Uma Investigação sobre o Entendimento Humano

David Hume

Resumo com anotações [1]

Ó Silvio S. Chibeni - 2004

Índice das seções:

  1. Das diferentes espécies de filosofia
  2. Da origem das idéias
  3. Da associação de idéias
  4. Duvidas céticas sobre as operações do entendimento
  5. Solução cética dessas dúvidas
  6. Da probabilidade
  7. Da idéia de conexão necessária
  8. Da liberdade e necessidade
  9. Da razão dos animais
  10. Dos milagres
  11. De uma providência particular e de um estado futuro
  12. Da filosofia cética ou acadêmica

Notas de rodapé

 

1. Das diferentes espécies de filosofia. [volta ao índice]

[1] Nesta seção Hume traça a distinção entre duas espécies de filosofia, uma fácil e descomplicada e outra acurada e profunda, argumentado a favor desta última. A primeira enfoca o homem como um ser voltado para a ação, e procura influenciar sua conduta pela exposição de exemplos de virtude e vício, utilizando recursos poéticos e imaginativos, que tocam o seu coração e sentimento.

[2] O segundo tipo de filosofia enfoca o homem como um ser eminentemente racional, esforçando-se para formar o seu entendimento. Isso faz pelo estudo criterioso da natureza humana, na busca de conhecimento preciso dos modos de operação da mente, dos princípios que regulam o entendimento e as paixões, e daqueles que forneçam à moral uma fundamentação objetiva.

[3-7] Após considerar que a filosofia simples contará sempre com a preferência da maioria da humanidade, sendo aquela que efetivamente tem assegurado fama duradoura aos seus expoentes, Hume apresenta alguns argumentos em defesa da filosofia complexa e precisa, visto que tem sido não apenas desfavorecida mas também condenada e desprezada:

[8-9] A filosofia acurada e abstrata oferece precioso auxílio à simples e humana, conferindo exatidão às suas opiniões e preceitos, contribuindo também para o aperfeiçoamento das artes e ofícios. 

[10] A filosofia profunda atende ao nosso desejo de conhecimento, proporcionando-nos um dos poucos prazeres seguros e inofensivos.

[11-12] Considerando agora a objeção de que a filosofia complexa é fonte inevitável de erro e incerteza, Hume traça interessante distinção entre duas espécies de “metafísica”: Uma verdadeira e outra falsa e adulterada, que engloba os sistemas racionalistas tradicionais e as “superstições”. O terceiro argumento a favor da filosofia profunda é exatamente o de que permite, quando bem conduzida, desmascarar esses redutos da ignorância e do obscurantismo.

[13-14] A filosofia profunda tem, ademais, vantagens positivas que decorrem de um exame minucioso dos poderes e faculdades da natureza humana: a) possibilita estabelecer uma “geografia mental, ou delineamento das diferentes partes e poderes da mente”, que, como Hume diz explicitamente no Abstract, deve estar na base de quase todas as demais ciências;

[15] b) põe-nos na rota de progressos ulteriores na compreensão da mente, pela redução sempre maior de suas operações e princípios a princípios ainda mais gerais, a exemplo do que já vinha se dando na filosofia natural.

[16] Quanto a esses raciocínios sobre a natureza humana parecerem abstratos e difíceis, isso não indica que sejam falsos. Quaisquer sejam os esforços que requeiram, valerá a pena examiná-los, não apenas por prazer mas por sua utilidade no incremento de nosso conhecimento.

[17] Por fim, Hume expressa a esperança de que as duas espécies de filosofia possam se unir, especialmente no objetivo comum de solapar as bases de uma má filosofia, subserviente à superstição, e favorecedora de erros e absurdos. 

 

2. Da origem das idéias [volta ao índice]

[1-3] Inicialmente, Hume divide todas as nossas percepções em impressões, que são as percepções fortes e vívidas, e idéias (ou pensamentos), que são as percepções mais fracas.

[4-5] Nota, em seguida, que embora nada pareça mais ilimitado do que o pensamento, seu poder criador está restrito à composição, transposição, aumento e diminuição dos “materiais” fornecidos pela experiência (“externa” ou “interna”). Esses materiais são as impressões. Propõe, assim, como princípio fundamental, que todas as idéias são cópias de impressões. Para “prová-lo”, fornece dois argumentos:

[6] 1o. Quando submetemos nossas idéias a análise, vemos que sempre se compõem de idéias simples que foram copiadas de uma impressão precedente. (Isso dá conta dos aparentes contra-exemplos de idéias complexas que, como a de uma montanha de ouro, não foram copiadas prontas de nenhuma impressão.) Hume transfere ao adversário a tarefa de encontrar uma idéia cujos elementos não sejam provenientes de impressões.

[7] 2o. Quando, devido a um defeito do órgão sensorial ou à falta do objeto do sentido, alguém nunca teve determinada impressão, verifica-se que também não possui a idéia correspondente.

[8] Hume reconhece que pode haver uma exceção ao princípio geral proposto: a formação, pela imaginação, da idéia de determinada tonalidade de azul (no exemplo considerado) a partir da impressão da série de todas as demais tonalidades dessa cor. Acredita, no entanto, que essa exceção seja tão singular que não compromete a utilidade geral do princípio.

[9] Conclui a seção indicando brevemente um uso importante de seu princípio: ele permite identificar as palavras sem significado distinto, responsáveis por grande parte das disputas em filosofia. Quando suspeitarmos que determinada palavra inclui-se nessa classe, devemos nos inquirir acerca de que impressão poderia ter dado origem à idéia supostamente designada pela palavra. Não sendo possível encontrar nenhuma tal impressão, a suspeita se confirmará.

Esse assunto no Tratado

No Tratado da Natureza Humana, 1.1.1, Hume analisa a origem das idéias de forma mais detalhada e rigorosa do que o faz na Investigação:

[1] Enfatiza que a distinção entre idéias e impressões é exclusivamente de grau de vivacidade (ver também T 1.1.7.5). 

[2] Divide todas as percepções (idéias e impressões) em simples e complexas, definindo as primeiras como aquelas que “não admitem distinção ou separação” de partes (critério analítico de Locke).

[3] Quanto às qualidades e relações das percepções, Hume trata inicialmente da relação de “semelhança” que há entre impressões e idéias.

[4] Observa que não é universalmente verdadeiro que idéias e impressões sempre se correspondam por semelhança exata, pois há idéias complexas (e.g. a de Nova Jerusalém) que não correspondem a nenhuma impressão, e impressões complexas (e.g. a de Paris) que não são representadas precisamente por nenhuma idéia.

[5] No entanto, entre as idéias e impressões simples sempre há uma relação de correspondência por semelhança exata. Hume desafia o adversário a apontar contra-exemplos.

[6] Em seguida, procura estabelecer que, além de se corresponderem, idéias e impressões simples estão ligadas por uma relação causal.

[7] “Todas as nossas idéias simples são, em sua primeira aparição, derivadas de impressões simples que lhes correspondem, e que representam de forma exata.” Os argumentos para esse princípio geral são dois:

[8] 1o. Há uma “conjunção constante” de idéias e impressões simples. Isso mostra que há “uma grande conexão” entre elas, e que “a existência de umas tem considerável influência sobre a existência das outras”. Notando agora a ordem temporal em que aparecem pela primeira vez na mente, conclui que “as nossas impressões são as causas de nossas idéias”, e não o contrário.

[9] 2o. O segundo argumento é aquele que reaparecerá na Investigação: faltando a alguém uma determinada impressão, por defeito do órgão do sentido ou por ausência de seu objeto, também lhe faltará a idéia correspondente.

[10] Quanto à universalidade do princípio de que as idéias simples provêm de impressões simples, Hume aponta duas restrições: 1) a da tonalidade de azul (ver acima);

[11] 2) a possibilidade de formação de “idéias secundárias”, ou seja, idéias que foram copiadas diretamente de outras idéias, e apenas indiretamente de impressões. É por isso que ao formular o princípio Hume tem o cuidado de acrescentar as palavras “... em sua primeira aparição”.

[12] Hume conclui a seção dizendo que o princípio exposto no parágrafo 7 “é o primeiro princípio que estabelece na ciência da natureza humana”, e que expressa, em palavras diferentes, o debatido princípio da inexistência de idéias inatas.

 

3. Da associação de idéias. [volta ao índice]

[1] Hume assevera que há certos princípios segundo os quais as idéias, “em sua aparição na memória ou imaginação, introduzem-se umas às outras com certo grau de método e regularidade”. 

