| Volta   Considerações estéticas
    na filosofia de Jean-Jacques Rousseau   Daniela de Fátima Garcia Universidade Estadual de Campinas   Há três modos de entender a relação
    de Rousseau com a arte: enquanto espectador, enquanto artista e enquanto
    crítico. Como espectador Rousseau foi freqüentador assíduo da Ópera de
    Paris, o que lhe trouxe a experiência de se comover diante de bons
    espetáculos. Como artista escreveu uma peça de teatro e mais tarde conheceu
    o sucesso com suas óperas. Mas é como crítico que Jean-Jacques nos revela o
    cidadão e pensador Rousseau. Além do Discurso
    sobre as Ciências a as Artes, que faz referência às produções artísticas
    de uma maneira geral, Rousseau escreve duas críticas, em forma de carta,
    direcionadas aos espetáculos de palco: a ópera e o teatro. Ambas as cartas
    tiveram grande repercussão devido às implicações políticas das teses
    defendidas por Rousseau. Na Carta sobre a música francesa, Rousseau
    defende a superioridade estética da música italiana, o que levou os
    franceses a se sentirem ofendidos em seu orgulho nacional. Na Carta a
    D’Alembert, Rousseau critica o teatro clássico francês como forma de
    arte completamente inadequada para a sociedade genebrina. Veremos,
    resumidamente, quais os principais motivos e argumentos que levam Rousseau
    a defender tão veementemente a cidade de Genebra aos efeitos nocivos do
    teatro parisiense.  Na Carta a
    d’Alembert, Rousseau analisa o teatro sob o ponto de vista das
    implicações morais que este ocasiona para a vida prática da sociedade; e
    sob o ponto de vista do conteúdo representado. Essas duas perspectivas de
    análise faz com que a carta apresente duas particularidades: segundo
    Rousseau causa uma ruptura entre o homem e seu verdadeiro ser político e
    moral. Consequentemente, a crítica presente na Carta a D’Alembert
    manifesta-se sob dois aspectos fundamentais: uma concepção estética
    original que caminha na margem oposta aos ideais artísticos fundamentados
    no louvor ao progresso proferido pela maioria dos representantes do
    Iluminismo; e, a impossibilidade de separação entre apreciação estética e
    função social do espetáculo artístico, chamando a atenção para a dimensão
    política do espetáculo artístico. Era comum entre os
    iluministas a idéia de que o acesso aos espetáculos produziria o
    refinamento dos modos e do gosto, elevando a alma acima de seu estado de
    selvageria e rusticidade. A partir desse ponto de vista os espetáculos
    deixam de se inscrever em uma área puramente estética para perfazer
    caminhos que interferem na conduta moral da população. Os espetáculos – e o
    teatro, portanto – passam a carregar uma função pedagógica que reflete a
    preocupação iluminista em instruir camadas da população que até então
    haviam sido negligenciadas em suas necessidades educativas. Deste modo, a
    popularização dos espetáculos é uma conseqüência que envolve diretamente os
    hábitos dos espectadores. Na perspectiva iluminista, a popularização das
    várias formas de arte é vista de uma maneira positiva, e os espetáculos, em
    particular o teatro, passa a ter a dupla função de divertir e instruir.  Quando D’Alembert
    sugere, no verbete “Genebra” da Enciclopédia, que um teatro deveria
    ser instalado naquela cidade, acredita que: “Genebra teria espetáculos e
    bons costumes, e gozaria das vantagens de ambos; as representações teatrais
    educariam o gosto dos cidadãos, e lhes dariam uma finura de tato, uma
    delicadeza de sentimento muito difícil de adquirir sem esse auxílio;”
    (D’Alembert, “Genebra” Apêndice a Carta a D’Alembert, p. 153) (1). Observe-se que o
    argumento usado por d’Alembert segue um princípio clássico, o qual afirma
    que a aquisição da virtude só pode advir da harmonia da alma, capaz de
    conduzir o homem a sentimentos agradáveis, adquirida através da correta
    educação estética. Segundo Platão (Aristóteles, posteriormente, também
    seguirá o mesmo princípio), a formação musical educa o cidadão porque ele
    aprende a harmonia e o gosto pela beleza nas artes e, conseqüentemente, seu
    bom gosto artístico influenciará em sua conduta moral. De acordo com essa
    visão, o homem é um animal cuja moral é de início descompassada, e cujos
    movimentos são desarmônicos. Desta forma há uma relação entre o prazer
    estético e o prazer moral, pois os seres humanos possuem a sensibilidade
    necessária para harmonizar seus sentimentos concordando com a excelência
    nas obras de arte, que seria refletida em sua boa conduta moral, podendo,
    além disso, sentir prazer em agir de acordo com os costumes e os bons
    hábitos de sua sociedade. Assim, quem foi educado, por exemplo, ouvindo e
    aprendendo a boa música poderá desenvolver bons sentimentos, ter uma boa
    conduta moral e ser um bom cidadão (2)  Quando essa visão
    educativa é transposta para o teatro, ou seja, quando se pretende, como
    d’Alembert, que o teatro passe a influenciar a conduta moral de uma
    determinada comunidade, as conseqüências podem ser desastrosas, como mostra
    Rousseau na carta, e abalar irreversivelmente as estruturas econômicas,
    morais e políticas próprias desse povo, além de perverter a autenticidade
    da apreciação artística ao instaurar um gosto estético duvidoso, artificial
    e distante da natureza peculiar desta comunidade. A crítica de
    Rousseau é abrangente: analisa as influencias nocivas dos espetáculos e
    levanta dúvidas e questões dadas por resolvidas por d’Alembert, dentre as
    quais a que seria, talvez, a mais importante delas: a relação
