Volta
Descobrindo
Rousseau em Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato
Cristina Maria Vasques
Universidade Estadual Paulista / Araraquara
Introdução
Impossível
contestar-se o caráter formativo e educativo da obra infantil lobatiana.
Formativo porque, ao longo das últimas nove décadas, vem influindo, de
forma marcante, na formação de inúmeros brasileiros que têm acesso a ela,
como aponta Penteado (1997), ou como assume Ruth Rocha (1), afirmando que essa influência foi crucial
em sua decisão de escrever somente para crianças.
O caráter educativo da obra
lobatiana define-se pela união da ficção e da informação, numa “didática”
que possibilita o interesse da criança pelo assunto “dado”, transformando,
de acordo com Moneta (1982, p.197), “[...] em saborosas e atraentes lições
os conhecimentos quase sempre áridos da aritmética, da gramática, da
geografia, da história do mundo ou da evolução das ciências”, tornando
“acessível e até sedutor para a infância todo o intrincado mundo da
mitologia grega.”
Para Lobato, a
criança, imaginação e fisiologia, é possuidora de um cérebro ainda limpo de
impressões, tremendamente receptivo. Por isso, se recebe coisas ruins,
“venenos científicos”, sua mente fica “envenenada”, escravizada (LOBATO,
1964, p.346), tolhida da liberdade de pensar, agir, criticar ou imaginar.
Então, uma vez crendo que “os adultos não tinham mais conserto, cumpria
salvar os menores.” (DONATO, 1982, p.119), ou seja, as crianças precisavam
ter semeadas, em seus cérebros ainda não envenenados e fecundos de
receptividade, idéias. Idéias carregadas de ética, moral e, por que não, de
uma postura politicamente correta, que beneficiasse, além do indivíduo, a
coletividade, a nação.
Lobato e Rousseau
Lobato
tem muito em comum com Jean-Jacques Rousseau, filósofo de quem,
indubitavelmente, recebeu significativas influências, direta ou
indiretamente, embora o cite muito pouco em sua obra, entretecida por
ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em Reinações de Narizinho, Rousseau é citado apenas uma vez,
quando uma abelha explica o funcionamento da colméia às crianças do sítio,
falando que cada uma tem o governo dentro de si, e por isso não precisam
receber ordens de ninguém. Narizinho associa essas idéias ao
filósofo, lembrando-se das leituras de sua avó (LOBATO, 1959, p.74).
De
fato, Rousseau preocupou-se, legando essa preocupação à posteridade
principalmente em sua obra Do
Contrato Social, com a constituição de uma sociedade em que a vontade
de todos (ou pelo menos da grande maioria), cidadãos livres, fosse a
autoridade soberana, como acontece na organização da colméia que as
crianças do Sítio do Picapau Amarelo visitam, onde todos conhecem suas
funções e não há necessidade de autoridade. Mas a “fórmula” rousseauniana
para “produzir” indivíduos que tenham o “governo dentro de si” é encontrada
em sua obra Emílio ou Da Educação,
em que o filósofo propõe uma nova educação, com bases no homem naturalmente
bom em sua origem e nas possibilidades de livrá-lo da corrupção que o
circunda na sociedade em que vive. Em sua proposta pedagógica, o filósofo
europeu coloca Emílio, personagem fictício, em contato direto com a
natureza, retirando-o do convívio social, pois acredita que esse convívio
abafa, no indivíduo, a sua própria natureza que é, em sua opinião,
originalmente boa e pura. Assim, acredita que a educação de um indivíduo
não pode ser satisfatória se esse indivíduo vive em uma sociedade em
que
[...] o excesso de ciência e arte acaba
por corromper o homem, tornando-o hipócrita, acentuando e generalizando seu
egoísmo, jogando uns indivíduos contra os outros e, nessa corrida
insaciável por mais comodidades, levando-os a se enredar em uma cadeia
infernal de relações de submissão. [...] as ciências e as artes acabam por
consolidar esses vícios, ensinando aos homens não o cumprimento de seus
deveres, mas a se enganarem mutuamente e melhor dissimularem suas intenções
puramente egocêntrica. (FORTES, 1996, p. 41).
