Volta
A origem da
sociedade: uma união que provoca desigualdades e infelicidades?
Aparecido Gomes Leal
Universidade Estadual de
Campinas
Ao traçarmos alguns paralelos entre o homem e sua comunidade,
utilizando a obra de Rousseau, Discurso sobre a origem e o fundamento da
desigualdade entre os homens, encontramos pertinente material para a
elaboração de discussão sobre o homem natural, sua liberdade,
felicidade e processo de individuação, bem como sobre as relações que se
estabelecem entre os homens na formação da sociedade, podendo, inclusive
contemplar outra preocupação do filósofo: a educação do homem, que podemos
verificar em sua extensa e detalhada obra sobre o assunto, Emílio ou da
educação. Nessas condições podemos também estabelecer relações de
Rousseau com outro pensador da Antigüidade, Platão, ou melhor, com o que
diz o filósofo Sócrates, através dos diálogos de Platão, com quem Rousseau
muito se aproxima em diversas passagens, principalmente no que se refere às
virtudes e a busca da felicidade ou da melhor forma de conduzir a vida.
Rousseau está muito próximo de dois grandes filósofos da Antigüidade:
Sócrates e Aristóteles. Isso pode ser verificado através do próprio Discurso
sobre a desigualdade. Tanto Rousseau quanto esses filósofos trataram de
expor, com riqueza de detalhes, a origem da sociedade humana e as
implicações dessa “união” dos indivíduos nos primórdios de nossa história.
As comemorações pelos 250 anos da publicação do Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, nos
fazem refletir sobre a questão que quase todos os filósofos trataram, que é
a felicidade e, ainda que em Rousseau não encontremos muito bem definido o
que seria a felicidade humana, podemos aferir que ele não duvida que todo
ser humano quer e pode ser feliz. Resta saber como isso seria possível e em
que circunstância. A origem da sociedade, porém, traz consigo uma série de
conseqüências e responsabilidades que o indivíduo tem que assumir para
poder fazer parte do grupo. Rousseau descreve a sociedade como um poder
implacável que subjuga o indivíduo, pensando por ele e traçando o seu
destino. Como atingir a tão decantada felicidade nessas condições? Para
Rousseau, aqueles que são justos e virtuosos também desfrutarão da
felicidade. Nesse contraponto podemos fazer analogias com o diálogo A
República, de Platão, onde Sócrates, ao traçar a cidade ideal, provoca
discussões acaloradas com seus jovens debatedores, acerca da felicidade e
educação do homem - vinculadas às virtudes, quer dizer, à conduta moral -,
assim como sobre as bases e os porquês da união dos homens, que se juntaram
para fundar a sociedade organizada, isto é, a cidade. Esses homens, esses
cidadãos, não medem esforços para “pertencer” ao grupo que os abrigará e
protegerá, mas que, em contrapartida, exigirá muito deles, afinal, viver em
sociedade acarreta uma séria de compromissos e responsabilidades. Para
Sócrates a felicidade, tão perseguida pelos homens, é possível apenas se
estiver vinculada à maior virtude, a justiça, assim, só o justo é feliz.
Rousseau, como bom leitor de Platão, reconhece a República como
excelente tratado sobre a educação do indivíduo. Sócrates, nesse diálogo,
legisla e indica caminhos para a educação do cidadão, não perdendo de vista
que o bom cidadão é o homem educado, que respeita as leis, seguindo à risca
o que elas prescrevem. Claro que esses dois pensadores trataram
diferentemente desses assuntos, contudo, acreditamos ser interessante uma
abordagem que aproxime o pensamento dos dois filósofos, que ainda são
atuais e relevantes.
