Volta

A genealogia da moral no Segundo Discurso de J.-J. Rousseau

 

André Christian Dalpicolo

Universidade Federal de São Carlos

 

A antítese da natureza e da cultura pode resolver-se em um movimento progressivo: tal é a filosofia que Kant lerá em Rousseau e retomará por sua própria conta.

No segundo Discurso, que é o prêambulo do “sistema”, Rousseau quase não nos deixa entrever essas perspectivas tranquilizadoras. Seu propósito, aqui, é de mostrar como o homem excluiu-se da harmonia natural (1)

 

1. O estado originário do homem: As páginas iniciais do segundo Discurso indicam a necessidade de se criar um “marco zero” para a antítese entre natureza e cultura, sendo que este deve apontar a incapacidade humana de desenvolver-se enquanto homo sapiens, porque o mesmo é responsável pelas duas fases dessa antítese na História. Logo, é legítimo dizer que a condição humana circunscrita pelo “marco zero” não consegue compreender a diferença que há entre ela e a natureza. De certa maneira, essa incompreensão fundamenta o elemento essencial dessa condição enquanto potencialidade, ou melhor, sustenta a perfectibilidade enquanto vir-a-ser. Por um lado, o segundo Discurso expõe que o “marco zero” da antítese entre natureza e cultura deve revelar a unidade entre o homem e o mundo, ao invés da sua radical cisão. Porém, por outro lado, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens explica que essa unidade se apresenta apenas no seu estado embrionário no homem natural (2), já que lhe falta a noção de que o seu estágio perfeito deve ser precedido pela ruptura dos termos que a compõem. Além disso, tal ruptura ressalta a necessidade humana de dominar o meio circundante que lhe impõe obstáculos, pois somente assim irá prover a sua subsistência material. Um olhar atento para esse acontecimento revela a originalidade do segundo Discurso, porque especifica como a luta entre o homem e o mundo é na verdade um apelo para a sua reconciliação, uma vez que esta corresponde ao conhecimento final que esse homem tem de si mesmo. Nota-se, portanto, que o telos fundamental da condição humana no segundo Discurso é o autoconhecimento, revelando assim a influência exercida por Sócrates sobre o filósofo genebrino. Quem retratou bem essa influência foi Henri Gouhier: “Não basta ao homem se enxergar para se ver, pois este homem que se enxerga crê em qualquer coisa: é Sócrates que obriga tal homem a reconhecer que nada sabe”(3).

Se o telos fundamental da condição humana é o autoconhecimento, logo o “marco zero” da antítese entre natureza e cultura é um estado extra-histórico, já que é improvável dissociar da existência humana a sua característica de homo sapiens; aliás, o próprio J.-J. Rousseau afirmou no segundo Discurso o caráter duvidoso do estado originário do homem:

 

O estado da natureza, nos diz Rousseau, talvez jamais tenha existido. Que seja. É preciso, contudo, colocá-lo por hipótese, pois só se pode medir as distâncias em história com a condição de ter previamente determinado um “grau zero” (...) É preciso notar bem que o estado da natureza não é um imperativo moral; não é uma norma prática, à qual seríamos convidados a nos adequar: é um postulado teórico, mas que recebe uma evidência quase concreta, pela virtude de uma linguagem que sabe dar ao imaginário todas as características da presença (4).

 

Talvez o filósofo genebrino tenha conferido um caráter duvidoso ao estado originário do homem por dois motivos: enquanto o primeiro corresponde à impossibilidade do “marco zero” revelar o estágio perfeito da unidade entre o homem e o mundo, o segundo diz respeito ao perigo de associar-se a “origem” do homem à cisão radical que o mesmo mantém junto ao meio circundante, uma vez que isto tornaria essa cisão insuperável. Contudo, tornar duvidosa a existência desse estado traz um problema para J.-J.Rousseau, já que o obriga a buscar um fundamento lógico para o homem natural, pois do contrário não há como impedir que o mesmo seja considerado um mero produto da sua imaginação. Como isto é possível?

