(Publicado em Principia 1(2): 255-69, 1997)

Realismo científico Empirista?[1]

SILVIO SENO CHIBENI

Departamento de Filosofia - Unicamp

chibeni@unicamp.br 

Resumo:

Um dos principais filósofos anti-realistas científicos contemporâneos, Bas van Fraassen, assume que sua posição é uma conseqüência do empirismo, entendido como a doutrina  epistemológica segundo a qual o conhecimento provém da experiência. Na literatura recente acerca do realismo científico essa tese tem sido aceita de forma não crítica. Freqüentemente a própria distinção entre anti-realismo científico e empirismo não é traçada, tendo-se tornado comum o emprego do termo ‘empirismo’ para designar certas formas de anti-realismo científico. Neste artigo inicialmente propõe-se que, a bem da clareza conceitual, o anti-realismo científico não deve ser confundido com o empirismo. Depois, indica-se que os principais argumentos a favor do realismo científico de fato requerem que se confira valor epistêmico a princípios não empíricos, como o poder ex­plicativo, a simplicidade, a unidade, etc. Ressalta-se, por fim, que embora o reconhecimento desse ponto em um certo sentido apóie a tese de van Fraassen, a sustentação de formas atenuadas de anti-realismo científico que, a exemplo de seu próprio empirismo construtivo, retêm o realismo quanto aos objetos materiais ordinários, também depende do uso epistêmico de tais princípios, pelo menos dentro do referencial epistemológico dos filósofos empiristas modernos.

 

Abstract:

In his influential criticism of scientific realism, Bas van Fraassen assumes that this doctrine is incompatible with empiricism, according to which the sole ultimate basis of knowledge is experience. This claim has been generally accepted in the contemporary literature in philosophy of science. Thus, the very distinction between anti-scientific realism and empiricism is often forgotten, the term ‘empiricism’ being now widely used to designate a range of anti-realist positions, such as van Fraassen’s “constructive empiricism”. In this paper it is argued, first, that empiricism, in the traditional and proper sense of the word, is a thesis about the problem of the foundations of knowledge, and should therefore be clearly distinguished from anti-realism, which concerns the issue of the extension of knowledge. It is then conceded that the main arguments for scientific realism do indeed require that extra-empirical characteristics of scientific theories, such as simplicity and explanatory power, should be ascribed epistemic weight. Although this point lends support to van Fraassen’s claim, it is indicated here that his constructive empiricism is threatened by the same kind of epistemological objections which he raises against his opponents. Like some other scientific anti-realists, van Fraassen avowedly embraces realism concerning ordinary material objects; but it is not clear that this form of realism remains tenable when explanatory power, simplicity, etc. are regarded as merely pragmatic, non-epistemic virtues.

 

Palavras-chaves: empirismo, realismo científico, van Fraassen

 

1. Empirismo e racionalismo

Tradicionalmente, no estudo do conhecimento humano em geral distinguem-se dois pro­blemas: um relativo às suas fontes e outro que diz respeito à sua extensão. A investigação do segundo problema naturalmente pressupõe algum posicionamento quanto ao primeiro. Não é claro, contudo, que uma solução do problema das fontes do conhecimento conduza automaticamente a uma resposta unívoca para a questão da extensão ou limites do conhe­cimento. Assim é, por exemplo, que no Ensaio sobre o Entendimento Humano Locke examina de modo explícito e detalhado a extensão do conhecimento após, e mesmo após, haver estabelecido sua teoria acerca das fontes do conhecimento.

Utilizamos propositadamente a expressão ‘fontes do conhecimento’, embora sa­bendo que o leitor poderá identificá-la como ambígua. Afinal, Kant distinguiu a questão da fundamentação do co­nhecimento daquela relativa à sua origem ou “começo”. Anteriormente a Kant, porém, os epistemólogos não estabeleciam de forma clara essa distinção, e a investigação de como o conhecimento “começa”, se adquire, se origina, era também entendida como se dirigindo à questão dos seus fundamentos, ou justificação. Embora a tradição filosófica tenha reco­nhecido a conveniência de se traçar a distinção, não acreditamos que se trate de um ponto que dispense ulteriores exames críticos. No presente trabalho, todavia, nada dependerá de forma essencial da posição que se adote quanto a isso, e continuaremos falando em fontes do conhecimento, em sen­tido bastante amplo.

