Volta

 

Da “natureza artificial” do direito de propriedade

 

Dax Moraes

Universidade Federal do Rio de Janeiro 

 

Locke, um dos grandes mentores do pensamento liberal moderno, em capítulo de seu Segundo tratado sobre o governo civil, estabelecera a racionalidade e, por conseguinte, a naturalidade do direito de propriedade. Refletindo acerca de seus argumentos, pode-se observar alguns pressupostos e desenvolver conseqüências, a saber: é tomado como dado um sentido moral no estado natural segundo o qual o homem reconhece, por uma faculdade inata, limites territoriais mediante os resultados da obra humana, devendo ser tido como perversão antinatural o desrespeito a tais limites; “descreve-se” uma primeira geração de homens proprietários a instaurar de maneira “justa” a origem da desigualdade entre patrões e empregados, segundo a qual estes últimos são vítimas de sua própria indolência e “irracionalidade”, ou mau uso da razão. O próprio Rousseau apresenta este argumento, porém expondo-o sob uma perspectiva negativa, nos seguintes termos:

 

Ora, quando as heranças cresceram em número e em extensão, a ponto de cobrir todo o solo, e tocaram-se umas às outras, uns só puderam prosperar a expensas dos outros, e os supranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido por seu turno de as adquirir, tendo se tornado pobres sem nada ter perdido, porque, tudo mudando à sua volta, somente eles não mudaram, viram-se obrigados a receber ou roubar sua subsistência da mão dos ricos. Daí começaram a nascer, segundo os vários caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e os roubos. (1)

 

Embora Locke condicione sua teoria à produtividade e ao não-desperdício - em vista de evitar que a propriedade servisse como mero instrumento para a aquisição e aumento de poder -, e isto possa servir de argumento para políticas públicas como a reforma agrária, por outro lado, sua teoria legitima a acumulação de bens e, portanto, naturaliza a desigualdade socioeconômica. A acumulação de bens de produção, em Locke, passa a constituir um direito natural por implicação, atribuindo toda desigualdade socioeconômica à irracionalidade de grande parte dos homens, e não à própria natureza da convenção mediante a qual se estabelece o direito de propriedade, ou seja, à artificialidade, à intervenção humana na natureza.

Ao primeiro pressuposto presente em Locke, Rousseau responde, no Discurso sobre a desigualdade, que não é de se pensar haver lugar para juízos morais no estado de natureza. O homem, anteriormente ao convívio social, ou estado civil, é autônomo, e não submetido a qualquer lei ou princípios morais, não havendo sequer, em sentido próprio, uma lei natural. Caso contrário, o homem não poderia ser considerado naturalmente livre, devendo antes obedecer a princípios dados a priori, que não podem ser considerados como tais a partir do momento em que não são universais. Ora, o próprio Locke, no primeiro livro de seu Ensaio acerca do entendimento humano utiliza tal argumento para desmontar as doutrinas inatistas, mas posteriormente peca em não abrir mão do dogma consagrado por Descartes segundo o qual a razão é uma faculdade que nos guia para o bem comum, uma vez entendida como sinônimo de bom senso.

Já no prefácio a seu Discurso, Rousseau afirma que “não somente é preciso, para ser lei, que a vontade daquele a que obriga possa submeter-se a ela com conhecimento, como, também, para ser natural, é preciso que se exprima imediatamente pela voz da natureza”(2). Isto significa que não há nada de natural naquilo que resulta da reflexão humana acerca de sua realidade. Esta crítica torna claro que Locke transgredira seu próprio empirismo, induzindo uma configuração particular (européia) do estado civil para a universalidade do estado natural, fundamentando assim um Direito Natural tido por Rousseau como fantasioso, pois o próprio Direito já é um fenômeno social. Diz Rousseau, ainda no prefácio:

 

Conhecendo tão mal a natureza e concordando tão pouco quanto ao sentido da palavra lei, seria muito difícil convir numa boa definição da lei natural. Assim, todas as que encontramos nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem extraídas de vários conhecimentos que os homens, em absoluto, não têm naturalmente, e de vantagens cuja idéia só podem ter depois de sair do estado de natureza. Começa-se por procurar regras sobre as quais, para proveito comum, conviria que os homens concordassem entre si, e depois dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra prova além do bem que, segundo acham, resultaria de sua prática universal. Aí está certamente um meio muito cômodo de compor definições e explicar a natureza das coisas por conveniências arbitrárias. (3)