A solução deste problema apresenta-se no início do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens , posto que segundo Starobinski “Jean-Jacques fia-se em um outro guia: para pintar a constituição do homem, é para o seu próprio coração que ele se volta. Não duvida {sic}, é ele próprio um ‘homem da natureza’, ou ao menos, um homem em quem a lembrança da natureza não se apagou” (5). Ora, é importante ressaltar que o coração jamais engana ao homem, dado que lhe revela o verdadeiro caminho a ser trilhado e é a partir desta premissa que a natureza humana é boa, apesar do seu desenvolvimento histórico mostrar justamente o contrário.

 

2. A “desnaturalização” do homem: Nota-se, portanto, que o grande desafio de J.-J.Rousseau no segundo Discurso é revelar como a historicidade do homem não elimina o seu elemento natural, ou seja, a bondade, pois do contrário tornar-se-ia impossível defender a sua redenção histórica. Para tanto, é preciso que o filósofo genebrino reconstitua a gênese da humanidade tal como fez o cristianismo, porque somente assim poderá imputar ao desenvolvimento temporal da condição humana a origem do mal (6). No entanto, isso não invalida a divergência que há entre ambos, uma vez que o segundo Discurso deixa a entender que o homem deve contar somente consigo mesmo para superar o mal que o atinge, ao passo que a Escritura sagrada assinala que essa superação se realiza por meio da iluminação divina. Decerto, alguém poderia argüir o seguinte: por que o pensador genebrino necessita distanciar-se do cristianismo para explicar a origem do mal, já que ambos a fundamentam através da liberdade humana? A nosso ver, isto se deve a importância que J.-J.Rousseau confere ao fato do homem ser originariamente bom.

Se a bondade humana representa tanto a possibilidade quanto a realização do auto-conhecimento, logo o seu oposto é a abstração desse último. Diante disso, é mister reconhecer que a origem do mal não está presa stricto sensu ao nascimento da sociedade humana, apesar desta apresentar-se historicamente como má, pois do contrário não haveria como o filósofo genebrino criticar a forma pela qual o homem convive atualmente com seus pares. Prova dessa assertiva radica-se no fato de J.-J. Rousseau ter deixado entender no segundo Discurso que o fundamento da historicidade humana é uma causa fortuita que aconteceu na natureza. Ou seja: ele deixou implícito no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens que o desenvolvimento temporal da condição humana poderia ter ocorrido de uma outra forma, já que o seu fundamento é contingente.

Isto posto, percebe-se quão a antítese entre natureza e cultura é incapaz de perpetuar-se como um elemento necessário da historicidade humana. De início, ela revela como o homem pode distanciar-se do seu telos fundamental, tornando-o assim estranho a si mesmo; aliás, esse distanciamento pode ser intitulado como a “desnaturalização” do homem, uma vez que fundamenta a incapacidade humana de conhecer plenamente a si própria. No entanto, isso não significa que o ser humano tenha eliminado a sua natureza essencial, apesar de consolidar um processo de desfiguração da mesma, porque a sua historicidade está atrelada a sua característica de homo sapiens. Logo, é inexato dizer que o homem inserido na antítese entre natureza e cultura é irracional, mesmo que a sua racionalidade esteja desviada do seu curso originário, sendo que J.-J.Rousseau detalha que o fundamento desse desvio é a crença humana acerca da equivalência entre os termos progresso intelectual e conhecimento de si. Explico melhor: o filósofo genebrino expõe que o acúmulo de conhecimento que o homem tem do meio circundante não significa necessariamente o conhecimento de si próprio, dado que a realização deste depende da intenção que o rege.