[2-3] Esses princípios são apenas três: semelhança (“um retrato leva naturalmente nossos pensamentos para o original”), contigüidade em tempo ou lugar (“a menção de um cômodo em um edifício introduz naturalmente uma investigação ou discurso sobre os demais cômodos”) e causa ou efeito (“se pensamos em um ferimento, dificilmente podemos deixar de refletir sobre dor que o segue”). Para nos convencermos de que essa enumeração dos princípios de associação de idéias é completa não há outra forma, diz Hume, senão percorrer diversos casos de idéias associadas.

[4-18] Hume recorre aqui à literatura e às narrativas históricas, como fornecedoras de numerosos exemplos do uso dos princípios de associação de idéias.

Esse assunto no Tratado

No Tratado, 1.1.4, o assunto das associações de idéias é analisado de forma diferente, com variações conceituais e com mais detalhes. Cumpre destacar os seguintes pontos:

a) Hume esclarece que o princípio que une as idéias na imaginação “não deve ser considerado uma conexão inseparável”, pois que ela tem sempre o poder de separar e unir idéias livremente, mas apenas “uma força suave, que comumente prevalece” [1].

b) Embora os efeitos dos princípios de associação de idéias sejam patentes, Hume diz que suas causas são “em grande parte desconhecidas, e têm de ser atribuídas às qualidades originais da natureza humana, que não pretendo explicar.” [6]

c) O objeto de estudo é mais restrito: a associação de idéias simples na imaginação, e não de idéias quaisquer na imaginação e memória, como na Investigação. Veja-se, por exemplo, esta passagem do penúltimo parágrafo: “Esses são, portanto, os princípios de união ou coesão de nossas idéias simples, que na imaginação ocupam o lugar da conexão inseparável pela qual são unidas em nossa memória.” [6; grifo meu]

 

4. Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento. [volta ao índice]

Parte 1

[1] Todos os objetos da razão ou investigação humana podem ser divididos em relações de idéias e questões de fato. Proposições sobre relações de idéias são aquelas cuja verdade pode ser determinada por intuição ou demonstração, como por exemplo o princípio de que o todo é maior do que as partes, ou o teorema de Pitágoras. “Proposições desse tipo podem ser descobertas pela mera operação do pensamento, sem dependência daquilo que exista em algum lugar do Universo.” 

[2] Já as proposições sobre questões de fato não são intuitiva ou demonstrativamente certas, sendo conhecidas apenas por observação. Elas nunca são necessárias, e suas negações são concebíveis e possíveis. Que Napoleão foi derrotado na batalha de Waterloo é uma questão de fato; expressa o que de fato aconteceu no mundo; mas o mundo poderia ser diferente, de modo que tal proposição fosse falsa.

[3] Hume dedica-se a examinar como é possível, se é que é possível, obter conhecimento acerca de questões de fato que não caem, nem caíram, sob nossa observação; ou, usando suas palavras, como podemos fundamentar os nossos “raciocínios” sobre questões de fato. 

[4] A primeira afirmação feita por Hume é que todos os raciocínios ou inferências sobre questões de fato “parecem fundar-se na relação de causa e efeito.” Inferiremos, por exemplo, que numa ilha presentemente deserta já estiveram seres humanos (causa) se nela acharmos um relógio ou algum outro objeto artificial (efeito); ou que um pedaço de cera se fundirá (efeito) ao ser aproximado do fogo (causa).

[5] É importante pois investigar como obtemos o conhecimento de causas e efeitos.

[6] A segunda asserção de Hume é que o conhecimento da relação de causa e efeito “não é, em nenhum caso, alcançado por raciocínios a priori, mas provém inteiramente da experiência, quando encontramos que objetos particulares quaisquer apresentam uma conjunção constante uns com os outros.” Defrontando-nos com um objeto ou evento, jamais poderemos, a partir de suas “qualidades sensíveis”, inferir racionalmente quais outros objetos ou eventos são suas causas, ou serão seus efeitos. Um homem perfeito quanto às suas faculdades cognitivas, mas sem nenhuma experiência (como teria sido o caso de Adão, logo ao ser criado), não poderia inferir que a água tem o poder causal de sufocar ou o fogo de queimar. O mesmo vale para qualquer outra inferência acerca de existência ou questão de fato.

[7] Que causas e efeitos não podem ser descobertos pela razão, mas unicamente pela experiência, é mais fácil de admitir no caso de objetos que nos são inteiramente desconhecidos (as duas placas de mármore polido), que são pouco comuns (pólvora, ímã), ou cujos efeitos aparentemente dependem de uma estrutura muito complexa (o leite e o pão, com relação ao poder nutricional em homens e felinos).

[8] Quando, porém, se trata de objetos familiares a nós desde o nosso nascimento, que têm analogia com o curso comum da natureza ou que se supõe depender de qualidades simples, somos propensos a imaginar que podemos descobrir seus efeitos pela mera operação da razão (ex. comunicação de movimento por impacto). Isso porém é uma ilusão, devida à influência do costume.

[9] Mas para nos convencer que o princípio exposto no parágrafo 6 não tem nenhuma exceção basta atentarmos no seguinte: Se tivermos de nos pronunciar sobre o que resultará de um objeto (seus efeitos) sem consultar a experiência passada nosso único recurso será inventar ou imaginar algo; essa invenção é inteiramente arbitrária.

[10] E se o efeito tem de ser arbitrariamente inventado, o mesmo vale, e com mais razão ainda, para o suposto vínculo ou conexão entre a causa e o efeito. Mesmo quando nossa invenção do efeito por acaso se mostra correta, nada nos impede de conceber que um outro efeito poderia ter ocorrido. Portanto a ligação entre a causa e o efeito não é de natureza necessária.

[11] Resumo de 9 e 10.

[12] Hume extrai disso tudo uma moral: nenhum filósofo que seja racional e modesto deve alimentar a pretensão de conhecer as causas últimas das operações dos corpos. O máximo alcançável pela razão humana é a redução dos princípios da ação dos corpos a algumas causas mais simples e gerais (elasticidade, gravidade, coesão de partes, comunicação de movimento por impulso).

[13] A geometria não pode suprir nossas limitações quanto a isso. O mesmo vale para a “matemática mista” em geral, que apenas auxilia na aplicação das leis naturais descobertas empiricamente.

Parte 2

[14] Todas as inferências sobre causas e efeitos sendo, assim, inteiramente dependentes da experiência, o passo seguinte é investigar “qual é o fundamento de todas as nossas conclusões da experiência”, ou seja, como podemos justificar as inferências feitas a partir da experiência. Tendo, por exemplo, observado 21 vezes que a cera se fundiu ao ser aproximada da chama, concluímos que ela se derreterá de novo na vigésima segunda ocasião, ou mesmo que se derreterá sempre. Qual a natureza dessa conclusão?

[15] A resposta de Hume tem uma parte negativa e outra positiva. Nesta seção limita-se a afirmar, negativamente, que “mesmo após havermos tido a experiência das operações de causa e efeito [pela observação da conjunção constante dos fenômenos], nossas conclusões a partir dessa experiência não se fundam em raciocínios, ou qualquer processo do entendimento.”

[16] Hume começa notando a grande limitação de nosso conhecimento dos “segredos” da Natureza. Ela nos fornece “apenas o conhecimento de umas poucas qualidades superficiais dos objetos, ocultando-nos os poderes e princípios dos quais a influência desses objetos depende inteiramente.” “Não obstante essa ignorância dos poderes e princípios naturais, sempre presumimos, quando vemos qualidades sensíveis semelhantes, que terão poderes secretos semelhantes, e esperamos que serão seguidas de efeitos semelhantes aos que já experimentamos... Agora este é um processo da mente ou pensamento cujos fundamentos gostaria muito de conhecer. Todos concordam que não há conexão conhecida entre as qualidades sensíveis e os poderes secretos; e que, por conseqüência, a mente não é levada a formar conclusões acerca de sua conjunção constante e regular a partir de nada que se saiba de sua natureza. Quanto à experiência passada, pode-se conceder que dá informação direta e certa apenas e precisamente dos objetos e períodos de tempo que caíram sob sua cognição: Mas por que tal experiência deva se estender a tempos futuros e outros objetos que, por tudo que sabemos, podem ser similares [aos outros] apenas na aparência, essa a questão central em que insistiria.” Agora essa extensão da experiência de uma conjunção constante de fenômenos para casos não observados “não é intuitiva”; é necessário um “meio”, ou seja, uma demonstração. Mas Hume confessa que esse meio lhe escapa completamente. 

[17] Para estabelecer sua tese principal, de que de fato esse meio não existe, ou, mais geralmente, que não há nenhum raciocínio ou processo do entendimento envolvido nessa transição, Hume procura armar um dilema.