Rousseau, como Sócrates, tem grande preocupação com o aspecto
humano e as implicações que a então “modernidade” provoca nos homens e,
ressalvadas as proporções, também é essa a preocupação primeira do filósofo
grego, que via a decadência dos costumes e de sua cidade acontecendo à sua
volta. Sócrates, como outros filósofos antigos, tentaram construir novas
teorias, discutindo idéias que pudessem instigar os seus concidadãos a se
preocuparem com a crise que havia se instalado em seu mundo, notadamente no
que diz respeito à vida moral e o apego às tradições. Sócrates, inclusive,
conclamava seus concidadãos a voltarem os olhos para dentro de si mesmos,
como apregoava o preceito órfico: Conhece-te a ti mesmo. Esta busca
do homem pelo homem, encontramos tanto em Rousseau, quanto em
Sócrates, observada através dos diálogos de Platão. Lourival Gomes Machado (1) concorda que a concepção moral de Rousseau tem um fundamento
mais amplo e que interessa ao fenômeno humano em sua totalidade, pois, o
objeto de concepção ética só pode ser atingido depois de estabelecido até
que ponto nele se revela a feição visível e palpável da natureza profunda
do homem. Observamos que seria como se Rousseau voltasse às fontes da
filosofia ocidental, retomando dos gregos a identificação do saber com o
conhecimento de si mesmo.
Segundo Rouanet, dentre os filósofos da Ilustração, caberia a
Rousseau desenvolver plenamente a dialética da reciprocidade. Se os
filósofos da Ilustração acentuaram, sobretudo o olhar que vê, relegando a
segundo plano o olhar que é visto, Rousseau desenvolve a reciprocidade, do
olhar que vê e que é visto. Quanto ao “olhar”, diz ainda Rouanet, que
Rousseau está plenamente no espírito da Ilustração quando denuncia os males
da aparência, quando tenta desmascarar os preconceitos, quando percebe na
separação entre o ser e o parecer a principal fonte de todos os desastres.
Em sua desmistificação do mundo ilusório, em sua tentativa de romper o véu
das aparências, atrás do qual se oculta a autoridade ilegítima, Rousseau é
um enciclopedista, outro exemplo é a frase do Emílio, segundo a qual
“a religião serve unicamente de
máscara ao interesse, e o culto sagrado, de salvaguarda à hipocrisia”.
Rousseau critica os outros filósofos porque eles retiraram o véu da
aparência somente para instalar-se mais comodamente num mundo privado de
valores. Para Rousseau, eles denunciam o falso aparecer, mas não querem construir
um mundo além da aparência. Neste caso, seu olhar fecha-se ao olhar do
outro, impedindo o advento de uma verdadeira transparência, que supõe uma
visibilidade simétrica, em que todos sejam transparentes a todos. A sua
censura às outras correntes da Ilustração não é por terem querido tornar
límpido um mundo opaco, mas por terem parado a meio caminho na busca de uma
totalidade translúcida. E é no mundo do Contrato social, que
observamos as fórmulas com que Rousseau exprime a reciprocidade das
vontades, que é a mesma com que descreve a reciprocidade dos olhares. Assim
como cada vontade se aliena na vontade geral e se recupera, mais rica em
substância, cada olhar se aliena no olhar do outro e nessa alienação se
reencontra, no momento em que é reconhecido. O cidadão é dois e um ao mesmo
tempo – manda como parte do poder soberano, e obedece como súdito do
Estado. Também os dois olhares – o que vê e o que é visto –, são duais e
unos ao mesmo tempo, a expressão ativa e passiva da mesma estrutura visual.
Para Rousseau, é preciso ver tudo, e para isso o olhar deve ser competente,
porque a ingenuidade o condenaria à cegueira, e igualitário, porque só a
reciprocidade pode fundar um mundo transparente. (2)
Um dos traços mais significativos do pensamento de Rousseau
talvez sejam os caminhos práticos que ele procurou apontar para o homem
alcançar o bem viver, a despeito de ter que viver socialmente. Rousseau fez
um importante estudo sobre as raízes do indivíduo na sociedade, indo em
busca dos sentidos de felicidade e liberdade, estabelecendo paralelos entre
o homem moderno e o selvagem, da pré-história, como encontramos no famoso Discurso
sobre a desigualdade, onde o filósofo aponta as causas das “diferenças”
entre os homens. Se a felicidade humana foi possível um dia, diz ele, é
porque os indivíduos ainda não tinham tantos compromissos como a
modernidade impingiu ao indivíduo gregário. O papel do Estado e o que ele
legisla para a população, via educação e acordos tácitos, parece não
corresponder aos anseios que o filósofo tinha para o indivíduo (isolado ou
na sociedade), afinal, o exercício de cidadania, passa, com certeza, pela
formação do indivíduo. Viver em sociedade acarreta problemas ao homem que,
em princípio, pode sentir-se desamparado quando as estruturas do poder, às
vezes, desatento, corrupto e instável, pouco se preocupa com aquele que
compõe a sociedade: o ser humano.