É à questão das fontes do conhecimento assim entendida que o empirismo diz respeito. Trata-se da tese epistemológica segundo a qual a fonte última do conhecimento é a experiência (Locke, Berkeley, Hume). Em oposição a ela, o racionalismo mantém que é possível obter conheci­mento, ou justificá-lo, independentemente da experiência (Descartes, Leibniz).

Embora quando caracterizados dessa forma geral empirismo e racionalismo digam respeito ao conhecimento de quaisquer domínios, o tema deste trabalho permite que analisemos exclusivamente o conhecimento do mundo físico, sem nos preocuparmos com o co­nhecimento matemático, por exemplo. Além disso, não iremos tratar das posições racionalistas, sem com isso fugirmos ao foco do debate atual sobre o realismo científico. Aliás, o interesse dos epistemólogos que se ocupam das ciência naturais parece ter-se inclinado irreversivelmente para o empirismo depois que teorias consideradas paradigmas de conhecimento a priori, como a geometria euclidiana e a mecânica clássica, cederam lugar a teorias incompatíveis, no processo evolutivo da ciência.

 

2. Realismo e anti-realismo

Percebe-se facilmente que é possível haver divergências entre empiris­tas e, igualmente, entre racionalistas, sobre o que pode ou não ser conhecido acerca do mundo, sobre quais objetos, propriedades e relações caem dentro do escopo da cognição humana. Considerando-se então determinada classe de objetos, há, de modo geral, duas posições epistemológicas possíveis: o realismo, que defende que eles podem em princípio ser co­nhecidos (sua existência, suas propriedades e relações), e o anti-realismo, que os considera inabordáveis por nossas faculdades cognitivas.

Realismo e anti-realismo têm recebido caracterizações e denominações particulares, dependendo da classe de objetos em questão. Assim, por exemplo, o behaviorismo é uma forma de anti-realismo quanto aos estados mentais; o construtivismo uma forma de anti-realismo quanto aos objetos matemáticos; o fenomenalismo, quanto aos objetos materiais ordinários. Neste trabalho discutiremos exclusivamente o conhecimento das en­tidades e processos inobserváveis postulados pelas teorias científicas para predizer e explicar aquilo que se observa. Temos, neste caso, a tese do realismo científico, de acordo com a qual a ciência já determinou a realidade de algumas dessas en­tidades e processos; ou, em formulações mais fracas, que ela se aproxima gradualmente de uma descrição correta da realidade inobservável ou, simplesmente, que tem essa descrição entre seus objetivos.

A negação dessa tese pode ser feita de diversas maneiras, resultando daí formas diferentes de anti-realismo científico. A substituição da concepção clássica, correspondencial, de verdade por concepções como a prag­mática, ou a concepção da verdade como coerência, por exemplo, leva a um anti-realismo bastante radical, de índole relativista. Nas posições instrumentalista e redutivista a noção clássica é em geral preservada, mas as proposições que se referem a coisas inobserváveis são interpretadas de forma não literal. Para o instrumentalismo elas são, na verdade, pseudo-proposições, que não asserem nada sobre o mundo, não passando de instrumentos de cál­culo ou predição que auxiliam a conexão e a estruturação das proposições genuínas, sobre coisas e processos observáveis. Para o redutivismo, aquelas proposições das teorias científicas são proposições genuínas, porém de fato referem-se (indiretamente) apenas ao que é observável, sendo abreviações para proposições mais complexas sobre entidades e processos observáveis.