    necessariamente benéfica entre progresso, entenda-se: sofisticação e
    popularização do entretenimento e das formas de arte, e bem-estar social.  Os montanheses de
    Neuchatel, por exemplo, aos quais Rousseau faz referência na Carta,
    possuem a autonomia própria das pequenas comunidades que salutarmente se
    acomodaram a meio caminho da rusticidade total e do refinamento
    preconceituoso. Essas vilas camponesas são independentes, mas progridem
    comercialmente, têm seus próprios princípios morais, seus habitantes são
    instruídos nos ofícios e artes que lhe interessam diretamente e, se
    porventura, não se interessavam pelo que acontecia fora do seu distrito,
    como podiam pensar os espíritos refinados, é porque, como tenta mostrar
    Rousseau, possuíam uma estrutura política sólida o bastante para permitir
    tal afastamento.   Sob este ponto de
    vista, os genebrinos ocupam um lugar especial entre os povoados que
    souberam se desenvolver sem se corromper. Deste modo, Rousseau desvia o
    olhar dos centros urbanos e encontra na vida simples dos habitantes das
    vilas, elementos essenciais que contribuem para uma vida plena e feliz, auto-suficiente
    em suas expressões artísticas.  Valorizando os
    costumes tradicionais, as ocupações que envolvem o trabalho manual, ou os
    modos inocentes dos que habitavam longe das grandes metrópoles, Rousseau
    tenta desfazer os enganos cometidos pelo preconceito de sua época,
    colocando em primeiro plano o verdadeiro bem-estar de um povo e seu
    respectivo exercício efetivo de cidadania. Atentando para as peculiaridades
    de um determinado povo – os genebrinos, no caso – Rousseau determina os
    modos de apreciação estética e as maneiras pelas quais ela poderá se
    manifestar, sem abalar a autenticidade própria desse povo.  Na Carta,
    Rousseau estuda os efeitos do espetáculo do ponto de vista do espectador,
    considerando as particularidades próprias do povo para o qual o espetáculo
    será representado. Assim, as diferenças do povo genebrino garantem que o
    teatro clássico francês será, na melhor das hipóteses, inútil, quando não
    nocivo, se instalado em sua cidade:    Os espetáculos são feitos para o povo, e só por seus efeitos sobre
    ele podemos determinar suas qualidades absolutas. Pode haver espetáculos de
    uma infinidade de espécies; de um povo a outro, há uma prodigiosa
    diversidade de costumes, de temperamentos e de caracteres. O homem é uno,
    admito; mas modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos
    costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si
    mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em
    geral, e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar. (Rousseau, Carta a D’Alembert,
    p. 40).    Ao atentar para as
    diversidades que fazem cada povo ser único em suas manifestações e
    necessidades, Rousseau estabelece a crítica ao etnocentrismo, como mostra
    Cláudio Boeira Garcia:   (...) nesse nível, os pressupostos a partir dos quais a
    crítica se desdobra podem ser assim enunciados: é possível, de fato, pensar
    a condição genérica do homem, e por isso uma condição particular de um povo
    não pode se pretender medida, tampouco se colocar no lugar da medida para
    todos; as formas culturais são expressões de experiências de sociabilidade
    ímpares, as quais resultam das combinações especiais entre os vários
    fatores que as tornam possíveis. Donde iniciativas que visem transplantar a
    cena de Paris para Genebra implicarem – se bem sucedidas – a dissolução da
    peculiaridade de Genebra. (Cláudio
    Boeira Garcia, As Cidades e suas Cenas, a Crítica de Rousseau ao Teatro,
    p. 36) (3).   Cada povo deve ter
    seu próprio meio de entretenimento, pois “a história de cada povo o torna distinto e, por conseguinte, díspares
    hão de ser as espécies de espetáculos.” (Cláudio Boeira Garcia, As
    Cidades e suas Cenas, a Crítica de Rousseau ao Teatro, p. 36). Para
    Rousseau, a tentativa de uniformidade é prejudicial, pois sufoca os
    sentimentos individuais e as particularidades que possuem significado
    cultural para uma determinada comunidade. A importância de se preservar as
    diferenças indica que os povos não podem ser organizados a partir de um
    modelo que lhe é estranho, capaz de interferir no funcionamento da micro-esfera
    da qual faz parte a tradição que sobrevive ao longo da história de um povo
    específico e que o identifica com sua verdadeira natureza.  Assim, a noção de diferenças,
    para Rousseau, possui uma conotação positiva, pois identifica as
    particularidades de um povo com sua originalidade, tornando-o único em suas
    características sociais. Saber diferenciar e respeitar as diferenças
    existentes entre os povos é preservar suas respectivas liberdades, é
    garantir que suas manifestações estéticas, políticas, morais, façam sentido
    porque nasceram de uma organização própria, contextualizada e determinada
    pela história particular da comunidade. As diferenças indicam a proximidade
    com o estado de natureza, estado onde a autenticidade encontra seu lugar
    próprio, onde as expressões de um povo estão mais próximas da
    originalidade, e onde a particularidade encontra sua essência e seu
    significado. Quando um povo
    preserva sua essência mediante, por exemplo, espetáculos que estão de
    acordo com seus costumes, não corre o risco de se corromper, não macula seu
    gosto estético ou seus hábitos com as conveniências da sofisticação criadas
    pela sociedade, não sacrifica à opinião alheia modos de expressão que lhe
    são significativos, e não desperdiça seu tempo com atividades vazias e inúteis.