O tema da educação dos sentidos sempre fascinou os filósofos
da Ilustração. Os sentidos não educados são incapazes de perceber o mundo.
Suponhamos, diz Rousseau no Emílio, que se uma criança tivesse ao
nascer a força de um homem feito, que saísse já armado do seio de sua mãe,
como Palas saiu da cabeça de seu pai, seria então, um homem-criança, não
teria experienciado as situações normais de crescimento e de educação,
então, seria um perfeito imbecil, um autômato, uma estátua imóvel e quase
insensível. Não veria e não escutaria nada, tampouco conheceria alguém,
sequer saberia dirigir os olhos sobre aquilo que seria necessário ver. (3)
Para Rousseau, os homens, no intuito de sobreviverem, tiveram
de desenvolver-se fisicamente para mais fácil enfrentarem as perversidades
da própria natureza e confrontarem-se com os animais, com quem tinham que
medir forças. Rousseau vê nisso uma qualidade boa da natureza, assim como
do fato de o homem ter que viver e defender-se neste estado, sem as
facilidades que o mundo moderno permitiria. O homem, porém, pode escolher
entre o “enfrentamento” e a “fuga” para um lugar seguro, mas o homem
selvagem não pode confundir-se com o homem que temos diante dos olhos diz
ele, fazendo uma distinção importante entre esse e o homem na natureza, que
sozinho consigo mesmo, tem que sobreviver assim a toda e qualquer
dificuldade que se apresente. Contudo, o homem moderno conta com muitos
artifícios e facilidades técnicas produzidos pelo mundo civilizado para
suavizar sua vida e minimizar os seus esforços. Por sua vez, o homem
selvagem tem, por necessidade, de desenvolver as faculdades dos sentidos
para melhor poder atacar ou defender-se. Os animais e os homens estariam
igualados nesse aprendizado que o corpo faz para melhor adaptar-se à
natureza. Isso, no caso dos homens, teria sido corrompido pela evolução
social e no caso dos animais pela domesticação praticada pelos homens. Mas
existe algo além do corpo que seria o espírito e que pode depravar os
sentidos, exemplo disso seria a entrega aos excessos que os homens fazem
muitas vezes, ainda que isso lhes cause um mal maior. Isso também vai de
encontro com as exortações dos primeiros filósofos, tão avessos aos
excessos e às paixões que prejudicam e impedem o homem de trilhar o caminho
das virtudes morais. Para Rousseau, no entanto, o homem considera-se livre
para concordar ou resistir e é, sobretudo na consciência dessa liberdade,
que se mostra a espiritualidade de sua alma, então, o homem, tem,
diferentemente dos animais, a faculdade de aperfeiçoar-se. Para Rousseau, o
homem pode retroceder e voltar ao estágio em que nada tinha adquirido
ainda, voltando ao “estado primitivo” e perdendo tudo o que sua
“perfectibilidade” lhe fizera adquirir; porém, esta nova condição o
aproximaria novamente da felicidade original, tendo a condição de passar
dias tranqüilos e inocentes. O homem selvagem, por ser necessitado de menos
coisas que o homem civilizado, padece de males menores e em menor
quantidade, uma vez que vive para suprir suas necessidades básicas. Mas o
aperfeiçoamento do homem dependeria, é claro, do próprio desejo dele de
avançar, “progredir”, “aperfeiçoar-se”. Como isso se daria no homem selvagem?