Boa parte do debate contemporâneo acerca do realismo científico gira em torno do empirismo construtivo, doutrina anti-realista científica proposta por van Fraassen (1980). Segundo esse filósofo, as proposições sobre entes inobserváveis são proposições genuínas e devem ser interpretadas literalmente; porém a deter­minação de seu valor de verdade não constitui objetivo da ciência. “A ciência objetiva a nos fornecer teorias que são empiricamente adequadas; e a aceitação de uma teoria envolve, como crença, apenas que ela é empiricamente adequada” (van Fraassen 1980, p. 12). Trata-se, pois, de uma forma de anti-realismo científico aparentemente mais fraca e plausível do que redutivismo, já que van Fraassen desenvolveu sua posição a partir do reconhecimento da insustentabilidade do projeto redutivista do positivismo lógico. Quanto às relações dessa posição com o instrumentalismo, poderíamos talvez aproveitar uma distinção traçada por Newton-Smith (1981, p. 30), e dizer que o empirismo construtivo é um “instrumentalismo epistemológico”, enquanto que o descrito no parágrafo precedente é “semântico”.

Para as análises a serem desenvolvidas logo mais, é importante observar que van Fraassen compartilha com o realista científico típico de nossos dias não apenas a inter­pretação literal das teorias científicas e a noção clássica de verdade mas também o rea­lismo quanto aos objetos materiais ordinários e o empirismo, tal como caracterizado na primeira seção. Sobre esse último ponto, afirma explicitamente que “identifica o empirismo com a tese epistemológica de que a experiência é a única fonte legítima de informação sobre o mundo” (1985, p. 286).

Todavia, van Fraassen junta-se aos instrumentalistas semânticos e redutivistas ao considerar que o conheci­mento se limita estritamente ao que é diretamente observável. Defende, ademais, que essa tese anti-realista científica é uma conseqüência do empirismo. No mesmo parágrafo em que expressa corretamente a posição empirista, na citação que acabamos de fazer, acrescenta: “Eu diria que a crítica empirista do conhecimento corta todas as bases do realismo científico” (ibid.).

Nessa passagem, van Fraassen está respon­dendo à acusação de Brian Ellis (1985, p. 48) de que seu conceito de empirismo não é o tradi­cional. De fato, o leitor atento de The Scientific Image terá boas razões para con­cordar com Ellis. Já na primeira linha desse livro, por exemplo, o autor afirma que “a oposição entre empirismo e realismo é antiga”, confrontando assim posições que se re­ferem a problemas epistemológicos diferentes. Conforme salientamos no início, o empi­rismo opõe-se, mais propriamente, ao racionalismo, enquanto que ao realismo opõem-se diversos tipos de anti-realismo. Em nenhum lugar, antes de ser pressionado por Ellis, van Fraassen traça uma distinção explícita entre empirismo e anti-realismo científico. Infelizmente, a literatura recente mostra acentuada tendência para confundir essas duas doutrinas. Esteja ou não correta a tese de que o anti-realismo científico decorre do empirismo, a clareza recomenda que elas sejam diferençadas conceitual e terminologicamente. Popper e Carnap, por exemplo, eram ambos empiristas, divergindo, no entanto, quanto aos limites do conhecimento. Para Popper, porém não para os positivistas lógicos, hipóteses acerca da existência e propriedades de entes inobserváveis poderiam ser consideradas veículos de genuíno conhecimento, desde que submetidas a controle experimental.

 

3. Realismo científico empirista?

O vínculo forte proposto por van Fraassen entre empirismo e anti-realismo científico não é trivial, o que já se percebe pela inspeção de algumas de suas conseqüências. Ainda na resposta a Ellis, por exemplo, não podendo negar que Galileo agia como se tivesse adotado uma postura realista, van Fraassen é forçado a afirmar, implausivelmente, que talvez o grande gênio fosse um “empirista que tinha prazer em fazer lances de fé [...] ou então um empirista que não via as implicações de sua própria posição”.

