Volta
Da “natureza artificial” do direito de
propriedade
Dax
Moraes
Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Locke, um dos grandes mentores do
pensamento liberal moderno, em capítulo de seu Segundo tratado sobre o
governo civil, estabelecera a racionalidade e, por conseguinte, a
naturalidade do direito de propriedade. Refletindo acerca de seus
argumentos, pode-se observar alguns pressupostos e desenvolver
conseqüências, a saber: é tomado como dado um sentido moral no estado
natural segundo o qual o homem reconhece, por uma faculdade inata, limites
territoriais mediante os resultados da obra humana, devendo ser tido como
perversão antinatural o desrespeito a tais limites; “descreve-se” uma
primeira geração de homens proprietários a instaurar de maneira “justa” a
origem da desigualdade entre patrões e empregados, segundo a qual estes
últimos são vítimas de sua própria indolência e “irracionalidade”, ou mau
uso da razão. O próprio Rousseau apresenta este argumento, porém expondo-o
sob uma perspectiva negativa, nos seguintes termos:
Ora,
quando as heranças cresceram em número e em extensão, a
ponto de cobrir todo o solo, e tocaram-se umas às outras, uns só puderam
prosperar a expensas dos outros, e os supranumerários, que a fraqueza ou a
indolência tinham impedido por seu turno de as adquirir, tendo se tornado
pobres sem nada ter perdido, porque, tudo mudando à sua volta, somente eles
não mudaram, viram-se obrigados a receber ou roubar sua subsistência da mão
dos ricos. Daí começaram a nascer, segundo os vários caracteres de uns e de
outros, a dominação e a servidão, ou a violência e os roubos. (1)
Embora Locke condicione sua teoria à
produtividade e ao não-desperdício -
em vista de evitar que a propriedade servisse como mero instrumento para a
aquisição e aumento de poder -,
e isto possa servir de argumento para políticas públicas como a reforma
agrária, por outro lado, sua teoria legitima a acumulação de bens e,
portanto, naturaliza a desigualdade socioeconômica. A acumulação de bens de
produção, em Locke, passa a constituir um direito natural por implicação,
atribuindo toda desigualdade socioeconômica à irracionalidade de grande
parte dos homens, e não à própria natureza da convenção mediante a qual se
estabelece o direito de propriedade, ou seja, à artificialidade, à
intervenção humana na natureza.
Ao primeiro pressuposto presente em Locke,
Rousseau responde, no Discurso sobre a desigualdade, que não é de se
pensar haver lugar para juízos morais no estado de natureza. O homem,
anteriormente ao convívio social, ou estado civil, é autônomo, e não
submetido a qualquer lei ou princípios morais, não havendo sequer, em sentido
próprio, uma lei natural. Caso contrário, o homem não poderia ser
considerado naturalmente livre, devendo antes obedecer a princípios dados a
priori, que não podem ser considerados como tais a partir do momento em
que não são universais. Ora, o próprio Locke, no primeiro livro de seu Ensaio
acerca do entendimento humano utiliza tal argumento para desmontar as
doutrinas inatistas, mas posteriormente peca em não abrir mão do dogma
consagrado por Descartes segundo o qual a razão é uma faculdade que nos guia
para o bem comum, uma vez entendida como sinônimo de bom senso.
Já no prefácio a seu Discurso,
Rousseau afirma que “não somente é preciso, para ser lei, que a vontade
daquele a que obriga possa submeter-se a ela com conhecimento, como,
também, para ser natural, é preciso que se exprima imediatamente pela voz
da natureza”(2).
Isto significa que não há nada de natural naquilo que resulta da reflexão
humana acerca de sua realidade. Esta crítica torna claro que Locke
transgredira seu próprio empirismo, induzindo uma configuração particular
(européia) do estado civil para a universalidade do estado natural,
fundamentando assim um Direito Natural tido por Rousseau como fantasioso,
pois o próprio Direito já é um fenômeno social. Diz Rousseau, ainda no
prefácio:
Conhecendo
tão mal a natureza e concordando tão pouco quanto ao sentido da palavra lei,
seria muito difícil convir numa boa definição da lei natural. Assim, todas
as que encontramos nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm
ainda o de serem extraídas de vários conhecimentos que os homens, em
absoluto, não têm naturalmente, e de vantagens cuja idéia só podem ter
depois de sair do estado de natureza. Começa-se por procurar regras sobre
as quais, para proveito comum, conviria que os homens concordassem entre
si, e depois dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra
prova além do bem que, segundo acham, resultaria de sua prática universal.