Se ele sequer tem curiosidade acerca de algo diferente do que vive? Esse
homem é indiferente a essas questões e nada lhe espanta, fora o que cabe em
seu cotidiano fechado e ao sabor das suas primeiras necessidades. Rousseau
salienta que esse homem se entrega unicamente ao sentido da existência
atual, sem qualquer idéia do futuro, seus projetos se estendem apenas até o
fim do dia. O ideal consistiria em retroceder a esse regime de plena
liberdade individual e de inocência, em que homens e animais de certa
forma, irmanados, viviam sem outros problemas que não os de alimentação e
reprodução, desconhecendo, para ventura sua, leis expressas ou escritas e,
conseqüentemente, qualquer espécie de tirania, isso, é claro produziu forte
impacto na sociedade vigente à época de Rousseau, pois, devemos salientar,
que vicejava então, na Europa o despotismo, com os reis absolutos. A
servidão era assegurada por força do direito, e o tráfico de escravos
ocorria a olhos nus, a sociedade civil estava assentada, sem limitações,
para a classe dominante, sobre a instituição da propriedade. Neste caso,
então, como podiam os privilegiados senhores da aristocracia aceitar como
boa uma tese que afirmava que os frutos da terra a todos pertenciam, porque
a terra não era de ninguém? Não é à toa então, que a Academia de Dijon
rejeitasse esta peça revolucionária para premiar o texto de um sermonista,
Abade Talbert, autor de elogios e poesias, que teve, contudo, seu nome
esquecido, como bem destaca Rolando Roque Silva. (4)
Rousseau valoriza a comunicação e a premência da necessidade
para que o homem possa vencer a etapa entre as puras sensações e os mais
simples conhecimentos. Ele trata da relação do homem com outros homens, em
sociedade, objetivando, em princípio, suprir as necessidades de melhores
condições de sobrevivência e, uma vez que houve a geração de uma infinidade
de indivíduos, todos eles tiveram que buscar alternativas para que essas
relações pudessem ser efetivadas. Essa é uma idéia próxima daquela que
encontramos nos textos antigos de Platão e Aristóteles, isto é, é por
necessitarem de muitas coisas e pelo fato de o homem não bastar a si mesmo,
de não ser capaz de prover tudo sozinho, que ele se junta aos outros,
fundando a sociedade. Mas para Rousseau, o mesmo que provocaria o
desenvolvimento do homem também acabaria por pervertê-lo, ou seja, a
questão do trabalho e as artes que implicam o viver em sociedade,
respeitadas as convenções sociais e as necessidades cada vez maiores que o
progresso lhes impingiria, atrelaria os homens a um sistema de
sobrevivência bem pior que o anterior.
A utilização da linguagem já é a quebra da solidão deste
homem, é ela a base da fundação da sociedade, em princípio teria surgido no
próprio seio da família, onde havia a necessidade de uma relação mais
estreita (comércio doméstico e transmissão dos conhecimentos), a partir daí
esta prática teria se estendido mais amplamente entre os outros homens. A
comunicação tornou-se mais elaborada quando os homens começaram a
entender-se e a multiplicar-se, precisando de uma língua mais extensa. O
filósofo, porém, não abraça a questão sobre qual veio primeiro, as línguas
ou a sociedade organizada. O problema que ele enfrenta é a união, a reunião
dos homens, através das suas necessidades mútuas. Diferentemente de
Sócrates, para Rousseau, o fato de os homens terem buscado uns aos outros,
unindo-se por laços, quando da fundação da sociedade, seria uma verdadeira
miséria, pois eles passaram a viver, desde então, atormentados por paixões,
raciocinando sobre algo que não lhes diz respeito intimamente; é no
instinto que o homem encontra todo o necessário para viver no estado de
natureza. No estado de natureza os
homens não teriam porque estabelecer entre si qualquer espécie de relação
moral ou de deveres comuns, não necessitando serem bons ou maus, possuir
vícios ou virtudes. A moral para Rousseau é produto social, assim como a
linguagem. Então, comenta Lourival Gomes Machado, o homem natural só pode
ser concebido à margem de qualquer consideração ética, pois ele não é bom
nem mau, isso é o que assegura Rousseau, em franca oposição a Hobbes. (5) Nesse sentido,
o instinto de conservação, portanto, já se incluía na condição original,
que não é dirigido contra os semelhantes, senão apenas em favor de si
mesmo.