[18] Conforme já mostrou, todos os raciocínios podem ser divididos em “demonstrativos” (sobre relações de idéias) e “morais” ou “prováveis” (sobre questões de fato). Agora é evidente que no caso presente não há argumentos demonstrativos, pois não há nenhuma contradição na suposição de que o curso da Natureza possa se alterar, invalidando a extrapolação da experiência presente e passada. 

[19] Por outro lado, também não intervém aqui nenhum argumento “moral” ou “provável”. Como Hume já havia mostrado, todos os argumentos desse tipo, i.e., sobre questões de fato, baseiam-se na relação de causa e efeito, cujo conhecimento, a seu turno, depende inteiramente da experiência. Alegar, pois, que as “conclusões” ou inferências a partir da experiência se justificam por argumentos “morais” equivale a alegar que elas se baseiam em si próprias. Isso é circular, e portanto vazio; assume-se como certo o próprio ponto em questão.

[20] Hume esclarece que não está pondo em dúvida a autoridade da experiência; somente um louco o faria. O que pretende é, como filósofo, “examinar o princípio da natureza humana capaz de dar essa poderosa autoridade à experiência”. Para reforçar o ponto já exposto, considera agora que se se tratasse de uma conclusão formada pela razão, seria tirada de forma perfeita já no primeiro caso.

[21] Após desenvolver mais esse argumento, Hume retoma o argumento sobre a petição de princípio: “É impossível, portanto, que argumentos a partir da experiência provem [a] semelhança do futuro com o passado, visto que todos esses argumentos fundam-se [justamente] na suposição dessa semelhança.”

[22] Poderia parecer arrogância alguém concluir que não existe um certo raciocínio porque não foi capaz de encontrá-lo.

[23] No presente caso, porém, Hume pondera que, se as inferências sobre questões de fato fossem feitas por algum raciocínio, ele deveria ser muito simples, pois que crianças e mesmo animais são capazes de aprender da experiência. Mas então o raciocínio não poderia escapar às mais cuidadosas buscas filosóficas, como de fato ocorre.

 

5. Da solução cética dessas dúvidas. [volta ao índice]

Parte 1

[1] A única filosofia que não favorece a exacerbação de nossas tendências e preconceitos é a acadêmica ou cética. Nenhuma é mais contrária à nossa indolência, arrogância, presunção e credulidade.

[2] Não se deve temer que essa filosofia perturbe nossas ações, já que a Natureza sempre prevalecerá sobre quaisquer raciocínios abstratos. Assim, embora em nossas inferências experimentais haja, como já foi visto, um passo que a mente dá sem o apoio de nenhum raciocínio ou processo do entendimento, isso não põe em risco tais inferências, “das quais depende quase todo o nosso conhecimento. Se a mente não é levada a efetuar esse passo por argumentos, tem de ser induzida por algum princípio de igual peso e autoridade.”

[3] Uma pessoa completamente sem experiência verificaria, se chegasse ao mundo repentinamente, apenas uma sucessão contínua de objetos. Não formaria de imediato, apenas pelo raciocínio, a idéia de causa e efeito, e nem mesmo inferiria a ocorrência de um evento a partir da aparição de outro.

[4] Quando passasse, no entanto, a observar a conjunção regular de objetos ou eventos, começaria a fazer essas inferências, mas nenhum processo de raciocínio lhe daria conhecimento do “poder secreto pelo qual um objeto produz o outro”. Apesar disso, a pessoa estaria “determinada” a fazer tais inferências, por algum outro princípio.

[5] Esse princípio é o “Costume ou Hábito”. Dizendo isso, Hume não pretende haver dado a causa última da propensão que temos de extrapolar a experiência passada; apenas indica um importante princípio da natureza humana, bem conhecido por seus efeitos. Hume classifica essa sua proposta como uma “hipótese”, capaz de explicar, entre outras coisas, por que as inferências causais não são extraídas a partir de um único caso, mas apenas de uma multiplicidade de casos semelhantes. (Ver porém T 1.3.8.14 para uma qualificação importante dessa afirmação.)

[6] “O costume é, pois, o grande guia da vida humana. É apenas ele que torna a nossa experiência útil para nós, e nos faz esperar, no futuro, uma seqüência de eventos similar às que nos apareceram no passado. Sem a influência do costume seríamos totalmente ignorantes acerca de toda questão de fato que se estenda além do que está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Nunca saberíamos como ajustar os meios para os fins, ou empregar nossos poderes naturais na produção de qualquer efeito.”

[7] No entanto, para que o hábito produza as inferências causais algum fato deve estar presente aos sentidos.

[8] Após resumir a teoria exposta, Hume observa que a operação da mente que nos leva, a partir do hábito, a crer em certas questões de fato é “uma espécie de instinto natural, que nenhum raciocínio ou processo do pensamento ou entendimento é capaz quer de produzir, quer de evitar.” Esse “instinto” é comparado às paixões.

[9] Embora as investigações filosóficas desse assunto pudessem, segundo ele, parar neste ponto, ele anuncia que prosseguirá detalhando sua teoria acerca da natureza da crença, recorrendo a algumas analogias.

Parte 2

[10] Quanto à natureza dessa crença que resulta da conjunção costumeira de objetos, Hume nota, inicialmente, que a diferença entre algo que simplesmente imaginamos e algo em que acreditamos não pode residir em nenhuma idéia particular que anexemos às concepções que pedem o nosso assentimento. Se assim fosse, dada a autoridade que a mente tem sobre as idéias, ela poderia acreditar no que quisesse, anexando voluntariamente essa suposta idéia a qualquer ficção.

[11] “Segue-se portanto que a diferença entre ficção e crença encontra-se em algum sentimento ou sensação [sentiment or feeling] que se anexa à segunda mas não à primeira, e que não depende da vontade nem se pode convocar quando se queira. Como todo outro sentimento [sentiment], deve ser provocado pela Natureza, e provir da situação particular em que a mente se encontra em uma determinada ocasião. Sempre que um objeto qualquer é apresentado à memória ou aos sentidos, imediatamente leva, pela força do hábito, a imaginação a conceber aquele objeto que a ele está usualmente associado, e essa concepção é acompanhada de uma sensação ou sentimento que difere dos devaneios soltos da fantasia. Nisso consiste toda a natureza da crença.”

[12] “Afirmo, portanto, que a crença não é nada mais que uma concepção de um objeto mais vívida, vigorosa, enérgica, firme, constante do que a imaginação por si só jamais é capaz de atingir.”  A crença “é o ato da mente que torna as realidades, ou o que é tomado como tal, mais presentes para nós do que as ficções, fazendo-as pesar mais no pensamento, e dando-lhes uma influência superior sobre as paixões e imaginação.”

[13] Após recapitular o que estabeleceu sobre a natureza da crença, Hume diz que vai procurar outras operações da mente análogas à que produz as crenças causais, a fim de enquadrar esse fenômeno sob princípios ainda mais gerais.

[14] Em particular, Hume investiga se os princípios de associação de idéias, por semelhança, contigüidade e causa e efeito, são capazes de levar a mente a uma concepção mais forte e estável dos objetos relacionados, como ocorre na relação de causa e efeito. (Note-se que ao colocar a questão Hume inadvertidamente inclui essa relação, para a qual a questão já havia sido respondida. Essa generalização será corrigida nos exemplos; ver parágrafos 19 e 20.)

[15] O primeiro “experimento” evocado por Hume refere-se à semelhança. Considera inicialmente o caso da semelhança de um retrato com a pessoa retratada.

[16] Depois, toma o exemplo das cerimônias da religião católica romana, destinadas a avivar, por semelhança, a crença nos personagens e eventos que integram esse tipo de “superstição”.

[17] O segundo experimento é referente à contigüidade: a visão das coisas que ficam perto de sua casa aviva a idéia dessa casa.

[18-19] Nestes parágrafos Hume considera o caso da causação, e dá os exemplos das relíquias dos santos e do filho de um pai ausente. Na verdade, a consideração desse caso é redundante, visto que já havia sido tratado detalhadamente antes, e estava agora justamente vendo se encontrava analogias com ele, para reforçar a sua teoria sobre a crença causal. Essa aparente confusão prossegue na afirmação que abre o parágrafo seguinte.