Evidentemente, o fato de Galileo ou qualquer outro cientista haver adotado uma posição realista não pode ser evocado como uma razão filosófica a seu favor. Parece-nos bizarro, no entanto, manter que gênios da ciência com amplo conhecimento filosófico como Galileo e Einstein, por exemplo, tenham sido incapazes de perceber as conseqüências filosóficas de suas próprias posições, e não dispusessem de argumentos ponderáveis para sustentá-las, entregando-se ao irracionalismo puro e simples.

Referindo-nos a essa passagem, queremos sobretudo salientar que, de um modo geral, a tese de van Fraassen obriga-o a introduzir um corte radical entre a metodologia da ciência (que ele admite depender de procedimentos naturais em uma filosofia realista; ver e.g. 1980, pp. 80-83 e 93, e 1985, parte I) e a interpretação epistemológica da ciência (anti-realista, segundo ele). Não apenas as práticas da ciência parecem ricas demais para caberem na magra epistemologia empirista de van Fraassen, mas também nela não há recursos suficientes para tratar a questão-chave da escolha de teorias. Isso conduz van Fraassen a propor a cisão entre crença e aceitação de teorias. Esse tópico exige que examinemos brevemente as motivações e justificações do empirismo construtivo.

O principal argumento de van Fraassen contra o realismo científico é o de que as teorias científicas que baseiam suas previsões e explicações dos fenômenos em supostos mecanismos ina­cessíveis à observação direta são subdeterminadas empiricamente, ou seja, os dados empíricos são por princípio insufi­cientes para determinar o valor de verdade de al­gumas de suas proposições fundamentais. Assim, é possível que duas teorias incom­patíveis em suas proposições acerca do inobservável sejam empiricamente equivalentes, isto é, coincidam no que afirmam a respeito do que é observável. Para manter sua posição, o rea­lista cien­tífico tem de fornecer critérios para a discriminação epistêmica das teorias empiricamente equivalentes, critérios que indiquem qual é a verdadeira, ou qual se aproxima mais da verdade.

Ora, por necessidade, esses critérios não poderão ser empíricos, e tipica­mente envolvem fatores como o poder explicativo, a simplicidade, a unidade, etc. É pre­cisamente nesse ponto que van Fraassen centra sua crítica: o apelo a tais princípios não empíricos (ou “superempíricos”, como às vezes se diz) significaria um rom­pimento com os ideais empiristas tradicionais, introdu­zindo inaceitáveis elementos não objetivos no conheci­mento. O desejo de salvar o credo filosófico empirista é, assim, a motivação básica de van Fraassen, conforme apontou Arthur Fine (1986, p. 167).

Van Fraassen reconhece o papel essencial dos princípios superempíricos na escolha e aceitação de teorias. Em nome da preservação do empirismo, porém, relega-os ao domínio pragmático, negando-lhes qualquer relevância epistêmica, ou seja, não os considera motivos de crença ou indicação de verdade (1980, pp. 87-88). Vejamos esta passagem significativa (1985, p. 286-87):

Suponha, porém, que aceitemos alguns desses critérios propostos e tomemos sua satisfa­ção como razões para crença. Teremos assim identificado algo novo como uma fonte de informa­ção legítima sobre o mundo. E então [...] já não seremos empiristas. Pois aquilo que constitui a melhor explicação disponível [...] depende de fatores tais como que teorias fomos capazes de imaginar, e [...] também de nossos interesses e outros fatores contextuais capazes de conferir conteúdo concreto à noção de ‘melhor explicação’. Essas características dos participantes e de outros aspectos do contexto de descoberta, todas independentes daquilo que a experiência já revelou sobre os fenômenos relevantes, desempenhariam [segundo o realista científico] um papel na formação de nossas expectativas quanto ao futuro. Isso está em conflito direto com a tese empirista de que a experiência é a única fonte legítima [de tais expectativas].