 

Ao segundo pressuposto, Rousseau responderá justamente que a desigualdade entre detentores e não-detentores de bens supõe um acordo prévio, ainda que tácito, o que significa já a instauração de um estado civil, onde os homens se encontram em relações sociais, em associações particulares. Neste sentido, a sociedade é uma perversão na medida em que os interesses nutridos pelos homens os levam a abrir mão de sua liberdade natural, produzindo novas formas de desigualdade inexistentes no estado natural, ou mesmo aprofundando as diferenças naturais, potencializadas em seus desdobramentos. Por exemplo, no caso da propriedade, os diferenciados talentos naturais, uma vez empregados no sistema produtivo, levam à competição entre os semelhantes, e à conseqüente subordinação de uns aos outros, o que significa a perda da liberdade natural em função de interesses de progresso pessoal.

As diferenças de poder ou riqueza, que constituem o que Rousseau denomina “desigualdade moral ou política”, em contraste com a “desigualdade natural ou física”, sempre “depende de uma espécie de convenção”, sendo “estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens”. Ao falarem do direito natural à propriedade, os filósofos não teriam explicado o que entendiam por pertencer, e isto porque “todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil”, sequer havendo sido cogitado se realmente teria existido um tal estado de natureza. (4)

Para ser bem compreendido, o pensamento rousseauniano não pode ser estudado em se desconsiderando o caráter hipotético que para ele têm as noções de estado de natureza e de lei natural. Opondo-se aos jusnaturalistas que o precederam e, por princípio, ao próprio espírito iluminista, Rousseau reconhece a necessidade de elaborar uma crítica a tais especulações. Nesse sentido, procura mostrar em que medida são ilegítimas em vez de meramente lhes opor outros dogmas. Rousseau reconhece, todavia, a importância de se problematizar o que para ele é, antes, uma legitimação filosófica da desigualdade, mostrando o caráter temerário de toda hipótese acerca das origens. Segundo diz, ainda no Prefácio:

 

Outros poderão, desembaraçadamente, ir mais longe na mesma direção, sem que para ninguém seja mais fácil chegar ao término pois não constitui empreendimento trivial separar o que há de original e de artificial na natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente. (5)

 

É, pois, a tarefa empreendida por sua hipótese, “destruir antigos erros e preconceitos inveterados, [...] pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência quanto pretendem nossos escritores”. (6) E em que consiste tal hipótese, já que são todas temerárias? A resposta seria: purgar a “naturalidade” de todo artificialismo pela elaboração de um modelo de natureza ele mesmo também hipotético, pois, como nos adverte Rousseau, não devemos pensar que ele ousa se iludir “julgando ter visto” o que lhe parece “tão difícil ser visto”, pelo que diz: “arrisquei algumas conjeturas, antes com intenção de esclarecer e de reduzir a questão ao seu verdadeiro estado do que na esperança de resolvê-la”. (7)  Não é, pois, uma verdade acessível ao pensamento, mas, enquanto se opõe o original ao civil, o natural ao artificial, se há uma dicotomia - o que Rousseau parece admitir, mas apenas no caso da hipótese do homem natural solitário estar correta, o que é, por sua vez, inverificável -, que não se os misturem.

Não é dado, por exemplo, ao homem natural, uma visão progressista, um projeto para o futuro que encare o presente como momento transitório de uma história em movimento que leva a algo, seja pela intervenção do sujeito ou não - aliás, sendo a falta de iniciativa também influente no devir. A grande dificuldade para o senso comum ocidental e em toda cultura fundada sobre as bases do desenvolvimentismo europeu consiste justamente em rejeitar tais pressupostos e admitir que não há nada de necessário nas diversas concepções de história, culturalmente determinadas. Em outras palavras, difícil admitir o caráter contingente do desenvolvimento uma vez educados segundo os vários paradigmas que visam a perfectibilidade do homem, que o reduzem à concepção naturalista e fisicamente legitimada de processo, seja ela teleológica ou não. Não é à toa que a filosofia começa e termina com o problema do movimento, e, derivadamente, da diferença. A partir do momento em que tal preocupação surgiu, jamais se conseguiu escapar ao modelo em absolutamente nenhuma filosofia a partir de então produzida.