[20] Hume nota que nos fenômenos considerados nos parágrafos precedentes “a crença no objeto correlativo está sempre pressuposta; sem ela, a relação não pode ter nenhum efeito.” Ora, isso não pode valer para o caso da relação causal. Houve pois aqui uma afirmação demasiadamente generalizante por parte de Hume. O que disse deve ser entendido somente com relação às relações de semelhança e contigüidade, como o restante do parágrafo, aliás, indica. A tese de Hume é de que essas duas relações por si sós não constituem fonte de crença, embora a vivacidade das idéias delas decorrente seja “de natureza similar, e [surja] de causas similares” às daquela que deriva da experiência da conjunção constante de eventos. (Nas seções 8 e 9 da parte 3 do livro 1 do Tratado Hume explica melhor por que a “a crença surge apenas da causação”, embora a semelhança e a contigüidade auxiliem a causação no avivamento da idéia relacionada; quando separadas dela, porém, essas relações têm “uma influência fraca e incerta”.)

[21] Hume conclui a seção expondo dois pontos que só parecem fazer sentido dentro de um referencial realista. Primeiro, dada a usual correção de nossas extensões da experiência, afirma que existe “uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da Natureza e a sucessão de nossas idéias; e, embora desconheçamos inteiramente os poderes e forças que governam o primeiro, constatamos que nossos pensamentos e concepções ainda assim prosseguiram na mesma direção das demais obras da Natureza. O hábito é o princípio pelo qual veio a se produzir essa correspondência, tão necessária à sobrevivência de nossa espécie e ao acerto de nossa conduta, em todas as situações e ocorrências da vida humana.”

[22] Por fim, quanto ao fato de as inferências experimentais não se apoiarem em processos do entendimento, observa que é mesmo “mais de acordo com a costumeira sabedoria da Natureza que uma atividade mental tão necessária seja garantida por algum instinto ou tendência mecânica, capaz de mostrar-se infalível em suas operações, de manifestar-se desde o primeiro aparecimento de vida e pensamento, e de conduzir-se independentemente de todas as laboriosas deduções do entendimento.” Hume considera esse fato uma comprovação de sua teoria.

 

6. Da probabilidade. [volta ao índice]

Nesta seção Hume aplica sua teoria sobre a natureza da crença aos casos em que a experiência da conjunção de objetos ou eventos não é constante. Neles, a vivacidade que o hábito comunica à idéia associada à impressão presente será menor e, por conseqüência, também será menor a crença em seu objeto. Tentaremos expressar em outras palavras o que Hume diz sobre isso.

[1-3] Quando uma causa aparentemente tem mais do que um efeito, ou seja, quando o objeto C foi observado seguir-se ora por E, ora por E’, a presente observação de C levará a mente a crer na ocorrência de E com uma crença proporcional à freqüência relativa com que se observou no passado C seguir-se de E (o mesmo vale para E’, mutatis mutandis). Tal fenômeno é ilustrado por Hume com o caso do lançamento de um dado que possui uma mesma marca em quatro de seus lados e outra marca nos outros dois. A maior crença na ocorrência da primeira marca explica-se pela convergência de um maior número de “visões” [views] em torno da idéia desse evento. Assim, esperamos com segurança, por uma inferência causal, que um dos seis lados ficará para cima, mas esperamos cada um deles com a mesma crença: a vivacidade é repartida igualmente entre os seis lados. Mas como há quatro lados com uma mesma marca e apenas dois com outra, a crença na ocorrência da primeira será maior do que a crença na ocorrência da segunda. (Poderíamos dizer que a probabilidade da primeira marca é 4/6 e a da segunda 2/6; mas Hume não quantifica essas probabilidades.)

Percebe-se que probabilidades são, para Hume, medidas de nossas crenças; seu conceito de probabilidade é subjetivo. Ele afirma, sem nenhuma justificativa explícita, que o acaso “não existe no mundo”; resulta de nossa ignorância da causa real de certos eventos. [1] Curiosamente, não registra que, segundo a ciência de seu tempo, o lançamento do dado seria uma situação inteiramente determinista.

[4] Considerando agora que o ruibarbo nem sempre purga e que o ópio nem sempre faz dormir, Hume diz que as probabilidades aqui são “probabilidades de causas” (probabilities of causes). [2] Assevera que embora o vulgo creia que se trate de fenômenos aleatórios, os filósofos não atribuem essas irregularidades à Natureza, mas a “causas secretas” nas estruturas particulares das partes das substâncias envolvidas.[3] Mas enquanto tais causas não forem descobertas, no plano epistemológico tudo se passará como se de fato houvesse acaso, ou seja, regulamos nossas crenças da forma descrita acima.[4]

 

7. Da idéia de conexão necessária. [volta ao índice]

Parte 1

[1-2] Hume inicia apontando as vantagens e desvantagens relativas das “ciências matemáticas” e das “ciências morais”. A principal dificuldade das primeiras é a “extensão das inferências” requeridas para que se chegue às conclusões; a das segundas é a “obscuridade das idéias” e a conseqüente “ambigüidade dos termos.”

[3] Dado que nas ciências morais não há idéias “mais obscuras e incertas do que as de poder,  força, energia ou conexão necessária”, Hume tentará nesta seção “fixar, se possível, o significado desses termos”.

[4-5] Após expor novamente a proposta da seção 2, ou seja, esclarecer as idéias pela apresentação das impressões que lhes deram origem, Hume lança-se na busca de impressões das quais poderia derivar a idéia de conexão necessária.

[6-8] A primeira fonte possível dessa idéia são os “objetos externos”. “Quando olhamos para os objetos ao nosso redor e consideramos a operação das causas, jamais somos capazes de identificar, em um único caso singular, qualquer poder ou conexão necessária, qualquer qualidade que ligue o efeito à causa e torne o primeiro uma conseqüência infalível da segunda. Descobrimos apenas que, de fato, o efeito se segue efetivamente à causa. O impulso da primeira bola de bilhar é acompanhado do movimento da segunda, e isto é tudo o que aparece a nossos sentidos externos. [...] Jamais podemos conjeturar qual efeito resultará de um objeto quando ele nos aparece pela primeira vez. Ora, se o poder ou energia de uma causa qualquer fosse discernível pela mente, seríamos capazes de prever o efeito mesmo sem nenhuma experiência, e poderíamos desde o primeiro momento pronunciarmo-nos sobre ele com segurança pelo simples recurso ao pensamento e raciocínio.”

[9] Como as operações dos objetos externos não podem, em casos particulares, fornecer-nos nenhuma idéia de poder ou conexão necessária, Hume passa a examinar se tal idéia proviria das operações de nossas próprias mentes”, que podem ser de dois tipos: a ação da vontade sobre os órgãos corporais e sobre as próprias idéias. “Alguém poderia dizer que estamos a todo instante conscientes de um poder interno, ao sentirmos que, por um simples comando de nossa vontade, podemos mover os órgãos de nosso corpo ou direcionar as faculdades de nosso espírito.” Hume replica, fornecendo, em cada caso, três argumentos contra a possibilidade de derivar dessa fonte a idéia de conexão necessária.

[10] Caso 1: ação da vontade sobre o corpo. É inegável que a vontade tem uma influência sobre os movimentos corporais. A experiência nos informa que tais e tais vontades se fazem acompanhar por tais e tais movimentos. “Mas os meios pelos qual isto se realiza, a energia pela qual a vontade executa uma operação tão extraordinária, disso estamos tão longe de ter uma consciência imediata que é de se supor que deve para sempre escapar às nossas mais diligentes investigações.” Isso porque:

  1. [11] “Se percebêssemos pela consciência algum poder ou energia na vontade, deveríamos conhecer esse poder, deveríamos conhecer sua conexão com o efeito, deveríamos conhecer a união secreta da alma e do corpo e a natureza dessas duas substâncias que torna uma delas capaz de operar sobre a outra em um número tão grande de casos.” Mas isso está completamente fora de nosso alcance.
  2. [12-13] Nem todos os órgãos do corpo podem ser movidos pela vontade. Se estivéssemos conscientes do poder que a mente tem sobre o corpo, esse fato não nos seria inexplicável, como o é. “Perceberíamos então, independentemente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre o órgão do corpo está circunscrita a esses particulares limites.” Além disso, as pessoas amputadas ou afetadas por paralisias saberiam, antes de tentar, que não mais possuem o poder de mover seus membros.
  3. [14-15] Finalmente, a “anatomia” nos mostra que, nos movimentos voluntários, o objeto imediato do poder não são os membros movidos, mas os músculos, nervos, espíritos animais ou algo ainda mais desconhecido. “Mas se o poder original [sobre os movimentos dos membros] fosse sentido, ele teria de ser conhecido, e se fosse conhecido seu efeito também teria de sê-lo, dado que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa: se o efeito não é conhecido, o poder não pode ser conhecido, nem sentido. Como, na verdade, podemos estar conscientes do poder de mover nossos membros se não temos tal poder, mas apenas o de mover certos espíritos animais que, embora produzam ao fim e ao cabo o movimento de nossos membros, operam não obstante de uma maneira que está totalmente fora do alcance de nossa compreensão?”