Aí está certamente um meio muito cômodo de compor definições e explicar a
natureza das coisas por conveniências arbitrárias. (3)
Ao segundo pressuposto, Rousseau
responderá justamente que a desigualdade entre detentores e não-detentores
de bens supõe um acordo prévio, ainda que tácito, o que significa já a
instauração de um estado civil, onde os homens se encontram em relações
sociais, em associações particulares. Neste sentido, a sociedade é
uma perversão na medida em que os interesses nutridos pelos homens os levam
a abrir mão de sua liberdade natural, produzindo novas formas de
desigualdade inexistentes no estado natural, ou mesmo aprofundando as
diferenças naturais, potencializadas em seus desdobramentos. Por exemplo,
no caso da propriedade, os diferenciados talentos naturais, uma vez
empregados no sistema produtivo, levam à competição entre os semelhantes, e
à conseqüente subordinação de uns aos outros, o que significa a perda da
liberdade natural em função de interesses de progresso pessoal.
As diferenças de poder ou riqueza, que
constituem o que Rousseau denomina “desigualdade moral ou política”, em
contraste com a “desigualdade natural ou física”, sempre “depende de uma
espécie de convenção”, sendo “estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo
consentimento dos homens”. Ao falarem do direito natural à propriedade, os
filósofos não teriam explicado o que entendiam por pertencer, e isto porque
“todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e
orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham
adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem
civil”, sequer havendo sido cogitado se realmente teria existido um tal
estado de natureza. (4)
Para ser bem compreendido, o pensamento
rousseauniano não pode ser estudado em se desconsiderando o caráter hipotético
que para ele têm as noções de estado de natureza e de lei natural.
Opondo-se aos jusnaturalistas que o precederam e, por princípio, ao próprio
espírito iluminista, Rousseau reconhece a necessidade de elaborar uma
crítica a tais especulações. Nesse sentido, procura mostrar em que medida
são ilegítimas em vez de meramente lhes opor outros dogmas. Rousseau
reconhece, todavia, a importância de se problematizar o que para ele é,
antes, uma legitimação filosófica da desigualdade, mostrando o caráter temerário
de toda hipótese acerca das origens. Segundo diz, ainda no Prefácio:
Outros
poderão, desembaraçadamente, ir mais longe na mesma direção, sem que para
ninguém seja mais fácil chegar ao término pois não constitui empreendimento
trivial separar o que há de original e de artificial na natureza atual do
homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez
nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se
tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de
nosso estado presente. (5)
É, pois, a tarefa empreendida por sua
hipótese, “destruir antigos erros e preconceitos inveterados, [...]
pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza,
como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta
realidade e influência quanto pretendem nossos escritores”. (6) E em que consiste tal hipótese, já que
são todas temerárias? A resposta seria: purgar a “naturalidade” de todo
artificialismo pela elaboração de um modelo de natureza ele mesmo também
hipotético, pois, como nos adverte Rousseau, não devemos pensar que ele
ousa se iludir “julgando ter visto” o que lhe parece “tão difícil ser
visto”, pelo que diz: “arrisquei algumas conjeturas, antes com intenção de
esclarecer e de reduzir a questão ao seu verdadeiro estado do que na
esperança de resolvê-la”. (7)
Não é, pois, uma verdade
acessível ao pensamento, mas, enquanto se opõe o original ao civil, o
natural ao artificial, se há uma dicotomia - o que Rousseau parece admitir, mas apenas
no caso da hipótese do homem natural solitário estar correta, o que é, por
sua vez, inverificável -, que não se os misturem.
Não é dado, por exemplo, ao homem natural,
uma visão progressista, um projeto para o futuro que encare o presente como
momento transitório de uma história em movimento que leva a algo, seja pela
intervenção do sujeito ou não -
aliás, sendo a falta de iniciativa também influente no devir. A grande
dificuldade para o senso comum ocidental e em toda cultura fundada sobre as
bases do desenvolvimentismo europeu consiste justamente em rejeitar tais
pressupostos e admitir que não há nada de necessário nas diversas
concepções de história, culturalmente determinadas. Em outras palavras,
difícil admitir o caráter contingente do desenvolvimento uma vez educados
segundo os vários paradigmas que visam a perfectibilidade do homem, que o
reduzem à concepção naturalista e fisicamente legitimada de processo,
seja ela teleológica ou não. Não é à toa que a filosofia começa e termina
com o problema do movimento, e, derivadamente, da diferença. A partir do
momento em que tal preocupação surgiu, jamais se conseguiu escapar ao
modelo em absolutamente nenhuma filosofia a partir de então produzida.