Assim, segundo van Fraassen, a desqualificação epistêmica das virtudes superempíricas de uma teoria se impõe pelo fato de não dizerem respeito às relações da teoria com o mundo, mas com os usuários da teoria, dependendo de fatores históricos, culturais, psicológicos, sociológicos, etc. A esse respeito, já em The Scientific Image podemos ler (p. 88):

Na medida em que forem além da consistência, da adequação empírica e da força empírica, elas [as virtudes] não dizem respeito à relação entre a teoria e o mundo, mas ao uso e à utilidade da teoria. Forne­cem razões para se preferir a teoria independentemente das questões sobre a verdade.

Van Fraassen procura elaborar esse ponto especialmente no caso do poder explica­tivo, desenvolvendo uma teoria pragmática da explicação (1980, cap. 5), na qual o papel das teorias científicas nas explicações vai para um segundo plano, como fornecedoras de conhecimento de fundo, e a ênfase recai nos referidos fatores “contextuais”. A estratégia de van Fraassen aqui é bem calculada, dado que o poder explicativo é, reconhecidamente, o princípio superempírico de maior peso na metodologia científica e na epistemologia realista.

De fato, a defesa positiva do realismo científico tem seu principal ponto de apoio nos argumentos abdutivos, ou seja, aqueles que evocam alguma ligação entre o poder explicativo das teorias e razões para a crença em sua verdade. Os dois argumentos dessa classe mais discutidos na litera­tura são os chamados “argumento da coincidência cósmica”, exposto por Smart, e o “argumento do milagre”, formulado por Putnam.[2] Simplificada­mente, o primeiro argumento é o de que se uma teoria é capaz de explicar uma grande quantidade e variedade de fenômenos é improvável que seja falsa acerca da realidade inobservável que postula. Se as entidades inobserváveis postuladas pela teoria não existissem, e se o que a teoria diz sobre elas não fosse aproximadamente ver­dadeiro, somente uma coincidência de proporções cósmicas poderia explicar seu sucesso empírico, especialmente quando há antecipação de fatos de tipos não levados em conta quando da sua formulação.

Embora também envolva um raciocínio abdutivo, o argumento exposto por Putnam não deve ser confundido com o argu­mento da coincidência cósmica, como freqüentemente ocorre na literatura, pois opera em um nível superior, por assim dizer. Do mesmo modo como Smart alega que a capaci­dade de uma teoria científica explicar certos fenômenos constitui evidência de sua ver­dade, Putnam sustenta (em sua fase realista) que a capacidade de uma teoria filosófica ¾ o realismo científico ¾ explicar o sucesso da ciência fornece evidência de sua verdade. O realismo, diz Punam, “é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre” (1975, p. 73). Embora ambos os argumentos forneçam apoio à mesma tese, o realismo científico, fazem-no de formas diferentes.

Não podemos estender-nos aqui na análise desses argumentos. Por meio de um esclarecimento de seus pressupostos, estrutura e implicações, acreditamos ser possível mostrar que van Fraassen aparentemente não capturou de forma adequada sua real natureza, deixando-os conseguintemente sem resposta efetiva.[3] Se essa tese estiver correta, van Fraassen ficará apenas com a objeção geral de que a inferência abdutiva não merece confiança epistêmica.

Aparentemente chegamos aqui a um ponto terminal da argumentação racional. Os realistas reconhecem os princípios superempíricos como instrumentos epistêmicos, enquanto que van Fraassen e outros anti-realistas admitem apenas o seu papel pragmático, todos com o propósito exclusivo de manter suas posições.

Acreditamos, porém, que o impasse não seja total. Por um lado, o realista haverá de conceder que se sua posição realmente só puder ser mantida por um apelo ao poder explica­tivo, à simplicidade, à unidade, etc., estará, ipso facto ultrapassando as fronteiras de um empirismo estrito, já que não se pode evidentemente pretender que a atribuição dessas características a uma teoria possa ser decidida unicamente com base na experiência. Por outro lado, se o anti-realista científico for, a exemplo de van Fraassen, um realista quanto aos objetos materiais ordinários, terá de justificar esse realismo sem recorrer àqueles princípios, para que sua argumentação contra o realismo científico não fique comprometida.