Um olhar atento para a antítese entre natureza e cultura revela um coeficiente de alienação experimentado pelo homem no seu desenvolvimento temporal, tornando-o estranho a sua natureza, pois tenta apropriar-se indevidamente do meio que o cerca; aliás, esse “estranhamento” ocorre quando ele acredita numa ordem natural que o favoreça em relação aos seus pares, ignorando completamente o elemento essencial que o fundamenta. A mensagem final do segundo Discurso é que toda forma de desigualdade fundamentada pelo homem é arbitrária, já que ele é incapaz de adequar-se a sua natureza essencial.

 

3. A “superação” da antítese entre natureza e cultura: Entretanto, é inexato afirmar que a alienação signifique no segundo Discurso apenas o “estranhamento” que o homem experimenta no seu desenvolvimento temporal, pois do contrário não haveria mais como defender a bondade como sua característica originária. De certa maneira, essa alienação também representa um “apelo” para que a condição humana possa suplantar o descompasso que há entre ela e o mundo, adequando-se dessa forma plenamente a naturalidade do seu ser. Essa superação dar-se-á à medida que o homem entender que o acúmulo de conhecimentos sobre o meio que o cerca não corresponde necessariamente o conhecimento de si próprio. Como isto é possível? Em poucas palavras, esse acúmulo não pode estar sustentado pela radical separação do homem em relação aos seus pares, já que somente assim se tornará o elemento que fundamentará a total integração entre o indivíduo e o meio circundante. Ou seja: o conjunto de saberes que o homem tem do meio que o cerca não deve provocar a alteridade face aos seus pares, posto que é desta forma que ele se transformará no fio unificador entre natureza e cultura.

Compreender a alienação enquanto “apelo” para a superação do descompasso entre o homem e o mundo é dar o primeiro passo para legitimar a unidade do sistema rousseauniano:

 

Nas Confissões ele enfatizou que seus escritos, tomados como um todo, revelam uma filosofia consistente e coerente. ‘Tudo que é ousado no Contrato social havia aparecido previamente no Discurso sobre a origem da desigualdade; tudo que é ousado no Emílio havia aparecido previamente em Júlia’. As discrepâncias que o leitor pudesse encontram elas seriam, afirmava, puramente superficiais”(7).

        

Mais do que isso: fundamentá-la através desse “apelo” é desqualificá-la enquanto antítese da liberdade, tornando assim possível erradicar a separação que há entre a essência e a existência humana (8). Dessa forma, o segundo Discurso deixa entender que os termos liberdade e alienação não se excluem reciprocamente, uma vez que um não se configura como o contrário do outro. Entrementes, ele assinala que a excelência da liberdade humana realizar-se-á somente quando esta reconhecer o seu limite referente a incapacidade de manter uma radical alteridade perante os seus pares. Nota-se, portanto, que o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens deixa implícito que a liberdade humana constitui-se como a faculdade elementar da humanidade, ao invés de ser uma simples faculdade individual. “A originalidade de Rousseau não consiste tanto em revelar como o mau princípio é engendrado pelo bom, mas sim de tê-lo identificado com a sociedade que possui uma ambivalência constitutiva” (9). Prova dessa “ambivalência” verifica-se no Contrato social, pois nele J.-J.Rousseau demonstra como o homem pode equacionar o “estranhamento” que experimenta quando se relaciona com os seus semelhantes. Essa demonstração provoca a eliminação da antítese entre natureza e cultura, posto que o conhecimento do homem sobre o meio que o cerca identifica-se com o conhecimento de si mesmo. Isto é: J.-J.Rousseau nos revela no Contrato social que essa eliminação é realizada quando o homem entende que o conhecimento de si mesmo depende do reconhecimento da liberdade dos seus pares.

 

4. Conclusão: Enfim, qual é a conclusão deste artigo? De antemão, pode-se dizer diz respeito a importância da ligação entre liberdade e razão no sistema rousseauniano, uma vez que ser livre é poder conhecer a si mesmo e a plena realização desta possibilidade acontece quando o homem reconhece a liberdade dos seus semelhantes. As três fases da antítese entre natureza e cultura refletem justamente esta conclusão, porque revelam o longo caminho percorrido pela condição humana para recriar o seu elemento originário. “O homem natural não pode escapar a sociedade, mas pode recriá-la para assim recriar-se”(10).