Rousseau defende que, para o homem natural, a regularidade da natureza não é tomada como tal, pelo que lhe é indiferente - as coisas são o que são, são simplesmente dadas, e não há por que atribuir a tal homem o reconhecimento de algo que não lhe advém senão pela reflexão, por uma posterior tentativa de interpretação e previsão, o que só pode acontecer no momento de carência, quando, ao contrário, a regularidade é rompida causando um sentimento de necessidade. O homem, então, pode pensar: “obtive isto até aqui e, de repente, não obtenho mais; devo então criar meios para obter aquilo que quero em tempos de escassez!”. Mesmo este pensamento exige certa sofisticação do intelecto, pois supõe o reconhecimento de si mesmo enquanto sujeito causador, eficiente, podendo agir de certa maneira independente de uma ordem externa a si e necessária, “natural”. O homem produzirá por si mesmo a partir do momento em que reconhecer o risco de a natureza não lhe prover aquilo de que sente necessidade, e isto é em muitos casos antecedido por uma divinização extremada de uma Natureza tida como sagrada, intocável. A necessidade instaura a propriedade, mas não se trata de uma necessidade imposta pela natureza, e sim de uma necessidade colocada pelo interesse de se obter algo que a natureza, por si só, não nos concede providencial e espontaneamente segundo nosso desejo. Por isso, o homem conserva e/ou produz pragmaticamente, o que, segundo Locke, funda e serve como legitimação da propriedade.

Faço aqui uma pequena digressão. Privilegiarmos, nesse sentido, os sedentários como mais racionais do que os nômades significa privilegiar uma opção de vida, que conserva e preserva para explorar continuadamente e não simplesmente explora segundo a disponibilidade. O segundo tipo de exploração ainda é visto, pejorativamente, como imprevidência, destrutividade e mesmo abuso irracional de recursos - em uma palavra: como ignorância, e, mais que isto, como “falta de consciência ecológica”, passível de recriminação na medida em que pode trazer conseqüências letais para toda a humanidade. Mas o critério segundo o qual chegou-se a classificar e justificar o prevalecimento de agricultores sedentários sobre pastores nômades tende a tomar o efeito pela causa caso se pretenda dizer que estes últimos “perderam” por não se desenvolverem, em vez de se reconhecer que foram praticamente suprimidos por não terem mais seus caminhos liberados. A antropologia, ora superada, que legitima esse preconceito é referida por Rousseau em outro escrito, onde se lê sobre os três estados do homem considerado em relação à sociedade: “O selvagem é caçador; o bárbaro, pastor; o homem civilizado, agricultor”.(8) Obviamente, trata-se da história contada pelos vencedores. Embora tais grupos se configurem para Locke, mas não para Rousseau, como agrupamentos naturais, podemos lembrar aqui as palavras deste:

 

Parece, a princípio, que os homens nesse estado de natureza, não havendo entre eles espécie alguma de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes, a menos que, tomando estas palavras num sentido físico, se considerem vícios do indivíduo as qualidades capazes de prejudicar sua própria conservação, e virtudes aquelas capazes de em seu favor contribuir, caso em que se poderiam chamar mais virtuosos àqueles que menos resistissem aos impulsos simples da natureza. (9)

 

O que resta obscuro, e para isto alerta a obra de Rousseau, é, justamente, em que consistem esses “impulsos simples da natureza”. São as diferentes respostas sobre quais são ou devem ser esses “impulsos” (sempre “naturais”) e, em seguida, sobre como são melhor direcionados, que, carregadas de pressuposições temerárias, determinarão as definições e descrições de humanidade, racionalidade, civilidade. Ora, então o pensamento ecológico só pode ter lugar em uma sociedade moldada segundo o modelo de apropriação da natureza, o que traz um aparente paradoxo.