Ora, essa parece uma tarefa difícil, quando não impossível, pelo menos dentro do referencial empirista dos grandes filósofos do período moderno. Tradicionalmente, na perspectiva empirista assume-se que a base última do conhecimento sobre os corpos são os dados sensoriais (as idéias simples de sensação lockeanas, ou as impressões dos sentidos humeanas). Tais elementos não permitem, por si, a justificação da crença realista na existência do mundo externo, conforme testemu­nham, por exemplo, as razões claramente extra-empíricas que Locke se vê na contingência de apresentar a seu favor (Essay IV xi); ou a sua substituição por uma crença incompatível, no caso de Berkeley; ou ainda a argumentação de Hume contra a possibilidade de sua justificação racional ou empírica. O anti-realista científico empirista estará em apuros se tiver, como Locke, que recorrer a fatores superempíricos para firmar seu rea­lismo sobre os objetos materiais ordinários. (Por exemplo, a hipótese de que há um rato no rodapé ¾ rato e rodapé entendidos de forma realista ¾ pode eventualmente ser a melhor explicação para um certo fluxo de impressões sensoriais, e nessa condição receber nossa crença.)

Parece que van Fraassen de fato encontra-se nessa situação delicada. Embora seja inegável que ele adota uma interpretação realista dos objetos ordinários, e ele próprio o diz em várias passagens, não fornece nenhuma justificação explícita a esse tipo de realismo. Em uma única pas­sagem relevante (1980, p. 72), limita-se a asseverar que está certo de que “dados sensoriais não existem”. Isso poderia insinuar a idéia de um acesso epistêmico mais direto aos objetos materiais ordinários. Porém van Fraassen não propõe explicitamente essa idéia ¾ que o distanciaria, aliás, das raízes clássicas do empirismo, que no embate com o realismo científico diz querer preservar. Reconhece, todavia, que “ao endossar um simples juízo perceptual”, como o de que há um rato-realista no rodapé-rea­lista, já está “arriscando o pescoço” (ibid.). Ora, como entender tal afirmação dentro de um possível realismo direto? Por que seria arriscado manter, na presença de certas percepções, que há um rato no rodapé, senão porque a existência realista de tal objeto é inferida a partir dessas percepções por argumentos que não garantem, como os argumentos dedutivos, a verdade da conclusão?  E como evidentemente não se trata de argumentos indutivos, haveria de ser por meio de argumentos abdutivos.

Diante disso, parece lícito concluir, até prova em contrário, que mesmo van Fraassen tem de fazer uso epistêmico do poder explicativo e outras “virtudes” que ele pretende meramente pragmáticas, violando assim, ele também, seu acalentado credo empirista.

Em sua História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell comentou que Locke só conseguiu apresen­tar uma filosofia empirista razoável ao preço de admitir inconsistências, enquanto que Hume, menos tolerante, levou o empirismo às últimas conseqüências, tornando-o desse modo implausível (pp. 612-13 e 659). Talvez as considerações deste artigo mostrem que há uma certa dose de verdade nessa apreciação. O ceticismo seletivo de van Fraassen, que exclui do domínio das crenças racionalmente fundamentadas a crença nas entidades inobserváveis da ciência, mas não aquelas referentes aos objetos do dia-a-dia, não parece sustentável.[4] O empirismo estrito que procura defender aponta para um estéril fenomenalismo, que ele no entanto se recusa a aceitar. A opção poderia ser o abrandamento do empirismo, com o reconhecimento do valor epistêmico de certos fatores extra-empíricos e do caráter falível da cognição. Nesse caso, o conhecimento humano alcançaria tanto objetos e processos inobserváveis quanto observáveis.

 

 

Referências

 

CHIBENI, S. S. Descartes e o realismo científico. Reflexão, n. 57, p. 35-53, 1993.