[16] Caso 2: ação da vontade sobre a mente. É igualmente inegável que por nossa vontade podemos fazer com que as idéias apareçam na mente, desapareçam etc. Mas “esse comando da vontade não nos dá nenhuma idéia real de força ou energia.” Pois:

a)     [17] (Argumento formalmente análogo a (1).) Da mesma forma que a nossa completa ignorância acerca da natureza da alma e do corpo e sua união prova que não temos consciência do poder da vontade sobre o corpo, nosso desconhecimento da natureza da alma e das idéias prova que não temos consciência do poder da vontade sobre as idéias. “Quando conhecemos um poder, conhecemos a exata circunstância na causa que a capacita a produzir o efeito, pois estes, supõe-se, não passam de sinônimos. Temos portanto de conhecer tanto a causa quanto o efeito, bem como a relação entre eles. Mas alegaremos porventura estar familiarizados com a natureza da alma humana e com a natureza de uma idéia, ou com a capacidade que tem uma de produzir a outra? [...] Tudo o que experimentamos é a ocorrência do resultado – a saber, a presença de uma idéia – seguindo-se à ordem da vontade; mas a maneira pela qual se realiza essa operação, o poder pelo qual ela se produz, isso está completamente além de nossa compreensão.”

b)     [18] (Argumento formalmente análogo a (2).) Se percebêssemos o poder que a mente tem sobre as idéias, saberíamos, anteriormente a qualquer experiência, que ele é limitado, bem como quais são seus limites.

c)     [19-20] O comando da mente sobre as idéias é variável, segundo a condição de saúde, a hora do dia etc. “Podemos dar alguma razão para essas variações exceto a experiência? Onde, então, está esse poder do qual alegamos estar conscientes? Não haveria aqui, seja na substância material, seja na espiritual, ou em ambas, algum secreto mecanismo ou estrutura de componentes de que o efeito depende e que, sendo-nos inteiramente desconhecido, torna igualmente desconhecido e incompreensível o poder ou energia da vontade?”

[21] Os homens do povo nunca se admiram das operações ordinárias da Natureza; são apenas os fenômenos incomuns que os deixam perplexos, levando-os a imaginar certos princípios ocultos como sendo suas causas. Os filósofos, porém, percebem que a “energia da causa” dos eventos mais comuns é tão ininteligível quanto a dos extraordinários, e que “apenas aprendemos, pela experiência, a Conjunção freqüente dos objetos, sem jamais sermos capazes de compreender algo como a Conexão entre eles.” É por isso que vários filósofos conceberam teorias curiosas sobre as operações das causas em geral. Hume examina, em especial, o ocasionalismo de Malebranche e alguns de seus desdobramentos. Segundo essa doutrina, a fonte exclusiva e imediata de todo o poder é Deus; nem os corpos nem os espíritos criados são capazes de produzir coisa alguma.

[22-23] Após notar que, ironicamente, os defensores de tal sistema acabam rebaixando a Divindade, ao invés de realçá-la, Hume apresenta duas objeções filosóficas.

[24] Primeiro, ao transcender completamente a esfera da experiência, esse sistema transporta-nos a uma “terra de fadas”, onde os métodos argumentativos usuais perdem toda aplicação.

[25] Depois, inquirindo sobre a origem da idéia de Deus, conclui que, não provindo ela senão da reflexão sobre nossas próprias faculdades, somos obrigados a confessar, em vista do que já foi estabelecido, que não conhecemos o poder do Ser Supremo. Portanto, se nossa ignorância acerca de algo fosse uma boa razão para rejeitá-lo, como argumentam os ocasionalistas quanto ao poder dos corpos e das almas, teríamos que rejeitar igualmente que Deus possua algum poder.

Parte 2

[30] O conteúdo principal dessa parte é bem resumido pelo próprio Hume no parágrafo final: “Em todos os casos isolados de operação de corpos ou mentes, não há nada que produza qualquer impressão, e, conseqüentemente, nada que possa sugerir qualquer idéia de poder ou de conexão necessária. Mas quando uma grande quantidade de casos uniformes se apresenta, e o mesmo objeto é seguido sempre pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão começa a surgir à nossa consideração. Experimentamos [feel] então um novo sentimento [sentiment] ou impressão, a saber, uma conexão habitual, no pensamento ou imaginação, entre um objeto e seu acompanhante usual, e é esse sentimento que constitui o original que estamos buscando para aquela idéia. Pois, dado que essa idéia se produz a partir de um certo número de casos semelhantes e não a partir de qualquer um dos casos tomado isoladamente, ela deve ter origem naquela particularidade que faz com que uma multiplicidade de casos se distinga de cada um dos casos individuais. Mas essa conexão habitual ou transição da imaginação é a única circunstância que os distingue: em todos os outros aspectos são semelhantes. O primeiro caso que observamos de movimento transmitido pelo choque de duas bolas de bilhar (para retomar esta ilustração óbvia) é exatamente igual a qualquer outro caso que nos venha a ser apresentado neste momento, com a única diferença que, na primeira vez, não éramos capazes de inferir um acontecimento de outro, e agora, após uma longa sucessão de experiências uniformes, podemos fazê-lo.”

Vejamos agora alguns outros pontos, começando por uma famosa passagem do parágrafo 28 (grifei):

[28] “Quando dizemos, portanto, que um objeto está conectado a outro, queremos apenas dizer que eles adquiriram uma conexão em nosso pensamento, e dão origem a essa inferência pela qual se tornam provas da existência um do outro; uma conclusão um tanto extraordinária mas que parece fundamentada em suficiente evidência.” O que Hume diz aqui e em outros trechos semelhantes, especialmente no Tratado, foi tradicionalmente apontado como evidência a favor da tese de que ele considerava sem sentido afirmar a existência de poderes nos corpos. No entanto, essa interpretação tem sido questionada, com base em outras passagens. Vejamos, por exemplo, este trecho da nota ao parágrafo 30:

[30, nota] “Quanto ao freqüente uso das palavras ‘força’, ‘poder’, ‘energia’ etc., que ocorrem por toda parte tanto na conversação ordinária como na filosofia, isso não constitui uma prova de que estejamos familiarizados, em algum caso, com o princípio de conexão entre causa e efeito, ou de que uma explicação conclusiva da produção de uma coisa por outra esteja ao nosso alcance. Essas palavras, tais como comumente empregadas, têm um significado muito vago, e as idéias a elas associadas são muito incertas e confusas.” Nosso destaque salienta que Hume admite que aqueles termos possuem algum sentido, quando ordinariamente os empregamos de forma realista, para designar poderes existentes nos corpos ou nas almas, mas que esse sentido é confuso, porque “não temos nenhuma idéia dessa conexão, nem uma noção distinta do que é que desejamos saber quando nos esforçamos para concebê-la” [29].

[29] Nesse parágrafo aparecem as duas controversas definições humeanas de causa (destaques no original):“Nossos pensamentos e investigações estão, portanto, ocupados a todo instante com essa relação [de causa e efeito]. E, contudo, tão imperfeitas são as idéias que fazemos dela que é impossível fornecer uma definição exata de causa, salvo as que provêm de algo que lhe é extrínseco e alheio. Objetos similares estão sempre conjugados a objetos similares; disso temos experiência. Podemos, portanto, de forma apropriada a essa experiência, definir uma causa como sendo um objeto, seguido de outro, tal que todos os objetos similares ao primeiro são seguidos de objetos similares ao segundo. Ou, em outras palavras, tal que, se o primeiro objeto não existisse, o segundo jamais teria existido.[5] O aparecimento de uma causa sempre conduz a mente, mediante uma transição habitual, à idéia do efeito; disso também temos experiência. De forma apropriada a essa experiência podemos, portanto, formular uma outra definição de causa, e chamá-la um objeto seguido de outro, e cujo aparecimento sempre conduz o pensamento àquele outro. Mas embora ambas essas definições tenham sido extraídas de circunstâncias estranhas à causa, não podemos remediar essa inconveniência nem obter uma definição mais perfeita que possa apontar aquela circunstância na causa que lhe atribui uma conexão com seu efeito. Não temos nenhuma idéia dessa conexão, nem uma noção distinta do que é que desejamos saber quando nos esforçamos para concebê-la. Dizemos por exemplo que a vibração desta corda é a causa deste particular som. Mas que queremos dizer com essa afirmação? Ou bem queremos dizer que esta vibração é seguida por este som, e que todas a vibrações semelhantes têm sido seguidas por sons semelhantes; ou bem que esta vibração é seguida por este som e que no momento em que a primeira aparece a mente antecipa os sentidos e forma imediatamente a idéia do segundo. Podemos considerar a relação de causa e efeito sob qualquer dessas perspectivas, mas, para além delas, não temos nenhuma idéia dessa relação.”