Desta
forma, Rousseau (1995) propõe “salvar” o indivíduo, permitindo que sua
formação acompanhe a “marcha da natureza”, ou seja, “moldando-o” pela
educação, que deve ser o mais “natural” possível e servir para proporcionar
ao homem tudo aquilo que ele não tem ao nascer e que precisa quando adulto:
força, assistência e juízo. Porém, a educação do homem, segundo Rousseau
(1955, p.8-9), tem origem em três fontes: a primeira delas é própria
natureza, que determina o desenvolvimento interno dos órgãos e das aptidões
e talentos. A segunda fonte são os homens, que ensinam a utilizar esse
desenvolvimento. A última são as coisas, que proporcionam ao indivíduo sua
experiência sobre os objetos que o rodeiam. Dessas três, apenas a fonte da
natureza não depende dos homens e, por isso, é para ela que as outras duas
devem convergir, a fim de que haja uma educação coerente e eficiente, que
permita ao indivíduo, quando adulto, viver em sociedade sem deixar-se
corromper por ela.
Também
nisso crê Lobato (1969, p.143), ao afirmar que a natureza cria, e a
educação, desde que adequada, pode somente revelar aquilo que a natureza
criou: “[...] nos educados só encontrei qualidades que a educação [dos
homens] apenas pôs a nu, não criou, não justapôs. É como o banho revelador
na chapa fotográfica – tira o que está latente lá dentro.”
Como
Rousseau, Lobato não acredita na educação e na pedagogia aplicadas em sua
época, e propõe, da mesma forma que o filósofo havia feito um século e meio
antes, retirar a criança da cidade e educá-la junto à natureza. Para isso,
não somente cria um personagem, mas vários, e um mundo maravilhoso em forma
de propriedade rural, o Sítio do Picapau Amarelo, natural já a partir de
seu nome, onde os personagens, crianças, adultos, coisas, vegetais e
animais – a própria natureza – partem em aventuras que os educam,
fornecendo-lhes não somente o conhecimento prático necessário ao
aprimoramento de suas “naturezas”, mas também o conhecimento moral, ético,
político e até mesmo ideológico que lhes permite não se corromperem diante
daquilo que Lobato (1964, p.332) chama de uma “[...] vida dentro da
atmosfera da incompreensão, da inveja e da malevolência nacional.”
Na
pedagogia proposta por Lobato, assim como na proposta por Rousseau (1994,
p.51-53) em seu Projeto Para a
Educação do Senhor de Sainte-Marie, a criança deve aprender de forma
prazerosa, sem “idéias de obrigação e de estudo regrado”, atentando-se
“[...] menos em cansar sua memória com uma listagem de leis e deveres do
que em dispor seu espírito e seu coração para conhecê-los e apreciá-los à
medida em que se apresentarem as oportunidades para que sejam
desenvolvidos.”, permitindo-se que ela própria experimente, errando algumas
vezes, até que, como afirma em Emílio,
“[...] ela esteja em condições de vê-los [aos seus erros] e corrigi-los ela
própria. [...] Se ela não se enganasse nunca, não aprenderia tão bem.”
(ROUSSEAU, 1995, p.180-181).
Partilhando
dessas idéias, Lobato coloca seus personagens – e seus leitores,
conseqüentemente, por meio da imaginação e da fantasia – já em sua primeira
obra infantil, Reinações de Narizinho,
em contato “direto”, por exemplo, com mundos diferentes: reino das abelhas,
das formigas, dos macacos, das fábulas, do fundo do mar, etc. E com
personagens diversos, desde os históricos, como La Fontaine, Esopo e
Lampião, ou os das histórias em quadrinhos, TV e cinema, como o Gato Félix
e Tom Mix. Coloca-os também junto de personagens das histórias de autores
consagrados, como o Pinóquio, a Alice do País das Maravilhas e o Barão de
Münchhausen dentre tantos, e de outros, dos contos da oralidade, do
folclore e da mitologia clássica. Isso porque, como afirma também Gibello
(2004, p.70), ele crê que as crianças podem mudar o Brasil, mas só se
tiverem contato com todo o conhecimento produzido pela humanidade.
Ainda
que exista uma aparente recusa de Rousseau em assumir o poder da leitura
como método pedagógico para a formação do indivíduo, tanto ele como Lobato
acreditam que “[...] o gosto pelas letras é de grande recurso na vida
[...]”, e que “[...] sempre será belo e útil o saber.” (ROUSSEAU, 1994,
p.75 e capa/costas). No caso das crianças brasileiras, aquele saber
motivado pelo poder que a leitura tem de despertar a curiosidade do leitor ao
vislumbre do conhecimento universal e nacional colocado por Lobato em sua
obra infantil.