O homem, por sua vez, é dotado de piedade. É a piedade, para
Rousseau, anterior à reflexão e é por causa dela que os homens não são
monstros, é dela que decorrem todas as virtudes sociais. Para ele, a
piedade é um sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mais
fraco no homem civil. Há com a piedade uma ligação de identificação entre o
espectador e o sofredor, isso, talvez pudesse aproximar ainda mais, no
estado de natureza do que no estado de raciocínio, os homens entre si. Por
conseguinte, seria a vida social, então, a responsável pelo agravamento da
desigualdade entre os homens. Para Rousseau, estavam os homens no estado de
natureza muito mais preocupados em se defender do mal do que praticá-lo.
Eles não conheciam a vaidade, tampouco a consideração, a estima ou o
desprezo, não possuíam estas categorias ainda e, conseqüentemente, porque
não tinham nenhuma espécie de comércio, não possuíam também a noção do
“meu” e do “teu”. Encadeando-se nessa lógica, não tinham também idéia
verdadeira de justiça. A violência seria um mal fácil de ser reparado
(talvez não arquitetassem a vingança e não gastariam seu tempo na urdidura
da revanche). Rousseau acaba, então, de dar um estatuto muito complexo dos
homens selvagens, aproximando-os do estado de necessidade e de capacidade.
Ou seja, os seus sentimentos seriam mais puros, pois não teriam a
capacidade de engendrar e, portanto, de executar malefícios a outrem. Agem,
como agem, apenas movidos pela força interna de sua própria natureza que os
faz buscar viver as suas vidas, sorvendo-as a cada dia e isto lhes bastava
para suprir suas também necessidades básicas e para cada necessidade uma
capacidade se fazia necessária, rápida e eficaz.
Os laços que o indivíduo cria e desenvolve ao longo da vida
com os seus próximos é que vai determinar o grau de sua “virtude moral”,
pois, a vida que buscamos ainda é o bem-viver, mas é necessário
mudanças para que a verdade, sem disfarce e medo, sem sátira e bajulação,
apareça. A tarefa mais árdua talvez seja aquela de ensinar a felicidade aos
homens, educando-os para o exame de si mesmos. Em Rousseau, aliás, esta é
como que uma “missão”. No entanto, a história do pensamento ocidental nos
mostra que o homem sempre esteve preocupado com estes assuntos, mas, por
mais que queiramos uma fórmula mais fácil e rápida, ela não pode suprir
aquilo que a prática da antiga máxima - “conhece-te a ti mesmo” -,
reputa como sendo a via mais verdadeira para o conhecimento. Faz-se
necessário salientar a urgência, para todos nós, de tratarmos de temas como
a busca pela verdade, a “verdadeira” cidadania, além da educação do bom
cidadão, principalmente quando queremos “re-pensar” o papel do homem,
enquanto ser individual ou quando em sociedade com outros indivíduos. Se
socializar pode significar, na linguagem de Rousseau, uma forma de
“degradar” ou de “transformar” a natureza dos homens, em termos normativos,
a boa socialização seria aquela que não contrariaria a natureza humana,
isto é, sua essência, pois se esta é corrompida, a socialização é má e isso
já definiria aquilo que a maior parte dos homens não quer para si.
Rousseau retoma,
em parte, uma tradição grega arcaica, dos “mestres da verdade”. Se para
Rousseau, dizer a verdade é muito perigoso, ele próprio, porém, confessa
que foi justamente a hostilidade de suas idéias que reforçou seu amor à
verdade e o encorajou sempre a defendê-la, como lemos em seus Fragmentos
autobiográficos. A procura e defesa da verdade, alétheia, como
bem definiu Heidegger, é um desvelamento, e essa postura de Rousseau
reflete uma outra muito mais antiga, a dos filósofos primeiros que
postulavam sobre o espanto que a sophia provoca nos indivíduos, fazendo com que
queiram adquirir um conhecimento mais verdadeiro sobre o que de fato as
coisas são e sobre a realidade em que estão inseridos, fugindo daquilo que
a aparência apenas mostra.