 

8. Da liberdade e necessidade. [volta ao índice]

A tese principal desta seção é que a vontade encontra-se sujeita ao mesmo tipo de necessidade que Hume acredita existir nas operações dos corpos materiais. No final da parte 1 Hume argumenta também que isso não tem ligação com a questão da liberdade de nossas ações, que depende exclusivamente da inexistência de restrições externas. Na parte 2, sustenta que essas teses não têm repercussões negativas para a moral.

Parte 1

[1-3] Hume propõe, inicialmente, que as disputas acerca desses tópicos são, no fundo, sobre o significado dos termos.

[4-6] Reafirma, em seguida, que a matéria está sujeita à necessidade (ver seção 6). Em vista da teoria estabelecida na seção 7, o conteúdo empírico dessa afirmação parece resumir-se à uniformidade observada na Natureza e na conseqüente determinação da mente de inferir um objeto a partir da aparição de outro.

[7-9] A sujeição da vontade à necessidade deve ser entendida de modo semelhante, ou seja, em termos do suposto fato de que, nos seres humanos, tem-se observado que “os mesmos motivos sempre produzem as mesmas ações. [...] Ambição, avareza, amor-próprio, vaidade, amizade, generosidade, espírito público: essas paixões [...] têm sido, desde o início do mundo, a fonte de todas as ações e empreendimentos” do homem.

[10] Hume esclarece que ao dizer que as ações humanas são uniformes não está afirmando que todos os homens agem exatamente da mesma forma, quando colocados nas mesmas situações: seus caracteres, prejuízos e opiniões levam a uma diversidade de ações. Quando, porém, tais fatores são levados em conta, recobra-se a uniformidade.

[11-14] Quanto às ações que, depois de tudo, ainda não aparentam conexão regular com nenhum motivo conhecido, Hume lembra que algo semelhante ocorre no domínio da matéria. Embora o vulgo veja aí a ação do acaso, os filósofos têm sido bem sucedidos na identificação de diversas causas ocultas, cuja especificação permite recuperar a uniformidade das operações dos corpos. Generalizando-se, chega-se à “máxima de que a conexão de todas as causas e efeitos é igualmente necessária”.

[15] O mesmo raciocínio, sustenta Hume, deve, por “consistência”, ser aplicado à conexão dos motivos e determinações da vontade.[6]

[16-20] Todo homem comum e todo filósofo efetivamente reconhece esse ponto, baseando nele suas inferências sobre o comportamento humano.

[21-22] Sua freqüente rejeição por palavras liga-se ao fato de que, erradamente, acredita-se perceber uma conexão necessária nas operações dos corpos. Como nenhuma conexão semelhante entre os motivos e ações é sentida, infere-se que não estão ligados por necessidade. Mas quando se está convencido que tudo o que de fato sabemos sobre a causação é a conjunção constante de objetos e a conseqüente inferência mental de um objeto para outro, a existência da necessidade, nesse sentido idealista, tem de ser admitida em ambos os casos.

[23-25] Quanto à liberdade das ações voluntárias, ela não pode significar que tais ações não guardam conexão com os motivos, inclinações e circunstâncias. Ausência de conexão causal não é liberdade, mas acaso (“que universalmente se admite não ter existência”; 25). “Por liberdade, então, podemos apenas significar um poder de agir ou não agir, segundo as determinações da vontade”, que todo aquele que não se encontre ligado a cadeias desfruta.

Parte 2

[26-27] “Não há método de raciocínio mais comum e, apesar disso, mais censurável do que procurar, em disputas filosóficas, refutar uma hipótese pela pretensão de que traz conseqüências perigosas para a religião e a moral.” Hume dispõe-se, no entanto, a submeter sua doutrina sobre a necessidade e a liberdade até mesmo a esse critério: ela não põe em risco nem a moral nem a religião.

[28-31] Hume sustenta que se não houvesse necessidade nas ações voluntárias, não haveria responsabilidade moral: as ações seriam atribuídas ao acaso, e não ao caráter do agente.[7] Igualmente, a existência de responsabilidade pressupõe liberdade.

[32-33] Hume trata agora de uma objeção teológica: se a vontade estivesse sujeita à uma lei de necessidade, haveria uma “cadeia contínua de causas necessárias, pré-ordenadas e pré-determinadas” remontando à causa original, Deus. Colocar-se-ia, pois, um dilema: ou nenhuma ação é moralmente torpe, por proceder sempre de uma causa tão boa; ou, se alguma o for, o Criador será responsável por ela, na condição de sua causa última.

[34-35] A essa objeção Hume replica, inicialmente, observando que a resposta ao primeiro ramo do dilema “parece fácil e convincente”: a análise do conjunto da criação revela que tudo aquilo ocorre é bom. Mas embora “sublime”, essa tese não se mostra efetiva “na prática”: nada convence alguém que esteja sofrendo penas físicas ou morais de que elas de fato são boas. [8]

[36] Quanto ao segundo ramo do dilema, Hume assevera não ser possível explicar como Deus pode ser a causa mediata de todas as ações humanas sem ser autor do pecado e da torpeza moral.

Em suma, a doutrina da necessidade das ações voluntárias leva a um dilema bloqueado. No entanto, Hume não parece disposto a rejeitar sua doutrina. Insinua, ao contrário, que a conclusão a ser tirada é que, de fato, não se pode manter que a causa última de todas as ações seja moralmente impoluta. [9]


9. Da razão dos animais. [volta ao índice]

 [1] Hume avança aqui um argumento novo a favor de sua teoria acerca das inferências sobre questões de fato, que explora a analogia dos comportamentos humano e animal. “Qualquer teoria pela qual explicamos as operações do entendimento [humano] adquirirá uma autoridade adicional se encontrarmos que a mesma teoria é requerida para a explicação dos mesmos fenômenos em todos os outros animais.” 

[2-4] É evidente que, como os homens, os animais aprendem diversas coisas a partir da experiência. A partir da repetição de certos fenômenos, inferem fatos que vão além daquilo que presentemente observam ou já observaram.

[5] Agora “é impossível que essa inferência se funde em algum processo de argumento ou raciocínio [...], pois ele seria demasiadamente profundo para a observação desses entendimentos imperfeitos. [...] É apenas o costume que leva os animais a inferirem, de um objeto que lhes afeta os sentidos, o seu acompanhante usual, e que transporta a imaginação deles da aparição de um para a concepção do outro, daquele modo particular que denominamos crença.” 

[6] Finalizando, Hume aponta a diferença entre o conhecimento adquirido pela experiência e o “conhecimento” instintivo, dado pela Natureza, que não é passível de aprimoramento. Os instintos despertam admiração, parecendo-nos inexplicáveis. Mas essa admiração diminui ou cessa se considerarmos que o “próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os brutos, e do qual depende toda a conduta da vida, não passa de uma espécie de instinto ou poder mecânico, que atua de forma desconhecida.”

 

10. Dos milagres. [volta ao índice]

(Desta seção em diante a numeração dos parágrafos ainda não foi adaptada para a nova edição de Oxford, seguindo a clássica edição de Selby-Bigge.)

Parte 1

Hume defende que as inferências feitas a partir do testemunho dos homens apóiam-se unicamente na observação da “usual conformidade dos fatos com os relatos das testemunhas”, sendo, pois, inferências causais.

Fundando-se na experiência passada, a evidência que deriva de testemunhas varia de acordo com a natureza dessa experiência. Diversas circunstâncias devem ser levadas em conta nos julgamentos dessa espécie, como a existência de relatos contrários, o caráter e o número das testemunhas, a forma em que depõem, bem como a evidência independente que tenhamos acerca do fato relatado.

No caso dos milagres, este último fator é crucial. Por definição, milagres são violações das leis naturais. Assim, contra eles pesa a regularidade invariável da experiência passada, que constitui tais leis: “E como uma experiência uniforme vem a ser uma prova, há aqui, pela própria natureza do fato, uma prova direta e inteira contra a existência de qualquer milagre” (90).

Hume conclui que “nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que [...] sua falsidade seja mais milagrosa que o fato que pretende estabelecer. Mesmo neste caso existe uma destruição mútua dos argumentos: o superior nos dá apenas uma segurança conforme o grau de força que resta após a subtração do inferior.” (91) [10]


Parte 2

Nesta segunda parte são enumeradas razões históricas, psicológicas e sociológicas contra a efetiva ocorrência de milagres.

