Volta
Para uma genealogia do
bem e do mal em Rousseau
Custódia Martins
Universidade
do Minho
Introdução
O pensamento filosófico de Jean-Jacques Rousseau direcciona-se para o conhecimento do Homem e para a sua
condição. Para o autor genebrino este conhecimento é aquele que é mais útil
e o que está menos avançado. Quanto mais a espécie
humana pretende progredir mais se distancia do seu estado primitivo, “é à
força de estudar o homem que nos tornamos incapazes de conhecê-lo”
(Rousseau, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p. 150).
De acordo com o autor, só podemos resolver as restantes
questões se aquela que é relativa ao homem estiver respondida. Na resposta
à pergunta quem é o homem?, está
o centro para onde convergem todas as respostas para as outras questões.
Rousseau refaz a pergunta original e pergunta, quer pelo homem primitivo,
quer pelo homem social? Porém, a resposta a cada uma destas questões, está
envolta numa dificuldade, a de que o homem está em constante mudança. Mudança
essa que se inscreve, quer numa linha de tempo, quer numa linha de espaço
determinado. Daí resultando, inevitavelmente, a desfiguração da alma
humana. É na mudança que se deve procurar a origem da desigualdade entre os
homens. Pretende assim Rousseau encontrar o momento histórico que permita
estabelecer aquilo que é original e aquilo que é artificial na natureza do
homem:
Pois não é de pouca monta o empreendimento de distinguir o que há de original
e de artificial na natureza atual do homem e de
bem conhecer um estado que já não existe, que talvez não tenha existido,
que provavelmente jamais existirá, e do qual é necessário, porém, ter
noções exatas para bem julgar nosso estado
presente (Rousseau, op. cit., p. 151).
Podemos concluir
com Baczko (Rousseau Solitude
et Communauté, Mouton, Paris, 1974, p.107) que, para Rousseau, as
funções da história assumem uma concepção pragmática. Deste modo, quando
olhamos para a história da sociedade humana ela mostra-nos imediatamente
como nada é “menos estável entre os homens do que essas relações
exteriores, produzidas com mais frequência pelo acaso do que pela
sabedoria” (Rousseau, op. cit., p.155). Por isso
mesmo é que é necessário conhecer “a base inabalável” do edifício e então
“aprende-se a respeitar-lhe os fundamentos” (Rousseau, op.
cit., p.156). É justamente nesta medida, que Baczko afirma: “Rousseau construit une philosophie de
l’histoire sans s’occuper de l’étude historique. En d’autres termes, il est
un philosophe de l’histoire sans être historien. Sa réflexion sur le sens
de l’histoire prend le pas sur son intérêt pour le cours des événements
historiques” (op. cit., 107).
1. Dois modos de desigualdade: natural vs. convencional
Rousseau inicia
o texto afirmando que o objecto do seu discurso são
os homens. Começa por apresentar aquilo que considera serem os dois modos
de desigualdade no que se refere à espécie humana. Por um lado, aquela “a
que chamo natural ou física, por ser estabelecida pela natureza, e que
consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das
qualidades do espírito ou da alma” (Rousseau, op.
cit., p.159); por outro lado, aquela “a que se pode chamar desigualdade
moral ou política, por depender de uma espécie de convenção e ser
estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens”
(Ibidem).
Nesta distinção,
feita pelo autor relativamente à desigualdade entre os homens, é possível
estabelecer o momento em que se pode encontrar em Rousseau a indicação para
a formulação de uma genealogia do bem e do mal. Isto, porque, de acordo com
o autor, este Discurso trata “de apontar, no progresso das coisas, o
momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à
lei; de explicar por qual encadeamento de prodígios
o forte pôde resolver-se a servir o fraco, e o
povo a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo
preço de uma felicidade real” (Rousseau, op.
cit., p.160).