Rousseau persistiu no destaque de que havia uma missão: a
busca pela verdade das coisas e a insistência em afirmar tanto a liberdade
quanto a felicidade para os seres humanos. Ele também registra seu
desencanto ao sentir o quanto estava longe do êxito de sua “missão”, aquela
a que se entregara durante toda vida: a de “mostrar aos homens o caminho da verdadeira felicidade ao
ensinar-lhes a distinguir a realidade da aparência”. (6) Ele diz que não
prega a ação revolucionária, embora acredite que suas idéias produzam
sempre grande impacto. Denunciar, fazer o diagnóstico é a sua tarefa;
outros que se encarreguem da cura, diz ele, em Meu Retrato: “Eu sou observador e não moralista. Eu
sou o botânico que descreve a planta. Ao médico cabe regular-lhe o uso.”(7) Mestre da verdade, Rousseau fala ao homem e é do homem que
ele vai tratar em sua obra. No Emílio, o estudo da condição humana
ensina o homem bem educado a suportar os revezes da vida. Nas Cartas
morais lastima que nos seja menos conhecido precisamente o que mais nos
importa conhecer, isto é, o homem. Mas é nas Confissões, que ele se
mostra preocupado com aquilo que ainda virá, dizendo, contudo, estar seguro
da relevância de seu tema, conclamando portando, os que, no futuro,
decidirão o destino de sua obra a, “em
nome de toda a espécie humana, não destruir uma obra única e útil, que pode
servir de peça de comparação para o estudo dos homens, que certamente ainda
está por começar.”
Por fim, Rousseau
ainda nos instiga a pensar e re-pensar o homem, o indivíduo, o homem real,
aquele que pode estar ao desamparo da própria sociedade que ajudou a criar.
Ele crê na possibilidade de colaborar de alguma forma para um mundo melhor,
diz ele, em Fragmentos políticos, que gostaria de ver algum dia um
homem de Estado com cidadão, que esse homem utilizasse dessa autoridade
para trabalhar em prol de melhorias, objetivando a felicidade pública. Ao
filósofo agrada a idéia de que sua obra possa fazer nascer nesse homem de
Estado, idéias mais úteis, que possam, enfim, tornar os homens melhores e
mais felizes, assim sendo, ele, Rousseau teria contribuído de alguma forma
para isso acontecer e isso remeteria à sua decantada “missão”.
Essa sua postura
nos remete àquela outra, de Sócrates, que também dizia ter uma “missão”:
fazer com que todos pautassem suas vidas, assim como ele, na prática de uma
vida virtuosa, vivendo no encalço das virtudes, revendo sempre suas ações,
perseguindo sempre uma vida melhor para si e para os outros, como vemos na Apologia,
onde descreve a sua verdadeira “missão”, dizendo: “Eu sou o inseto que todos os dias não
pára nunca de vos despertar, de vos aconselhar, de repreender cada um de
vós e que encontrareis por toda parte pousado perto de vós.” (Apologia
30a). Parece que esses dois pensadores, cada um a seu modo, ao destacar
como uma “missão”, trazer aos outros homens uma nova forma de conduzir suas
vidas, estão a nos dizer, ainda, que é possível estabelecer parâmetros para
alcançarmos, na medida do possível, um melhor comportamento no trato com o
outro, que nos permita, dessa forma, viver uma vida de melhor qualidade.
Notas
(2) Vide comentário de ROUANET, Sérgio
Paulo. O olhar. Olhar iluminista. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 135/137.
(3) ROUSSEAU, Emile. Paris, Garnier Flammarion,
1966, p. 69.
(4) SILVA, Rolando Roque da.
Jean-Jacques Rousseau, um pensador controvertido. In: O contrato social
e outros escritos.São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1999, p.16.
(5) Op. cit., p. 39.
(6) Conf. Rousseau
juiz de
Jean-Jacques, 1º Diálogo, p.
728.
(7) ROUSSEAU,
J.-J. Meu retrato, p. 1120.
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