  1. Não há em toda a história nenhum milagre que tenha sido atestado por um número suficiente de homens de inquestionável bom-senso, educação, erudição e desinteresse. (92)
  2. A paixão do maravilhoso tende a fazer crer naquilo que mais contraria a experiência passada. O mesmo pode ser dito do espírito religioso e da eloqüência. Isso se confirma pelos muitos casos de milagres forjados nos quais se acreditou por algum tempo. (93)
  3. Os relatos de milagres abundam principalmente no seio das nações bárbaras e ignorantes. Ademais, milagres nunca ocorrem em nossos dias. (94)
  4. Os que relatam prodígios são sempre contraditados por “um número infinito de testemunhas”. Como “em questões de religião tudo o que é diferente é contrário”, os testemunhos dos milagres das diversas seitas destróem-se mutuamente. (95)

Hume menciona em seguida (96) três casos notáveis de supostos milagres: os de Vespasiano, os relatados pelo Cardeal de Retz e os do túmulo do Abade de Paris. Contra tais casos, Hume só tem a dizer que são uma “falsidade grosseira” e uma “absoluta impossibilidade”, omitindo de observar que, neles, as condições apontadas aparentemente não são satisfeitas.

Nos parágrafos seguintes, Hume tece considerações diversas acerca dos interesses escusos e da fragilidade humana, da dificuldade de se detectarem falsidades, da aniquilação mútua de testemunhos, etc., pregando, em tom dogmático, a rejeição da realidade dos milagres “sem exame ulterior” e propondo a “resolução geral” de nunca se lhes dar nenhuma atenção. (99)

Critica, por fim, os que pretendem defender a religião cristã pela razão e com base nas Escrituras, entendidas como relatos de testemunhas. (100-101)

 

11. De uma providência particular e de um estado futuro. [volta ao índice]

Nesta seção Hume expõe, nas palavras de um amigo fictício que representa Epicuro, razões céticas quanto à existência de Deus. Defende ainda que essa posição não compromete a ordem social, já que a moral pode ser fundamentada ao longo de linhas utilitaristas.

Como nos Diálogos sobre a Religião Natural, a discussão aqui gira em torno do argumento do desígnio, segundo o qual a existência de um criador infinitamente bom, justo e sábio pode ser inferida a partir da ordem e da beleza do mundo. Inicialmente, Hume faz notar que se trata de um argumento que parte dos efeitos para as causas.

Até o parágrafo final (com breve antecipação no § 110), não questionará a inferência de uma causa para o mundo. O alvo inicial da crítica é a inferência de certos atributos especiais dessa causa: a suprema justiça e bondade. “Quando inferimos uma causa particular qualquer a partir de um efeito, devemos proporcionar um ao outro, nunca nos sendo permitido atribuir à causa quaisquer qualidades, além das que sejam exatamente suficientes para produzir o efeito.” Além disso, jamais podemos, pelas regras do bom raciocínio, “retornar a partir da causa, e inferir outros efeitos, além daqueles por meio dos quais, apenas, tornou-se-nos conhecida.” (105)

“Concedendo, assim, que os deuses sejam os autores da existência e ordem do Universo, segue-se que possuem aquele grau preciso de poder, inteligência e benevolência que aparece em sua obra. Nada mais pode ser provado [...]. A suposição de atributos adicionais é mera hipótese, como o é ainda mais a suposição de que em regiões longínquas do espaço ou do tempo houve, ou haverá, uma exibição mais magnificente desses atributos, e um esquema administrativo mais conforme a tais virtudes imaginárias.” (106)

O que há de concreto é que o presente cenário de coisas é “cheio de males e desordem” (106). Não podemos “salvar a honra dos deuses” imaginando um estado futuro em que esses males e imperfeições sejam compensados (107). Tampouco nos é lícito alegar que são “as qualidades obstinadas e intratáveis da matéria” que obrigaram Júpiter a criar o mundo como ele é, pois seria tomar por certo o ponto em disputa, ou seja, os atributos de perfeição da divindade. (107)

Não possuímos, assim, bases racionais para crer numa providência que puna os viciosos e recompense os virtuosos. Mas isso não solapa a moral. O exame do curso dos eventos mostra que “a virtude se faz acompanhar de mais paz da mente do que o vício”, que “a amizade é a principal alegria da vida humana” e que “a moderação é a única fonte de tranqüilidade e felicidade” (108).

A análise é resumida no parágrafo 110: “Quando argumentamos a partir do curso da Natureza, e inferimos uma causa inteligente particular, que no início conferiu ordem ao Universo e a preserva ainda, abraçamos um princípio que é incerto e inútil. É incerto, porque a questão está completamente fora do alcance da experiência humana. Inútil, porque derivando o nosso conhecimento inteiramente do curso da Natureza, nunca podemos, pelas regras do justo raciocínio, retornar da causa com nenhuma nova inferência, ou, fazendo adições ao experimentado curso comum da Natureza, estabelecer quaisquer princípios novos de conduta e comportamento.”

No parágrafo seguinte Hume considera a objeção de que nos contextos ordinários legitimamente raciocinamos desse modo. A partir de uma pegada na areia, por exemplo, concluímos que ali passou um homem, e que essa causa há de ter produzido outras pegadas, que presentemente não observamos. A réplica (112-13) consiste em notar que em tais casos intervém no raciocínio nossa experiência passada acerca das causas, sem o que ele se tornaria falacioso. A divindade, porém, é reconhecida como uma causa singular. Nada sabemos a seu respeito a não ser aquilo que inferimos a partir de seu efeito singular, o mundo.

Mesmo esse conhecimento restrito é questionado no parágrafo final. Evocando sua análise da causalidade, Hume nota que “é apenas quando duas espécies de objetos são observadas constantemente conjugadas que podemos inferir um a partir do outro. Apresentando-se um efeito inteiramente singular, que não possa ser compreendido sob nenhuma espécie conhecida, não vejo como poderemos formar qualquer conjetura ou inferência acerca de sua causa. Se a experiência, a observação e a analogia de fato forem os únicos guias razoáveis em inferências dessa natureza, tanto o efeito como a causa têm de guardar uma similaridade e semelhança com outros efeitos e causas que conheçamos e que tenhamos, em muitos casos, encontrado conjugados uns aos outros.” (105)

 

12. Da filosofia acadêmica ou cética. [volta ao índice]

Parte 1

Nesta última seção Hume analisa diversas espécies de ceticismo. Há um ceticismo antecedente a todo estudo, proposto como um preservativo contra o erro e os julgamentos precipitados. Hume aceita esse ceticismo, quando moderado; não, porém, em sua forma extrema, defendida por Descartes, que recomendava uma dúvida universal não apenas com relação a nossas opiniões, mas também com respeito a nossas próprias faculdades cognitivas. Tal dúvida não é alcançável; e se o fosse, seria completamente incurável. (116)

Depois, há um ceticismo conseqüente à investigação filosófica, investigação que descobre as limitações de nossa cognição. Nesta primeira parte Hume examina o que no Tratado chamava de ceticismo sobre os sentidos. Na segunda parte analisará o ceticismo sobre a razão; e, na parte final, o ceticismo mitigado ou acadêmico.

As objeções corriqueiras contra a evidência dos sentidos - as falhas sensoriais, a alteração do aspecto dos objetos conforme a distância, etc. - não são consideradas sérias por Hume. “Esses tópicos céticos são, na verdade, suficientes para provar apenas que não podemos implicitamente depender unicamente dos sentidos, mas que temos de corrigir sua evidência pela razão e por considerações sobre a natureza do meio, a distância do objeto e a disposição do órgão [...].” (117)

É evidente que os homens são levados por um “instinto natural” a crer nos sentidos e, sem nenhum raciocínio, supor a existência de um mundo externo, independente da percepção. Também é patente que quando seguem esse “instinto cego e poderoso” eles sempre supõem que as próprias imagens apresentadas pelos sentidos são os objetos externos. (118)

Todavia, a mais ligeira análise filosófica basta para destruir essa opinião vulgar, por revelar que nada pode jamais estar presente à mente senão imagens ou percepções. “A mesa que vemos parece diminuir quando nos distanciamos dela; mas a mesa real, que existe independentemente de nós, não sofre qualquer alteração. Era, pois, apenas sua imagem que estava presente à mente.” (118)

A razão obriga-nos, assim, a contrariar o instinto primário natural, e adotar um novo sistema sobre a evidência dos sentidos. Hume nota, porém, que esse novo sistema (da “dupla existência”) também conduz a dificuldades aparentemente insuperáveis.