Mesmo
havendo diferenças entre o pensamento de Lobato e o de Rousseau, o
descontentamento mútuo com o modelo pedagógico em uso em suas épocas os
une, bem como a proposta de um novo
modelo, revolucionário, em que a criança seria valorizada como tal e não
mais entendida como um “adulto em miniatura”, como bem definiu Philippe
Ariès em História Social da Família e
da Criança. Uma proposta em que se reconheceriam suas especificidades,
seus gostos e suas necessidades diante de um mundo que caminhava a largos
passos, para Rousseau, em direção ao capitalismo e, em Lobato, rumo ao
imperialismo americano, cognominado depois de “globalização”.
Para
demonstrar o método educativo-formativo de sua proposta pedagógica,
Rousseau escreve Emílio, criando um personagem com o mesmo nome. Lobato
escreve, com intenção semelhante, Reinações
de Narizinho, criando o Sítio do Picapau Amarelo, que, mesmo não sendo
personagem, é
[...] o protagonista fundamental da saga, grupo de pessoas que
não agem isoladamente, é uma enturmação, e lugar em si, moradia,
sítio, com as suas peculiaridades arquitetônicas e de natureza (as
jabuticabeiras, a floresta, a varanda, as galinhas, o pinto Sura, a vaca Mocha,
o clima,o mês do ano, os marimbondos, os insetos, o riacho, os passarinhos,
etc.).
A interligação dos personagens entre si e
dentro de si para com o sítio forma uma unidade inseparável [...] (MARINHO,
1982, p.190).
Rousseau
dá a Emílio um preceptor. No sítio do Picapau Amarelo, já em Reinações de Narizinho, D. Benta,
pessoa esclarecida, e Tia Nastácia, detentora do saber popular, têm esse
papel. Os dois autores acreditam na pureza e nas qualidades inatas do ser,
desenvolvendo seus métodos pedagógicos de forma a buscar uma formação
universal capaz de orientar seus personagens a uma vida adulta em benefício
da coletividade.
Nas
duas obras, a educação é transmitida, dentre outras formas, por meio de um
jogo que remete a Platão: perguntas que levam à reflexão e a respostas ou a
outros questionamentos, com o objetivo de estimular o raciocínio do
“educando”. A liberdade, bem como o erro, também fazem parte desse
“método”, embora as decisões tomadas pelos personagens sempre tenham a
influência, direta ou velada, de seus mentores.
Os
dois autores ainda dispensam a família como educadora, embora Lobato
coloque uma avó, D. Benta, nesse papel. Mas as avós têm relações afetuosas
e descontraídas com os netos, não pressionam nem atrapalham.
[...] Especialmente, no caso de uma avó
como Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, inteligente e culta, enérgica e
compreensiva, sensata e carinhosa, realista mas capaz de topar as mais
fantásticas brincadeiras. Lobato teve a habilidade de eliminar de suas
histórias o elemento perturbador que seriam os pais, com as ansiedades,
atritos e problemas que assolam normalmente até as melhores relações entre
pais e filhos. (MARINHO. In: DANTAS, 1982, p. 188).
Rousseau
cria Emílio e Lobato, Emília, personagem-boneca que se destaca de todos os
outros. Em Reinações de Narizinho, a boneca sofre um processo radical de
mudança, passando de um estado de total dependência de sua “dona”
Narizinho, para um estado de independência – e, conseqüentemente,
liberdade. Passa, também, pelo processo de aquisição da linguagem –
metáfora da própria evolução da humanidade, pelo desenvolvimento de sua
personalidade, pela aprendizagem da escrita mesmo sem ir à escola, pela
aprendizagem do mundo, enfim.
Emília
demonstra, muitas vezes, um potencial amor ao próximo e um alto senso de
justiça, já em Reinações de Narizinho. Nessa obra, exercitando algumas de
suas mais marcantes características, a ironia e o sarcasmo (CAVALHEIRO,
1955, p.70-72), Lobato escolhe justamente uma fábula – gênero desaprovado
como coadjuvante da educação infantil, por destacar inverdades, segundo
Rousseau (1995, p.121-127) – para mostrar o caráter altruísta da boneca.
Aponta que Emília prefere a cigarra, em oposição à idéia de Rousseau (1995,
p.125-126) de que as crianças, por amor próprio, sempre escolhem como
exemplo para si os mais fortes, ainda que não sejam os mais honestos.
