sensoriais (as idéias simples de
sensação lockeanas, ou as impressões dos sentidos humeanas). Tais elementos não
permitem, por si, a justificação da crença realista na existência do mundo
externo, conforme testemunham, por exemplo, as razões claramente
extra-empíricas que Locke se vê na contingência de apresentar a seu favor (Essay IV xi); ou a sua substituição por
uma crença incompatível, no caso de Berkeley; ou ainda a argumentação de Hume
contra a possibilidade de sua justificação racional ou empírica. O
anti-realista científico empirista estará em apuros se tiver, como Locke, que
recorrer a fatores superempíricos para firmar seu realismo sobre os objetos
materiais ordinários. (Por exemplo, a hipótese de que há um rato no rodapé ¾ rato e rodapé entendidos de forma realista ¾ pode eventualmente ser a melhor explicação
para um certo fluxo de impressões sensoriais, e nessa condição receber nossa
crença.)
Parece que van
Fraassen de fato encontra-se nessa situação delicada. Embora seja inegável que
ele adota uma interpretação realista dos objetos ordinários, e ele próprio o
diz em várias passagens, não fornece nenhuma justificação explícita a esse tipo
de realismo. Em uma única passagem relevante (1980, p. 72), limita-se a asseverar
que está certo de que “dados sensoriais não existem”. Isso poderia insinuar a
idéia de um acesso epistêmico mais direto aos objetos materiais ordinários.
Porém van Fraassen não propõe explicitamente essa idéia ¾ que o distanciaria, aliás, das raízes clássicas
do empirismo, que no embate com o realismo científico diz querer preservar.
Reconhece, todavia, que “ao endossar um simples juízo perceptual”, como o de
que há um rato-realista no rodapé-realista, já está “arriscando o pescoço” (ibid.). Ora, como entender tal afirmação
dentro de um possível realismo direto? Por que seria arriscado manter, na
presença de certas percepções, que há um rato no rodapé, senão porque a
existência realista de tal objeto é inferida
a partir dessas percepções por argumentos que não garantem, como os argumentos
dedutivos, a verdade da conclusão? E
como evidentemente não se trata de argumentos indutivos, haveria de ser por
meio de argumentos abdutivos.
Diante disso, parece
lícito concluir, até prova em contrário, que mesmo van Fraassen tem de fazer
uso epistêmico do poder explicativo e outras “virtudes” que ele pretende
meramente pragmáticas, violando assim, ele também, seu acalentado credo
empirista.
Em sua História da Filosofia Ocidental,
Bertrand Russell comentou que Locke só conseguiu apresentar uma filosofia
empirista razoável ao preço de admitir inconsistências, enquanto que Hume,
menos tolerante, levou o empirismo às últimas conseqüências, tornando-o desse
modo implausível (pp. 612-13 e 659). Talvez as considerações deste artigo
mostrem que há uma certa dose de verdade nessa apreciação. O ceticismo seletivo
de van Fraassen, que exclui do domínio das crenças racionalmente fundamentadas
a crença nas entidades inobserváveis da ciência, mas não aquelas referentes aos
objetos do dia-a-dia, não parece sustentável.[4]
O empirismo estrito que procura defender aponta para um estéril fenomenalismo,
que ele no entanto se recusa a aceitar. A opção poderia ser o abrandamento do
empirismo, com o reconhecimento do valor epistêmico de certos fatores
extra-empíricos e do caráter falível da cognição. Nesse caso, o conhecimento
humano alcançaria tanto objetos e processos inobserváveis quanto observáveis.
Referências
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[1] Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional
de Filosofia, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
(ANPOF) em Águas de Lindóia, de 19 a 24 de outubro de 1996.
[2] Smart 1968, Putnam 1975 e 1978. Chibeni 1993 salienta que o argumento da
coincidência cósmica já se encontrava expresso claramente nos Princípios da Filosofia de Descartes.
[3] Consulte-se, a esse respeito, Chibeni 1996. De
forma muito simplificada, a linha de argumento aí desenvolvida é a seguinte.
Van Fraassen interpreta o argumento da coincidência cósmica como envolvendo a
exigência de que toda regularidade
na natureza seja explicada. Segundo van Fraassen, poderíamos bloquear a defesa
do realismo imitando os nominalistas medievais e aceitando as regularidades
naturais como fatos brutos, que não requerem explicação. Essa interpretação não
nos parece correta. Como as situações de “coincidência cósmica” evidenciam, o
raciocínio abdutivo se aplica quando a explicação já está disponível. Ou seja, uma vez que alguém forneça uma teoria
que dê conta de maneira natural de uma multiplicidade de fenômenos, somos
convidados a acreditar que é verdadeira, se não for puramente ad hoc. Associar ao realismo a exigência
ilimitada de explicação é torná-lo
alvo fácil demais de ser atingido, pois essa exigência naturalmente conduz a um
regresso infinito de teorias explicativas. Quanto ao argumento de Putnam, um
dos problemas de sua interpretação por van Fraassen é que ele o entende como se
dirigindo à questão de por que somente as boas teorias sobrevivem na ciência.
Conforme observa Musgrave (1985, p. 210), a explicação “darwiniana” desse fato
oferecida por van Fraassen pode ser aceita também por realistas científicos,
como é o caso de Popper, por exemplo. O que, segundo nossa interpretação do
argumento do milagre, somente o realismo científico explica é como uma
atividade dependente de uma complexa dinâmica interna envolvendo explícita e essencialmente uma realidade
não-observável pode “dar certo” empiricamente.[3]
Ou, em outros termos, como a ciência como um todo, em suas sofisticadas
relações inter-teóricas e com a experiência, seus métodos e sua evolução
histórica, é um empreendimento bem sucedido. Note-se que um dos explananda mais importantes aqui é exatamente
o referido poder de certas teorias científicas adiantarem-se aos fenômenos.
[4] Para uma análise incisiva deste ponto ver
Churchland 1985.