     Os espectadores só
    procuram os espetáculos enquanto estes são capazes de diverti-los; para
    isso as peças precisam ser condizentes com seus costumes. Segundo Rousseau,
    essa situação de dependência cria um circulo vicioso que só contribui para
    aumentar o grau de corrupção nas grandes cidades. A relação de
    dependência que submete a criação artística ao gosto do público, aponta
    para o caráter superficial do conteúdo das peças representadas. Um
    espetáculo que pretende agradar a um público medíocre e corrupto, afeito à
    falsidade da sofisticação e ávido por entretenimento, como Rousseau vê a
    sociedade parisiense, só pode existir enquanto aparato artificial e objeto
    das convenções. Os espetáculos próprios às cidades mais civilizadas,
    portanto, não possuem significado para esse povo, não possuem
    autenticidade, nem simplicidade, estão corrompidos porque se encontram
    distantes da essência e do ser natural, são tristes por apenas refletirem a
    superficialidade da sociedade. Se, como afirma
    d’Alembert “um espetáculo é um
    entretenimento”, então, completa Rousseau, ele deve necessariamente
    agradar o público para o qual foi destinado. Porém, prossegue Rousseau, “para lhes agradar, é preciso ter
    espetáculos que acentuem as suas inclinações” e, desse modo, os
    espetáculos não contribuiriam para aprimorar os costumes, mas apenas
    serviriam para reproduzir, em escala cada vez maior, os vícios e a
    corrupção já instalados entre o povo. Nesta escala de reprodução dos
    vícios, o argumento usado por D’Alembert em favor da instalação de um
    teatro em Genebra, a saber, o aperfeiçoamento do gosto, torna-se inválido,
    pois o gosto tenderia a se render à superficialidade dos costumes sociais:    Tanto se deduzirmos da natureza dos
    espetáculos em geral as melhores formas de que são capazes, quanto se
    examinarmos tudo o que as luzes de um século e de um povo esclarecido
    fizeram para a perfeição dos nossos, creio que podemos concluir dessas
    considerações diversas que o efeito moral do espetáculo e dos teatros não
    poderia nunca ser bom ou salutar em si mesmo: já que, contando apenas as
    suas vantagens, não vemos aí nenhuma utilidade real, sem inconvenientes que
    a superem. Ora, em conseqüência de sua própria inutilidade, o teatro, que
    nada pode para corrigir os costumes, pode muito para corrompê-los.
    Favorecendo todas as nossas inclinações, ele dá uma ascendência nova às que
    nos dominam; as contínuas emoções que nele sentimos nos tiram a energia,
    nos enfraquecem, nos tornam mais incapazes de resistir às paixões; e o
    estéril interesse que ganhamos pela virtude só serve para contentar o nosso
    amor-próprio, sem nos obrigar a praticá-la. (Rousseau, Carta a D’Alembert, p. 73).   Notas
    
     (1) ROUSSEAU,
    Carta a d’Alembert, Campinas: Editora da Unicamp, 1993. (2) Cf. Marques, J. O. A. “The
    Politics of Taste: a place for art music in Rousseau’s construction of the
    political community” In: DAUPHIN, Claude (ed.). Musique et langage chez Rousseau (SVEC - Studies on Voltaire
    and the Eighteenth Century, 2004:08). Oxford: Voltaire Foundation, 2004. p.
    155-165.  (3) GARCIA, As Cidades e suas Cenas,
    a Crítica de Rousseau ao Teatro, Ijui: Editora Unijui, 1999.     Início
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