Dentro deste
contexto, o que é importante é ter em consideração a noção de mudança, quer
quando ela surge como um movimento para a frente,
a que Rousseau chama progresso, quer quando surge como um movimento para
trás, a que podemos chamar nostalgia. Em nosso entender, a desigualdade que
é estabelecida pela natureza, está fora de qualquer movimento temporal; ao
contrário, a desigualdade estabelecida pelos homens está dentro do
movimento temporal, ou seja, no tempo histórico. A desigualdade que é
estabelecida pela natureza é originária, posiciona-se sempre como anterior
a qualquer ponto inicial e, neste sentido, é aquela que convém ao ser
humano; a desigualdade que está dependente de uma convenção insere-se, por
seu turno, numa cronologia (passado, presente e futuro). Na medida em que
se posiciona num destes tempos esta última é aquela que menos convém ao ser
humano. Neste sentido Rousseau afirma:
Há, sinto-o, uma idade em que o homem individual gostaria de
deter-se; procurarás a idade em que desejarias que tua espécie se tivesse detido.
Descontente com teu estado presente, por razões que anunciam à tua infeliz
posteridade maiores descontentamentos ainda, talvez desejasses poder
retroceder. E esse sentimento deve constituir o elogio de teus primeiros
ancestrais, a crítica de teus contemporâneos e o medo daqueles que tiverem a infelicidade de viver depois de ti (Rousseau,
op. cit., p.162).
Ora, é a confusão
entre estas duas espécies de desigualdade entre os homens que faz com que
muitas vezes a leitura de Rousseau surja paradoxal ou induza a leituras abusivas. Podemos dizer que Rousseau é um
nostálgico, na medida em que apela constantemente para um estado natural. A interpretação
feita por Baczko é clara neste aspecto:
La “critique su
siècle” et la critique du progrès acquièrent une signification sous-jacente
qui est la nostalgie de l’état pré-individualiste
de l’homme, d’une existence irréflexive dans
laquelle l’individu se libérerait de ses tensions internes et du besoin de
se définir lui-même; la nostalgie d’une existence dans laquelle le
sentiment de sa propre personnalité ne serait pas liée avec le sentiment
“d’être tiré de l’ordre” et avec la nécessité de se débattre contre le
monde de l’histoire et contre soi-même. Cette nostalgie se fond avec
l’image de “ l’état de naturel”, ainsi qu’avec une exhortation à un “retour
aux origines” qui serait un retour à soi-même et la négation du processus
de l’individualisation, tel qu’il s’est déroulé dans l’histoire (op. cit., p. 136).
Contudo,
Rousseau tem consciência “que o primeiro homem, tendo recebido
imediatamente de Deus luzes e preceitos, não estava ele mesmo nesse estado”
(Rousseau, op. cit., p.161). Porque razão então
considerar a hipótese de uma estado natural? Porque, como ele próprio
reconhece, “não se devem tomar as pesquisas que se podem realizar sobre
esse assunto por verdades históricas, mas somente por raciocínios
hipotéticos e condicionais” (Ibidem).
1.1 – A dimensão física: o princípio da
conservação
Aquilo que Rousseau se propõe fazer é uma descrição
do homem “tal como deve ter saído das mãos da natureza” (Rousseau, op. cit., p.164). Assim, começa
por fazer uma descrição do homem tendo em consideração a sua dimensão
física. Ele começa por apresentar o homem como o único animal que pertence
a uma espécie sem um instinto próprio, vendo-se assim conduzido a uma
condição frágil entre os outros animais. Contudo, o facto
de o homem selvagem reconhecer o seu corpo como o único instrumento que
possui e que lhe possibilita desenvolver “todas as suas forças à
disposição” (Rousseau, op. cit.,
p.165), confere-lhe uma autonomia fundamental e o desenvolvimento de uma
capacidade de apropriação que o faz elevar-se em relação às outras
espécies.