É mister reconhecer que a inteligibilidade da ligação entre liberdade e razão depende do pressuposto que assinala a unidade da filosofia rousseauniana. Dessa forma, não foi o nosso objetivo destacar a dicotomia indivíduo/sociedade ressaltada por alguns intérpretes de J.-J.Rousseau, posto que ela é incapaz de desqualificar a idée-force que norteia a doutrina exposta pelo filósofo genebrino. Se assim não for, corre-se o risco de compreender essa doutrina através de uma centelha de paradoxos, ao invés de um todo coerente e consistente.

Para finalizar, é preciso expor que a busca ininterrupta pela unidade do pensamento rousseauniano pode ocultar elementos que efetivamente são irreconciliáveis, ou melhor, torná-los insignificantes. De acordo com Peter Gay, essa busca pretende sistematizar aquilo que exatamente não pode sê-lo, apesar de esclarecer alguns pontos fundamentais:

A busca persistente de um centro intelectual pode expurgar, como insignificantes, contradições que são de fato fundamentais. O pendor do Idealismo pela unidade e abrangência pode ensejar a conciliação, numa síntese supostamente superior, daquilo que é efetivamente irreconciliável. Com efeito, é possível afirmar-se que Cassirer incute mais sistematicidade em Rousseau do que realmente existe, e que, em sua ênfase na “liberdade”, torna Rousseau mais kantiano do que os fatos lhe permitiriam afirmar (11).

 

 

Notas

 

(1) Starobinski, Jean. Jean-Jacques Rousseau: A transparência e o obstáculo (seguido de sete ensaios sobre Rousseau). Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das letras, s/data, p. 300.

(2) Termo utilizado por Pierre Burgelin para designar o estado originário do homem.

(3) Gouhier, Henri. Les mediations métaphysiques de J.-J.Rousseau.Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1984, p. 11.

(4) Starobinski, Jean. Jean-Jacques Rousseau: A transparência e o obstáculo (seguido de sete ensaios sobre Rousseau). Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das letras, s/data, p. 300.

(5) Ibidem, pp. 296-297.

(6) “Não sem razão foi apontado que entre a doutrina de Rousseau do ‘estado natural’ e a doutrina cristã do ‘estado original’ existem analogias formais muito específicas. Também Rousseau conhece a expulsão do homem do paraíso da inocência; também ele vê na evolução do homem em direção a um ser racional um ‘pecado original’ que o exclui da felicidade segura e bem resguardada que desfrutou até então”. Cassirer, Ernest. A questão J.-J.Rousseau. Prefácio e posfácio de Peter Gay. Tradução de Erlon José Pascoal. São Paulo: Editora da Unesp, 1997, p. 76.

(7) Ibidem, pp. 7-8.

(8) “Ainda hoje estamos bastante habituados a opor a existência à essência; logo, não é de se admirar que uma filosofia visivelmente fundada sobre a existência dentro de uma situação concreta confere uma tal importância à natureza humana. Mas a posição de Rousseau reside justamente na impossibilidade de dissociar-se estas duas noções, uma vez que é impossível a existência humana desenvolver-se à margem da sua natureza. O vício de nossa situação atual, ou melhor, a desordem da nossa atual natureza consiste na produção de uma ‘desnaturalização’ que nos mascara o sentimento de existência – fonte da felicidade -, impedindo o homem ‘de existir segundo a sua natureza’”. Burgelin, Pierre. La philosophie de l´existence de J.-J.Rousseau. Paris: Presses Universitaires de France, 1952, p. 219.

(9) Ibidem, p. 240.

(10) Gay, Peter. Prefácio e posfácio do livro A questão J.-J.Rousseau. Tradução de Erlon José Pascoal. São Paulo: Editora da Unesp, 1997, p. 22.

(11) Ibidem, p. 28.

 

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