Rousseau defende que, para o homem
natural, a regularidade da natureza não é tomada como tal, pelo que lhe é
indiferente - as coisas são o que são, são simplesmente
dadas, e não há por que atribuir a tal homem o reconhecimento de algo que
não lhe advém senão pela reflexão, por uma posterior tentativa de
interpretação e previsão, o que só pode acontecer no momento de carência,
quando, ao contrário, a regularidade é rompida causando um sentimento de
necessidade. O homem, então, pode pensar: “obtive isto até aqui e, de
repente, não obtenho mais; devo então criar meios para obter aquilo que
quero em tempos de escassez!”. Mesmo este pensamento exige certa
sofisticação do intelecto, pois supõe o reconhecimento de si mesmo enquanto
sujeito causador, eficiente, podendo agir de certa maneira
independente de uma ordem externa a si e necessária, “natural”. O homem
produzirá por si mesmo a partir do momento em que reconhecer o risco de a
natureza não lhe prover aquilo de que sente necessidade, e isto é em muitos
casos antecedido por uma divinização extremada de uma Natureza tida como
sagrada, intocável. A necessidade instaura a propriedade, mas não se trata
de uma necessidade imposta pela natureza, e sim de uma necessidade colocada
pelo interesse de se obter algo que a natureza, por si só, não nos concede
providencial e espontaneamente segundo nosso desejo. Por isso, o homem
conserva e/ou produz pragmaticamente, o que, segundo Locke, funda e serve
como legitimação da propriedade.
Faço aqui uma pequena digressão.
Privilegiarmos, nesse sentido, os sedentários como mais racionais do que os
nômades significa privilegiar uma opção de vida, que conserva e preserva
para explorar continuadamente e não simplesmente explora segundo a
disponibilidade. O segundo tipo de exploração ainda é visto,
pejorativamente, como imprevidência, destrutividade e mesmo abuso
irracional de recursos - em uma palavra: como ignorância, e, mais
que isto, como “falta de consciência ecológica”, passível de recriminação
na medida em que pode trazer conseqüências letais para toda a humanidade.
Mas o critério segundo o qual chegou-se a classificar e justificar o
prevalecimento de agricultores sedentários sobre pastores nômades tende a
tomar o efeito pela causa caso se pretenda dizer que estes últimos
“perderam” por não se desenvolverem, em vez de se reconhecer que foram
praticamente suprimidos por não terem mais seus caminhos liberados. A
antropologia, ora superada, que legitima esse preconceito é referida por
Rousseau em outro escrito, onde se lê sobre os três estados do homem
considerado em relação à sociedade: “O selvagem é caçador; o bárbaro,
pastor; o homem civilizado, agricultor”.(8) Obviamente, trata-se da história contada
pelos vencedores. Embora tais grupos se configurem para Locke, mas não para
Rousseau, como agrupamentos naturais, podemos lembrar aqui as palavras
deste:
Parece, a
princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre eles
espécie alguma de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem
bons nem maus ou possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando estas
palavras num sentido físico, se considerem vícios do indivíduo as
qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes
aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderiam chamar
mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da
natureza. (9)
O que resta obscuro, e para isto alerta a
obra de Rousseau, é, justamente, em que consistem esses “impulsos simples
da natureza”. São as diferentes respostas sobre quais são ou devem ser
esses “impulsos” (sempre “naturais”) e, em seguida, sobre como são melhor
direcionados, que, carregadas de pressuposições temerárias, determinarão as
definições e descrições de humanidade, racionalidade, civilidade. Ora,
então o pensamento ecológico só pode ter lugar em uma sociedade moldada
segundo o modelo de apropriação da natureza, o que traz um aparente
paradoxo.
Devemos nos lembrar que, mesmo para que se
determine uma área de proteção ambiental, isto já se configura como a
delimitação de um patrimônio, de uma propriedade! De quem? Da humanidade.