É neste contexto
que o autor estabelece a primeira distinção entre o homem selvagem e o
homem que vive em sociedade, mostrando como o último se encontra num estado
de inferioridade relativamente ao primeiro: “sendo o corpo o único
instrumento conhecido pelo homem selvagem, ele o emprega em diversos usos,
dos quais, por falta de exercícios, os nossos são incapazes, e é nossa
indústria que nos tira a força e a agilidade que a necessidade o obriga
adquirir” (Ibidem). A segunda distinção que estabelece refere-se ao
conjunto das causas que podem debilitar o homem e os outros animais, como é
o caso das enfermidades naturais. No entanto há doenças que só afectam o
homem que vive em sociedade, e essas, sim, são-lhe nocivas; veja-se o que
escreve Rousseau:
(…) os excessos de toda a espécie, os
arrebatamentos imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgotamento
do espírito, os desgostos e os inúmeros pesares que se experimentam em
todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas: eis a
prova de que a maioria de nossos males é obra nossa e de que os teríamos
evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e
solitária que nos era prescrita pela natureza (op.
cit., p.169).
Ou seja, o autor atribui a origem do mal
ao momento em que o homem procura encontrar mais comodidades do que aquelas
que a natureza lhe concedeu a si e aos outros animais (surgindo a ideia de progresso enquanto movimento para a frente). O autor pretende ser conseqüente quando
afirma peremptoriamente o seguinte:
Evitemos, portanto, confundir o homem selvagem com os homens que temos
diante dos olhos. (…) Dá-se o mesmo com o próprio homem: ao tornar-se
sociável e escravo, torna-se fraco, temeroso, rastejante, e sua maneira de
viver, indolente e efeminada, acaba por debilitar-lhe ao mesmo tempo a
força e a coragem (Rousseau, op. cit., p.170).
Parece-nos
que se torna claro que a distinção estabelecida entre homem da natureza
e homem da sociedade é determinante para se situar uma genealogia
do bem e do mal em
Rousseau. Para o autor, aquilo que é fundamental ao homem
para permanecer no estado de natureza que lhe é próprio, é que este tenha
como único cuidado a sua conservação. Neste sentido, apenas deve
desenvolver as faculdades de ataque e de defesa; tudo o que ultrapasse este
cuidado são excessos que transportam o homem do estado natural para o
estado social.
1.2 - A dimensão metafísica e moral: o
princípio da comiseração
1.2.1 – A espiritualidade e
perfectibilidade
Num
segundo momento, Rousseau estabelece a distinção entre os homens e os
animais tendo em consideração a dimensão metafísica e moral. Se, por um
lado, a natureza tem um papel preponderante nos animais, visto que é ela
sozinha que desempenha todas as funções de manutenção, por outro lado, com
o homem, o mesmo não sucede. O homem surge como agente livre, e é nessa
medida que se entrega a excessos, visto que o
espírito supera os sentidos e a vontade manifesta-se quando a natureza já
serenou. Por isso é que o autor afirma que o animal “escolhe ou rejeita por
instinto”, enquanto o homem, “por um ato de liberdade” (Rousseau, op. cit., p.172).
É
por possuir a faculdade de escolher que o homem é o único ser capaz de
manifestar actos espirituais. Como refere
Rousseau:
Portanto, não é
tanto o entendimento quanto a sua qualidade de agente livre que confere ao
homem sua distinção específica entre os animais. A natureza manda em todos
os animais, e o bicho obedece. O homem sente a mesma impressão, mas se
reconhece livre para aquiescer ou para resistir, sendo
sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a
espiritualidade de sua alma (…) (Rousseau, op. cit.,
p.173).
Também
a faculdade de aperfeiçoamento estabelece a diferença e distancia o homem
do animal. É esta faculdade que de acordo com novas circunstâncias permite
o desenvolvimento de todas as outras. Para Rousseau as paixões são o elemento determinante que faz com que a nossa
razão se aperfeiçoe, “só buscamos conhecer porque desejamos usufruir, não
sendo possível conceber por que aquele que não tivesse desejos nem temores
se daria ao trabalho de raciocinar” (Rousseau, op. cit.,
p.175). Rousseau considera que as paixões são fruto das
nossas necessidades ou “mero impulso da natureza” (Ibidem). Nessa
medida, “o homem selvagem, privado de qualquer tipo de luzes, só
experimenta as paixões dessa última espécie; seus desejos não ultrapassam
suas necessidades físicas” (Ibidem). No que se refere à aquisição de novos
conhecimentos o homem selvagem é descrito, por Rousseau, do seguinte modo:
Sua imaginação
nada lhe descreve, seu coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades
encontram-se tão facilmente ao alcance da mão e ele está tão longe do grau
de conhecimentos necessários para desejar adquirir outros maiores, que não
pode ter nem previdência, nem curiosidade (Rousseau, op. cit., p.176).