Assim, dando não uma “lição de desumanidade” (ROUSSEAU, 1995, p.126), mas
de humanidade, Emília ajuda a cigarra da fábula:
A
triste cigarra, com o nariz esborrachado, ia pendendo para trás para
morrer, quando Emília a susteve.
-
Não morra, boba! Não dê esse gosto para aquela malvada. Está com fome? Vou
já trazer um montinho de folhas. Está com frio? Vou já acender uma
fogueirinha [...]
A
cigarra comeu as folhinhas que a boneca lhe trouxe, aqueceu o corpo na
fogueirinha que a boneca lhe acendeu. Sarou da tísica imediatamente e quis
começar a cantar. (LOBATO, 1959, p. 258).
E
depois, reforçando a escolha pela cigarra e não pela formiga, ainda que a
última “levasse a melhor” de acordo com a fábula de La Fontaine, bem como o
senso de justiça da boneca, ainda em início de formação, Lobato permite que
Emília aplique à formiga um castigo:
[...] temos que ajustar contas com a formiga.
[...] Emília mandou que a cigarra batesse na porta outra vez.
A cigarra obedeceu, [...] Veio a formiga espiar quem era. [...] Emília a
agarrou pela perna seca e a puxou para fora.
- Chegou tua vez, malvada! Há mil anos que a senhora me anda a
dar com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da
vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca!
E voltando-se para a cigarra:
- Amor com amor se paga. Eu seguro a bruxa e você malha com a
porta no nariz dela. Vamos!
A cigarra cumpriu
a ordem, e tantas portadas arrumou no nariz da formiga, que a pobre acabou
pedindo socorro ao Senhor de La Fontaine, seu conhecido a longo tempo.
O fabulista interveio.
- Basta, bonequinha! – disse ele. A formiga já sofreu a sova
merecida. [...]
Emília soltou a formiga surrada, que lá se foi para o fundo do
formigueiro com o nariz deste tamanho e mais tonta do que se tivesse bebido
um cálice de formicida. (LOBATO, 1959, p.258-259).
Considerações
finais
Neste
estudo procurou-se unicamente apontar a influência do pensamento de
Rousseau na obra infantil de Monteiro Lobato, embora se possa também supor
que Emília seja uma versão masculina de Emílio, paródia lobatiana que
busca, para além do intertexto, da ironia, da sátira ou da alusão, uma
continuidade, uma reorganização do passado, assinalando “o desejo de por a
‘refuncionar’ essas formas” (HUTCHEON, 1989, p.15, grifo do autor). Mas a
paródia é outro caso, legado a outros estudos.
Aqui,
o objetivo foi mostrar que cerca de cento e cinqüenta anos depois, as
idéias e ideais de Rousseau estavam, na obra de Lobato, tão “vivos” quanto
o Visconde de Sabugosa depois de solto do pé do pássaro roca por um tiro do
Barão de Münchhausen, que cortou a corda que o prendia, fazendo-o cair ao
mar:
- Você esqueceu de despedir-se do Visconde, Pedrinho! Ele
também é gente... [...]
- Que idéia! Pois o Visconde não morreu, Emília?
- Morreu mas não acabou ainda! – replicou a boneca correndo na
direção dele com o resto do Visconde na mão. Despeça-se deste toco, que é
bem capaz de virar gente outra vez. (LOBATO, 1959, p. 296).
Assim como o
Visconde “virou gente outra vez” tantas vezes quantas foi destruído, por
algum motivo, nas narrativas infantis lobatianas, Rousseau é
“revivescido” – tomando um temo emprestado de Octavio Paz - pelo autor brasileiro, por meio de suas
idéias e seus ideais, muitos deles “transmitidos” pelos personagens que
participam das Reinações de Narizinho.
Referências
ABRAMOVICH
Fanny. Lobato de todos nós. In: DANTAS, Paulo (Org.) Vozes do tempo de
Lobato. Brasil: Traço, 1982, p.145-157.
MARINHO, João Carlos. Conversando de Lobato. In: DANTAS, Paulo
(Org.) Vozes do tempo de Lobato. Brasil: Traço, 1982, p.181-193.
Notas
(1) Em entrevista a Fanny Abramovich, publicada parcialmente no
artigo Lobato de Todos Nós, na obra organizada por Dantas (1982, p.
155) Vozes do Tempo de Lobato, em
comemoração aos 100 anos de nascimento do autor brasileiro.
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