¾¾¾. A inferência abdutiva e o realismo científico. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, 6 (1): 45-73, 1996.

CHURCHLAND, P.M. & HOOKER, C.A. (eds.)  Images of Science. Chicago, University of Chicago Press, 1985.

CHURCHLAND, P. M.  The ontological status of observables: In praise of superempirical virtues. In: Churchland & Hooker 1985, pp. 35-47.

ELLIS, B. What science aims to do. In: Churchland & Hooker 1985, pp. 48-74.

FINE, A. Unnatural attitudes: Realist and instrumentalist attachments to science. Mind, 45 (378): 149-79, 1986.

LOCKE, J. An Essay concerning Human Undestanding. Edited with an Introduction, Critical Apparatus and Glossary by P.H. Nidditch. Oxford, Clarendon Press, 1975.

MUSGRAVE, A.  Realism versus constructive empiricism. In: Churchland & Hooker 1985, p. 197-221.

NEWTON-SMITH, W. The Rationality of Science. London, Routledge and Kegan Paul, 1981.

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¾¾¾. Meaning and the Moral Sciences. Boston, Routledge & Kegan Paul, 1978.

¾¾¾. Reason, Truth and History. Cambridge, Cambridge University Press, 1981.

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SMART, J.J.C.  Between Science and Philosophy. New York, Ramdom House, 1968.

VAN FRAASSEN, B. C.  The Scientific Image. Oxford, Clarendon Press, 1980.

¾¾¾. Empiricism in the philosophy of science. In: Churchland & Hooker 1985, pp. 245-308. 1985.

 



[1] Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de Filosofia, promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) em Águas de Lindóia, de 19 a 24 de outubro de 1996.

[2] Smart 1968, Putnam 1975 e 1978. Chibeni 1993 salienta que o argumento da coincidência cósmica já se encontrava expresso claramente nos Princípios da Filosofia de Descartes.

[3] Consulte-se, a esse respeito, Chibeni 1996. De forma muito simplificada, a linha de argumento aí desenvolvida é a seguinte. Van Fraassen interpreta o argumento da coincidência cósmica como envolvendo a exigência de que toda regu­laridade na natureza seja explicada. Segundo van Fraassen, poderíamos blo­quear a defesa do realismo imitando os nominalistas medievais e aceitando as regularidades naturais como fatos brutos, que não requerem explicação. Essa interpretação não nos parece correta. Como as situações de “coincidência cósmica” evidenciam, o raciocínio abdutivo se aplica quando a explicação já está disponível. Ou seja, uma vez que alguém forneça uma teoria que dê conta de maneira natural de uma multiplicidade de fenômenos, somos convidados a acreditar que é verdadeira, se não for puramente ad hoc. Associar ao realismo a exigên­cia ilimitada de explicação é torná-lo alvo fácil demais de ser atingido, pois essa exigência naturalmente conduz a um regresso infinito de teorias explicativas. Quanto ao argumento de Putnam, um dos problemas de sua interpretação por van Fraassen é que ele o entende como se dirigindo à questão de por que somente as boas teorias sobrevivem na ciência. Conforme observa Musgrave (1985, p. 210), a explicação “darwiniana” desse fato oferecida por van Fraassen pode ser aceita também por realistas científicos, como é o caso de Popper, por exemplo. O que, segundo nossa interpretação do argumento do milagre, somente o realismo científico explica é como uma atividade dependente de uma complexa dinâmica interna envolvendo explícita e essencialmente uma realidade não-observável pode “dar certo” empiricamente.[3] Ou, em outros ter­mos, como a ciência como um todo, em suas sofisticadas relações inter-teóricas e com a experiência, seus métodos e sua evolução histórica, é um empreendi­mento bem sucedido. Note-se que um dos explananda mais importantes aqui é exata­mente o referido poder de certas teorias científicas adiantarem-se aos fenômenos.

[4] Para uma análise incisiva deste ponto ver Churchland 1985.