Ao
nível da dimensão temporal, na relação que o homem selvagem estabelece com
o tempo histórico, Rousseau diz-nos o seguinte:
Sua alma, que nada
agita, entrega-se apenas ao sentimento de sua existência atual, sem nenhuma
idéia de futuro, por mais próximo que possa ser, e seus projetos, limitados
como suas vistas, mal se estendem ao fim do dia (Ibidem).
2. O movimento de desconstrução em Rousseau
É
no Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens que podemos situar de um modo
mais preciso a origem de um putativo plano de desconstrução
em Rousseau. A
distinção que é feita entre o homem natural e o homem social é a premissa a
partir da qual Rousseau é capaz de desconstruir
tudo o que foi pensado sobre a condição humana. A crítica de Rousseau a
Hobbes consiste em dizer que o filósofo inglês acaba por não conseguir
perceber verdadeiramente a natureza humana. E por quê? Precisamente porque
não foi capaz de ter feito um movimento de regressão (o movimento para
trás) até ao ponto inicial. É como se Hobbes tivesse partido do ponto 1 e ignora-se completamente que até chegar a este ponto
é preciso percorrer o espaço que existe entre 0 e 1. Daí que, Trousson citando Gouhier, diga o seguinte:
Si l’on veut
découvrir les origines de l’inégalité, disait-il, ne convient-il pas de
savoir d’abord ce que pouvait être originel, antérieur aux conventions socials? Cet état, reconstruisons-le par spéculation,
non comme une époque préhistorique, mais comme une hypothèse de travail, un
degré zero à partir duquel il sera possible de
mesurer les transformations accomplies (Raymond, Trousson, Jean-Jacques Rousseau,
Hachette, Paris,1993, pp. 117-118).
Neste
sentido, consideramos que todas as leituras que se iniciam em 1 caracterizam-se por um erro de vício. Ignorar o espaço
entre 0 e 1 corresponde a uma cegueira que tem
como consequência o surgimento de sistemas que
aparentemente funcionam. Mas uma vez identificado este ponto inicial,
jamais uma análise séria será capaz de chegar às mesmas conclusões. É então
que duas posturas se evidenciam: ou nos tornamos guardiães
de uma noção de verdade transcendental, e aí a política surge como o
campo que melhor acolhe esta mesma verdade, e noções como as de estado,
sociedade, etc., surgem como um espelho que é capaz de reflectir
a conciliação de conflitos; ou nos tornamos desencantados porque sabemos
que estamos a ser iludidos. Aquilo que é a marca do homem desencantado não
é a desilusão com os outros homens, nem é estar num estado de alma
permanente de tristeza. O que sucede é que ele é capaz de perceber a origem
do mal. Os regimes políticos, sejam eles quais forem, democráticos ou
totalitários, são o espelho desse mal na medida que
reflectem apenas aquilo que pretendem. Repare-se
na seguinte afirmação de Rousseau:
Ouço sempre
repetir que os mais fortes oprimirão os fracos, mas é preciso que me
expliquem o que querem dizer com a palavra opressão. Uns dominarão com
violência, os outros gemerão subjugados a todos os caprichos deles
(Rousseau, op. cit.,
p.198).
Portanto,
a mudança de espelhos nunca mostra a realidade tal como ela é, mas apenas como se quer que ela seja, e Rousseau está ciente disto.