Pode-se argüir: “não se destina ao usufruto”. Mas o que fazemos do oxigênio
senão usufruir? Não há aqui nada além de uma valoração, onde, por exemplo,
o ar que respiramos é tido como “produto” mais valioso e importante - um valor mesmo que não tem preço! - do que o papel ou os artefatos de madeira
que produzimos. Não se trata, de modo algum, como tendemos a pensar, de
dizer que o produto natural vale (intrinsecamente) mais do que o produto
humano. Tal argumento é falacioso na medida em que, se o homem não tem
saúde, não pode produzir muita coisa, e é por isso que o primeiro valem
mais do que o segundo, pois o torna possível.
Retomando a questão principal, não é
qualquer necessidade contingente -
ou seja, uma carência que pode ser sentida ou não pelo indivíduo ou grupo - que fundará a propriedade. Esta
necessidade deve se apresentar de maneira contínua, e o mesmo vale para as
necessidades fundadoras da preservação ambiental. Pode-se trazer para este âmbito
o que Rousseau diz do desejo sexual natural, a saber: “A imaginação [...]
não atinge corações selvagens [...] e, uma vez satisfeita a necessidade,
extingue-se todo o desejo.” (10) Na medida em que o desejo não se extingue, posto que a
carência não é suprida (ou suprimida), o homem busca reter para si a
fonte de satisfação de seu desejo, que pode ser a terra e seus frutos, os
animais ou mesmo o sexo oposto. Aí, sim, surge a noção de propriedade,
junto à vaidade e ao egoísmo, e disso mesmo dependerá a noção de justiça,
que sempre envolve relações estabelecidas entre homens. Se a necessidade
leva à apropriação e esta supõe a imposição de limites, a justiça - portanto, a lei por que se expressa - não é natural, e sim, convencional, um
artifício humano. Paradoxalmente: o estabelecimento de uma relação que
distingue os homens sob o pretexto de dispô-los (organizá-los)
igualitariamente - não no sentido da igualdade absoluta, mas
no da equivalência relativa, conforme já distinguido por Aristóteles.
Sendo assim, se a sociedade civil se
caracteriza, em Locke, não pelo agrupamento, mas pela instituição do Estado
de Direito, que visa salvaguardar os direitos à vida e à propriedade, eis
aí a fonte das desigualdades e, também, de horrores jamais vistos. Para
Rousseau, ainda, é a propriedade a fundar a sociedade civil e, mais que
isto, é ela a acentuar a decadência do homem, constituindo o tema central
da segunda parte do Discurso, que tem início com as seguintes
palavras tão comumente citadas:
O
verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um
terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras,
assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus
semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a
ninguém!” Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então
tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa
idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só
poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito
humano. Foi preciso fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria
e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de
chegar a esse último termo do estado de natureza. (11)
A partir daí desdobra-se a versão
rousseauniana da história da corrupção, que carrega implicitamente um
sistema de desenvolvimento vicioso e sempre em privilégio do mais forte e
suas iniciativas. (12) Mais capazes de defenderem da usurpação aquilo de que
arbitrariamente se apoderaram, os mais fortes não deixaram outra
alternativa aos mais fracos senão imitá-los em sua iniciativa, ao invés de
se unirem para desempossá-los. O que há de natural é que, nessas
circunstâncias, todos os que adquirem propriedades buscam meios de se
precaverem contra usurpadores sem que, para isso, devam arriscar a própria
vida - eis o papel do direito de propriedade: a
lei protege daquilo a que a força natural não seria capaz de fazer frente.
A noção de “pertencimento”, requerida por Rousseau, é aqui reduzida à mera
conveniência em benefício da própria integridade física, não tendo nenhuma
relação com um reconhecimento racional de limites impostos pelo trabalho
alheio, o qual depende de um longo processo de aprendizado e exercício
dessa mesma razão. O trabalho, aqui, tem o papel de marcar os limites da
propriedade, mas a justificativa desta propriedade enquanto tal deve ser
posterior, assim como a conservação da posse exige a continuidade do
trabalho, o que imediatamente nos informa sobre a perda brutal da liberdade
natural mediante a necessidade do esforço, problema este a ser discutido
por Marx em sua teoria da alienação pelo trabalho.
Da cultura
de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma
vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o
que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando
os homens a alongar suas vidas até o futuro e tendo todos a noção de
possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália
dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se ainda mais
natural, por ser impossível conceber a idéia da propriedade nascendo de
algo que não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para apropriar-se
de coisas que não produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que o seu
trabalho. Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o
produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe conseqüentemente direito sobre a
gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal
fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. (13)
É, portanto, através do direito àquilo que
se produz (o que é cultivado na terra), estende-se o direito àquilo que não
se produziu (a terra ela mesma), direito este temporário e regulado pelo
tempo de cultivo, o que significa não haver um direito à terra em si
mesma. Por justo e equânime que isto nos pareça - e Rousseau não o nega, mas apenas
pretende ressaltar o caráter convencional de toda lei e de todo direito -, constitui a fonte artificial da desigualdade
na medida em que permite às desigualdades naturais se intensificarem
exponencialmente, e isto pela apropriação continuada dos meios (de
produção) em razão do direito descontinuado aos fins (bens produzidos)!