“Por que argumento se pode provar que as percepções da mente têm de ser causadas por objetos externos, inteiramente diferentes delas, embora assemelhando-se a elas (se isto for possível), e que não surgem da energia da própria mente, ou da sugestão de algum espírito invisível e desconhecido, ou de alguma outra causa ainda mais remota?” Trata-se de uma questão de fato que, como qualquer outra, deve ser decidida pela experiência. “Mas aqui a experiência é, e tem de ser, inteiramente silente. A mente nunca tem nada presente a si senão as percepções, e não pode ter nenhuma experiência de sua conexão com os objetos.” (119)

O apelo à veracidade divina é rejeitado por Hume. Se ela valesse aqui, nossos sentidos seriam infalíveis, contrariamente ao que se admite. E se a realidade do mundo externo estiver em suspenso, será difícil encontrar argumentos para provar a existência de Deus (120). “Este é, portanto, um tópico no qual os céticos mais profundos e filosóficos sempre triunfarão.” (121)

Nos parágrafos 122 e 123 Hume apresenta o argumento de Berkeley que mostra que, assim como as qualidades secundárias, as qualidades primárias são meras percepções. Privando assim a matéria de suas qualidades primárias e secundárias, “você de certa forma aniquila-a, deixando apenas um certo algo desconhecido e inexplicável, a causa de nossas percepções: uma noção tão imperfeita que nenhum cético considerará digna de ser combatida.” (123)

Parte 2

O ceticismo sobre a razão pode ser tanto contra os “raciocínios abstratos”, ou seja, de tipo demonstrativo, como contra os “raciocínios morais”, acerca de questões de fato.

Quanto ao primeiro tipo, Hume menciona certas contradições e paradoxos que envolvem as noções de espaço e de tempo, especialmente as que resultam do princípio da divisibilidade ao infinito (124-25; cf. Tratado, livro 1, parte 2).

O ceticismo que envolve os raciocínios sobre questões de fato pode ser “popular” ou “filosófico”. As objeções “populares” são as que ressaltam a fragilidade do entendimento humano: as opiniões contraditórias ao longo das épocas e nos diferentes povos, as variações de opinião de um mesmo indivíduo, etc. Tais objeções não podem conduzir a um ceticismo consistente, pois no contexto da vida comum em que surgem somos a todo tempo desviados do “pirronismo” pela necessidade de opinar e agir. (126)

O cético só encontrará “amplo material para triunfar” na esfera puramente filosófica. A esse respeito, Hume lembra resumidamente sua teoria acerca das inferências sobre as questões de fato (seções 4 a 7), enfatizando que o instinto natural sobre o qual, em última instância, repousam pode ser “falacioso e enganador”. (127)

Somente a vida prática pode nos livrar desse “ceticismo excessivo”: “nenhum bem durável pode jamais resultar dele, enquanto permanecer em sua plena força e vigor.” (128)

Parte 3

“Há, na verdade, um ceticismo mais mitigado, ou uma filosofia acadêmica, que pode ser durável e útil, e que pode resultar parcialmente do pirronismo, ou ceticismo excessivo, quando suas dúvidas indistintas são em certa medida corrigidas pelo senso comum e pela reflexão.” (129)

A primeira utilidade desse ceticismo moderado é abalar o dogmatismo e o orgulho, a que o ser humano é tão propenso (129). A segunda é delimitar suas pesquisas aos assuntos adaptados à estreita capacidade de seu entendimento (131). [11]

Quanto a este último ponto, Hume defende que os únicos objetos das ciências abstratas ou demonstrativas são as quantidades e os números, opondo-se assim a Locke, que flertou com a idéia de que a moral poderia ser transformada em uma disciplina demonstrativa. (131)

Todas as demais áreas ocupam-se de questões de fato, incapazes de demonstração. A história, a cronologia, a geografia e a astronomia estudam questões de fato particulares. A política, a filosofia natural, a física, a química, etc. tratam de “fatos gerais”, ou seja, de qualidades, causas e efeitos de espécies inteiras de objetos. A teologia investiga tanto fatos particulares como gerais, mas deve apoiar-se antes na fé do que na razão. A moral e a crítica (estética) não são objetos do entendimento, mas do gosto e dos sentimentos. (132)

A Investigação termina com a famosa passagem:

“Quando percorremos as bibliotecas persuadidos desses princípios, que estragos temos de fazer? Se tomamos nas mãos um volume qualquer, de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio abstrato acerca de quantidades ou números? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou existência? Não. Confiemo-lo então às chamas, pois só contém sofismas e ilusões.”

 

Notas [volta ao índice]

1. Os números entre colchetes indicam os parágrafos, numerados consecutivamente a partir do início de cada seção. (Sistema proposto na edição de T. L. Beauchamp, Oxford University Press, 1999.) Nas citações deste texto foi utilizada, até a seção 7 inclusive, uma versão pré-publicação da tradução de José Oscar de Almeida Marques (Edunesp, 1999), com ligeiras adaptações. [volta]

2. No caso do dado as probabilidades são ditas “probabilidades de acaso” (probabilities of chance). [volta]

3. Hume expressa aqui o que à época se considerava indubitável na filosofia natural. Somente na segunda metade do século XX surgiu evidência extremamente forte de que há fenômenos na microfísica cuja irregularidade não pode ser atribuída a nenhuma causa oculta. [volta]

4. Dado tudo o que Hume afirma, não é de nenhum modo claro que exista uma distinção real entre probabilidades de acaso e de causas. [volta]

5. Observe-se que as duas formulações desta primeira definição de causa não são equivalentes, como o texto de Hume parece sugerir. A segunda formulação é um condicional contrafatual, cuja justificação parece exigir exatamente o tipo de interpretação metafísica da causalidade que Hume está procurando rejeitar. Além disso, por razões semelhantes, na primeira formulação seria mais apropriado o emprego do tempo passado ‘têm sido seguidos...’, ao invés de ‘são seguidos...’, como está, aliás, no exemplo dado logo adiante. [volta]

6. A manutenção da tese da necessidade das ações voluntárias depende, pois, de dois passos duvidosos: a generalização do determinismo no nível dos fenômenos materiais e sua extensão, por simples analogia, ao plano mental. [volta]

7. Se, por sua vez, esse caráter estiver predeterminado, como Hume afirma a seguir, em que sentido se poderá dizer que o homem é responsável por suas ações? [volta]

8. No parágrafo 35 há uma observação que compatibiliza a teoria moral de Hume com o utilitarismo: “Os caracteres que granjeiam nossa aprovação são, principalmente, aqueles que contribuem para a paz e segurança da sociedade humana, ao passo que os que provocam a condenação são principalmente aqueles que trazem prejuízo e perturbação públicos. Disso pode-se razoavelmente presumir que os sentimentos morais surgem, direta ou indiretamente, de um reflexo desses interesses opostos.” [volta]

9. Esse tópico comporta diversas qualificações e desdobramentos, que Hume analisa extensamente nos Diálogos sobre a Religião Natural. Outra questão importante deixada em aberto, ou melhor, que sequer é mencionada, é a que se aponta na penúltima nota: como é possível a existência da tal cadeia de causas necessárias e da responsabilidade moral do ser humano ao mesmo tempo. [volta]

10. Isso parece cristalizar dogmaticamente as opiniões formadas sobre os fenômenos naturais. Hume tangencia essa questão-chave na nota do parágrafo 89, que analisa um pseudo-milagre: o congelamento da água, aos olhos de um nativo da Sumatra. Milagres genuínos, diz Hume, requerem que a regularidade seja quebrada quando “todas as circunstâncias são as mesmas”. Como, porém, podemos determinar que efetivamente o são? Evidentemente, as circunstâncias relevantes são em número indefinido e, muitas vezes, incontroláveis. Aliás, é uma conseqüência da doutrina humeana que, em princípio, “qualquer coisa pode produzir qualquer coisa” (Tratado, livro 1, parte 3, seção 15). “A queda de uma pedrinha pode, por tudo que sabemos, extinguir o Sol; ou o desejo de um homem controlar os planetas em sua órbita.” (Investigação, § 132). Se observarmos um pedaço de chumbo suspenso no ar (90), a ocasião em que isso se dê será única - uma certa estrela estará explodindo no momento, por exemplo. Não há, aparentemente, diferença de princípio entre essa situação e a da água do sumatra levada à Europa no inverno: a rigor, também se trata de “um novo experimento, cuja conseqüência é incerta” (89n). As dificuldades que envolvem essa “máxima geral” de Hume parecem comprometer seriamente sua análise dos milagres. [volta]

11. Essas eram, aliás, as preocupações centrais de Locke no Ensaio. [volta]