O homem desencantado não tem medo de perceber esta verdade, pois só nessa medida
é que ele é livre. O problema encontra-se quando alguns, em nome de todos,
pretendem estabelecer um regime de conciliação e portanto
uma liberdade colectiva. Caso contrário, e de
acordo com Rousseau:
(…) é impossível
subjugar um homem sem colocá-lo antes na situação de não poder dispensar o
outro, situação essa que, inexistente no estado de natureza, nele deixa
cada qual livre do jugo e torna vã a lei do mais forte (Rousseau, op. cit., p. 199).
Nesta
medida torna-se claro que o homem desencantado só possa ser um solitário, e
tal estado resulta, nas palavras do autor, de “(…) destruir antigos erros e
preconceitos inveterados, achei que devia escavar até a raiz e mostrar, no
quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural,
está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência como pretendem
nossos escritores” (Rousseau, op. cit., p.197). Esta atitude de desconstrução,
levada a cabo por Rousseau, dirige-se a dois
grandes planos institucionais, a educação e a política:
Assim, um
temperamento robusto ou delicado, a força e a fraqueza que daí decorrem, provêm amiúde mais da maneira rude ou efeminada pela
qual se foi educado do que da constituição primitiva do corpo. Dá-se o
mesmo com as forças do espírito; e a educação não só introduz diferença
entre os espíritos cultos e aqueles que não o são, mas também aumenta a que
existe entre os primeiros em proporção da cultura (…) (Rousseau, op. cit., p.198).
Ora, se
compararmos a prodigiosa diversidade de educações e de gêneros de vida que
reina nas diferentes ordens do estado civil com a simplicidade e a
uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem com os
mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas
coisas, compreenderemos quanto deve ser menor a diferença de homem para
homem no estado de natureza do que no de sociedade e quanto deve ser
aumentada a desigualdade natural na espécie humana
pela desigualdade de instituição (Ibidem).
Justamente porque, como
nos diz Trousson,
Rousseau tem uma atitude
de “pessimismo histórico”
mas “optimismo antropológico”:
«les hommes sont devenus méchants, mais l’homme est bon; le mal n’est pas
dans la nature humaine, mais dans les structures sociales». Deverá
ser dentro deste contexto, que se deve enquadrar o texto do Emílio e
o do Contrato Social, os quais surgem como uma hipótese mais
sistemática para tentar encontrar um sistema que possibilitasse a
concretização do ideal de Rousseau.
3.
A
política e o nascimento das instituições
A
passagem que se segue talvez seja uma das mais importantes para perceber o
pensamento político de Rousseau e, consequentemente, também o seu
pensamento educacional:
Destituído de
razões válidas para justificar-se e de forças suficientes para defender-se;
esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele próprio por magotes de
bandidos; sozinho contra todos e não podendo, por causa das invejas
recíprocas, unir-se com seus iguais contra
inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, premiado pela
necessidade, acabou por conceber o projecto mais
refletido que jamais passou pelo espírito humano: empregar em seu favor as
próprias forças daqueles que o atacavam, transformar em defensores seus
adversários, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes outras instituições
que lhes fossem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito natural
(Rousseau, op. cit., pp. 220 – 221).
Não
é difícil perceber que tipo de discurso foi adoptado
para fundar esta nova organização da sociedade, criando na população a
crença de um discurso comum que reflicta a
partilha dos mesmos objectivos e a defesa de
causas comuns. Na procura de uma segurança e de uma estabilidade (ilusória)
o homem vendeu a sua liberdade por uma ilusão, e o preço que pagou foi
hipotecar a sua condição natural para todo o sempre. Pois o que ocorreu foi
que “todos correram ao encontro de seus grilhões, acreditando assegurar a
liberdade, pois, com razão suficiente para perceber as vantagens de um
estabelecimento político, não tinham experiência suficiente para prever-lhe
os perigos” (Rousseau, op. cit.,
pp. 221 – 222).