Estando as
coisas nesse estado, teriam assim continuado se os talentos fossem iguais e
se, por exemplo, o emprego de ferro e a consumação dos alimentos sempre
estivessem em exato equilíbrio. Mas a proporção, que nada mantinha, logo se
rompeu; os mais fortes realizavam mais trabalho, o mais habilidoso tirava
mais partido do seu, o mais engenhoso encontrava meios para abreviar a
faina, o lavrador sentia mais necessidade de ferro ou o ferreiro mais
necessidade de trigo e, trabalhando igualmente, um ganhava muito enquanto
outro tinha dificuldade de viver. Assim, a desigualdade natural
insensivelmente se desenvolve junto com a desigualdade de combinação, e as
diferenças entre os homens, desenvolvidas pelas diferenças das
circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes em seus efeitos
e, em idêntica proporção, começam a influir na sorte dos particulares. (14)
Com efeito, Locke não garante com sua
doutrina meritocrática aquilo que é fundamental para Rousseau em uma
sociedade: o patriotismo. Locke procura fundamentar, antes, uma democracia
que favoreça a igualdade de oportunidades de progresso pessoal - o progresso da nação seria apenas um
resultado do somatório de progressos pessoais de uns em detrimento de
outros -, e isto enquanto uma recusa de um
determinado status quo vigente em seu tempo. De todo modo, a teoria
lockeana, nesses termos, deixa impensado que o aprofundamento dos processos
de acumulação leva a gargalos incontornáveis, onde o mérito de um indivíduo
muito pouco vale após gerações e gerações de subordinação de uma classe
assalariada a uma classe empreendedora sedimentada, pois os respectivos
pontos de partida já são desiguais. Isto é antevisto por Rousseau,
explicitamente, em sua crítica à educação, tão fundamental à reprodução de
modelos que permitam a subsistência da sociedade civil, partindo mesmo de
sua legitimidade, de sua vantagem e mesmo de sua necessidade enquanto
resultado da racionalidade humana, naturalmente tendente à associação. Diz
ele, com grande profundidade, partindo do pressuposto de que são as
conveniências sociais e os hábitos socialmente adquiridos a instaurarem um
sistema de progressiva diferenciação entre os homens: “a educação não só
estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que não o são, como
também aumenta a que existe entre os primeiros na proporção da cultura,
pois, quando um gigante e um anão andam pelo mesmo caminho, cada passo, que
um e outro dêem, trará uma vantagem a mais ao gigante” (15). Toda ideologia contemporânea em torno da
educação para a cidadania leva em consideração apenas o primeiro aspecto,
deixando impensado o segundo (exclusor). Os mesmos meios (oportunidades)
dados a um e outro - digamos, ao miserável e ao abastado - de maneira alguma contribuirão à sua
igualdade, mas sim, endossarão um afastamento cada vez maior, e isto,
paradoxalmente, sob um princípio de igualdade natural que não tem outra
função senão o direito, por parte da sociedade, de exigir de todos os
mesmos resultados, punindo aqueles que não os atingem. Caso efetivamente
considerássemos os homens em suas diferenças, não teríamos qualquer
critério para avaliar suas obras, e isto de maneira radical! Não se trata
de pluralismo, mas do fim da meritocracia. Não devemos ter direito à
diferença enquanto iguais - i.e., enquanto humanos racionais e livres
-; deveríamos, antes, ter igual direito à
diferença enquanto diferentes, e isto significa: direito à singularidade.
Ora, mas não é justamente disto que abríramos mão em prol de nossas
associações?
Acredito ser esta a utopia rousseauniana.
Utopia na medida em que o direito natural à preservação de nossa
singularidade tende a ser negligenciado em benefício de nossos interesses e
paixões, pelo que a sociedade resulta do fim dessa singularidade própria do
bom selvagem em nome de uma recíproca adequação, que não implica outra
coisa senão a perda dessa singularidade que nos é própria. Ora, mas se
nossos interesses e paixões também constituírem nossa singularidade - uma questão a se colocar -, não temos mais aqui uma utopia, e sim um
verdadeiro paradoxo!