Porque
razão os cidadãos estão dispostos a ceder o poder político e, portanto, o
poder de decisão, aos magistrados? A resposta é dada por Rousseau quando
afirma:
Aliás, os cidadãos só se deixam oprimir na medida em que, arrastados
por uma cega ambição e olhando mais para baixo do que para cima de si,
passam a apreciar mais a dominação que a independência e consentem em
carregar grilhões para, por sua vez, poder distribuí-los (Rousseau, op. cit., p. 236).
Deste modo,
conclui Rousseau, podemos “(…) avaliar com
bastante exactidão quanto cada povo se distanciou de sua instituição
primitiva e o caminho que percorreu rumo ao termo extremo da corrupção”
(Rousseau, op. cit., p.237). E qual é esse
extremo da corrupção?
Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade
das paixões e dos talentos, das artes inúteis, das artes perniciosas, das
ciências frívolas, sairiam multidões de preconceitos, igualmente contrários
à razão, à felicidade e à virtude (…). É do seio dessa desordem e dessas
revoluções que o despotismo, erguendo paulatinamente sua horrorosa cabeça e
devorando tudo o que estivesse percebido de bom e de sadio em todas as
pares do Estado, conseguiria por fim pisar com os pés as leis e o povo e
estabelecer-se sobre as ruínas da república.
É este o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o
círculo e toca o ponto de que partimos; é nele que todos
os particulares voltam a ser iguais porque nada são, e que, já não
tendo os súditos outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra
regra além das suas paixões, se esvaem mais uma vez as noções do bem e os
princípios de justiça. É nele que tudo se resume apenas à lei do mais forte
e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele por que
começamos, porque um era o estado de natureza em sua pureza, e este último
é o fruto de um excesso de corrupção. (…) Apenas a força o mantinha, apenas
a força o derruba; todas as coisas que se passam, assim, de acordo com a
lei natural, e, seja qual for o desfecho dessas curtas e freqüentes
revoluções, ninguém pode queixar-se da injustiça alheia, mas somente de sua
própria imprudência, ou de sua infelicidade» (Rousseau, op. cit., pp. 239 – 240).
Esta
passagem é importante pois ela mostra como se
fechou o ciclo da evolução da condição humana, sendo esta acompanhada pela
evolução política do estado civil. Embora o pensamento político, bem como
outros – o educacional, o moral - esteja inserido num contexto mais
abrangente, o antropológico, aquele determina a evolução deste. Pois embora
a natureza humana traga consigo as faculdades que podem ser apontadas como
causadoras da sua desgraça, isso não seria o suficiente, caso essas mesmas
faculdades não tivessem sido desenvolvidas pelas comodidades criadas pelo
homem e que se tornaram em necessidades essenciais à sua existência: “(…) a
desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, extrai sua força e
seu crescimento do desenvolvimento de nossas faculdades e dos progressos do
espírito humano e torna-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da
propriedade e das leis” (Rousseau, op. cit., p.243).
É justamente a partir destes dois elementos, propriedade e leis,
como apogeu do estado civil, que Rousseau pretende mostrar de que modo o
homem natural foi desaparecendo. De acordo com Rousseau, um leitor atento
concluirá que:
É nessa lenta
sucessão das coisas que verá a solução de uma infinidade de problemas
morais e políticos que os filósofos não podem resolver. Perceberá que, não
sendo o gênero humano de uma época o gênero humano de outra época, é por
essa razão que Diógenes não encontrava um homem, porque procurava entre
seus contemporâneos o homem de um tempo que já não existia (Ibidem).
Pois bem, se de facto pretendemos
fundamentar uma genealogia do bem e do mal é essencial que se estabeleça de
um modo evidente a distinção entre o homem natural e o homem social. O
primeiro vive em si mesmo, enquanto que o segundo vive fora de si, faz
depender a sua existência da opinião dos outros. Para Rousseau “(…) de tal disposição nasce tanta indiferença pelo bem e
pelo mal, com tão belos discursos sobre moral; como, reduzindo-se tudo às
aparências, tudo se torna factício e artificial: honra, amizade, virtude e
amiúde os próprios vícios, dos quais por fim se encontra o segredo de
glorificar-se” (Rousseau, op. cit., p.242).
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