A conseqüente opressão dos “anões” pelos
“gigantes” só é possibilitada na medida em que ambos se submetem a uma
norma comum, são feitos iguais perante uma lei (isonomia). A partir do
momento em que reconhecem sua interdependência - pois o “gigante”, em dado momento, quer
produzir mais do que suas capacidades naturais permitem, enquanto que o
“anão”, não possuindo seus próprios meios de produção, deve se submeter às
regras daquele para suprir suas necessidades -, e, portanto, como “iguais”, suas
diferenças ganham legitimidade, e é justamente neste contexto que
podem se intensificar, até sua generalização. Ou seja, quando toda a terra
se torna propriedade de alguém, às gerações futuras dos não-proprietários
cabe apenas a servidão. Trata-se da obscuridade das noções de opressão e
dominação, sobre o que diz Rousseau:
Sem
prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver como, por serem os
laços da servidão formados unicamente pela dependência mútua dos homens e
pelas necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem
sem antes tê-lo colocado na situação de não viver sem o outro, situação
essa que, por não existir no estado de natureza, nele deixa cada um livre
do jugo e torna inútil a lei do mais forte. (16)
Os ricos, temendo perder o que é seu, são
os primeiros a convocar à união pelo direito de propriedade, engajados na
exigência de leis e um governo que os proteja, voltando contra os ofensores
suas próprias armas. Nisto teriam sido primeiramente enredados os mais
grosseiros, que “possuíam demasiada ambição para poder por muito tempo
dispensar os senhores”. (17) Afinal,
os primeiros que ousam atentar contra os bens mais caros e naturais,
justamente os únicos que ainda detêm -
a saber, a liberdade e a vida -,
não podem fazê-lo senão por ambição, orgulho e vaidade, vícios segundo os
quais se deixam até mesmo oprimir. Para Rousseau, parece muito difícil
“reduzir à obediência aquele que não procura comandar e o político mais
esperto não conseguiria submeter homens que só desejassem ser livres”, mas
somente aqueles para quem a dominação se torna “mais cara do que a
independência”, só sendo pensável que consintam em “carregar grilhões para
por sua vez poder aplicá-los”. (18) Por
que? Porque apenas aquele que vê legitimidade no mando admite a obediência.
E, assim, conclui Rousseau:
Tal foi ou
deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao
fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade
natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,
fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de
alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria. (19)
Desse modo, Rousseau aponta o processo de
desigualdade civil como tendo sido constituído de três momentos: o
estabelecimento da lei e do direito de propriedade, que autoriza a
diferença entre ricos e pobres; a instituição da magistratura, que faria
valer tal lei e tal direito autorizando a diferença entre poderosos e
fracos; e a transformação do poder legítimo em poder arbitrário, que levará
à dicotomia entre senhores e escravos. (20)
Notas
(1) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos
Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005a. (Coleção Os Pensadores). Vol. II.
p. 98.
(2) Id., ibid., p. 47.
(3) Id., ibid., p. 46-47. É de se notar que Rousseau não
apenas estende o nominalismo ao que se entendia em seu tempo por “lei
natural” como antecipa, de certo modo, uma crítica ao imperativo categórico
kantiano, apresentado na Fundamentação da metafísica dos costumes,
escrita trinta anos após. Não se trata, contudo, de afirmar total a
adequação de tal “antecipação”, de que não se pode ocupar o presente
trabalho.
(4) Id., ibid., p. 51-52.
(5) Id., ibid., p. 44-45.
(6) Id., ibid., p. 82.
(7) Id., ibid., p. 44.
(8) ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas no qual
se fala da melodia e da imitação musical. Trad. Lourdes Santos Machado. São
Paulo: Nova Cultural, 2005b. (Coleção Os Pensadores). Vol. I. p. 292.
(9) Id., 2005a, p. 75.
(10) Id., Ibid., p. 80.
(11) Id., ibid.,
p. 87.
(12) V. id., ibid., p. 90.
(13) Id., ibid., p. 95-96.
(14) Id., ibid., p. 96.
(15) Id., ibid., p. 82.
(16) Id., ibid., p. 83.
(17) Id., ibid., p. 100.
(18) Id., ibid., p. 110.
(19) Id., ibid., p. 100.
(20)
Cf. id., ibid., p. 110.
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