Devemos nos lembrar que, mesmo para que se determine uma área de proteção ambiental, isto já se configura como a delimitação de um patrimônio, de uma propriedade! De quem? Da humanidade. Pode-se argüir: “não se destina ao usufruto”. Mas o que fazemos do oxigênio senão usufruir? Não há aqui nada além de uma valoração, onde, por exemplo, o ar que respiramos é tido como “produto” mais valioso e importante - um valor mesmo que não tem preço! - do que o papel ou os artefatos de madeira que produzimos. Não se trata, de modo algum, como tendemos a pensar, de dizer que o produto natural vale (intrinsecamente) mais do que o produto humano. Tal argumento é falacioso na medida em que, se o homem não tem saúde, não pode produzir muita coisa, e é por isso que o primeiro valem mais do que o segundo, pois o torna possível.

Retomando a questão principal, não é qualquer necessidade contingente - ou seja, uma carência que pode ser sentida ou não pelo indivíduo ou grupo - que fundará a propriedade. Esta necessidade deve se apresentar de maneira contínua, e o mesmo vale para as necessidades fundadoras da preservação ambiental. Pode-se trazer para este âmbito o que Rousseau diz do desejo sexual natural, a saber: “A imaginação [...] não atinge corações selvagens [...] e, uma vez satisfeita a necessidade, extingue-se todo o desejo.” (10) Na medida em que o desejo não se extingue, posto que a carência não é suprida (ou suprimida), o homem busca reter para si a fonte de satisfação de seu desejo, que pode ser a terra e seus frutos, os animais ou mesmo o sexo oposto. Aí, sim, surge a noção de propriedade, junto à vaidade e ao egoísmo, e disso mesmo dependerá a noção de justiça, que sempre envolve relações estabelecidas entre homens. Se a necessidade leva à apropriação e esta supõe a imposição de limites, a justiça - portanto, a lei por que se expressa - não é natural, e sim, convencional, um artifício humano. Paradoxalmente: o estabelecimento de uma relação que distingue os homens sob o pretexto de dispô-los (organizá-los) igualitariamente - não no sentido da igualdade absoluta, mas no da equivalência relativa, conforme já distinguido por Aristóteles.

Sendo assim, se a sociedade civil se caracteriza, em Locke, não pelo agrupamento, mas pela instituição do Estado de Direito, que visa salvaguardar os direitos à vida e à propriedade, eis aí a fonte das desigualdades e, também, de horrores jamais vistos. Para Rousseau, ainda, é a propriedade a fundar a sociedade civil e, mais que isto, é ela a acentuar a decadência do homem, constituindo o tema central da segunda parte do Discurso, que tem início com as seguintes palavras tão comumente citadas:

 

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa idéia de propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só poderiam ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer-se muitos progressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração para geração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. (11)

 

A partir daí desdobra-se a versão rousseauniana da história da corrupção, que carrega implicitamente um sistema de desenvolvimento vicioso e sempre em privilégio do mais forte e suas iniciativas. (12) Mais capazes de defenderem da usurpação aquilo de que arbitrariamente se apoderaram, os mais fortes não deixaram outra alternativa aos mais fracos senão imitá-los em sua iniciativa, ao invés de se unirem para desempossá-los. O que há de natural é que, nessas circunstâncias, todos os que adquirem propriedades buscam meios de se precaverem contra usurpadores sem que, para isso, devam arriscar a própria vida - eis o papel do direito de propriedade: a lei protege daquilo a que a força natural não seria capaz de fazer frente. A noção de “pertencimento”, requerida por Rousseau, é aqui reduzida à mera conveniência em benefício da própria integridade física, não tendo nenhuma relação com um reconhecimento racional de limites impostos pelo trabalho alheio, o qual depende de um longo processo de aprendizado e exercício dessa mesma razão. O trabalho, aqui, tem o papel de marcar os limites da propriedade, mas a justificativa desta propriedade enquanto tal deve ser posterior, assim como a conservação da posse exige a continuidade do trabalho, o que imediatamente nos informa sobre a perda brutal da liberdade natural mediante a necessidade do esforço, problema este a ser discutido por Marx em sua teoria da alienação pelo trabalho.

 

Da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar suas vidas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem mostra-se ainda mais natural, por ser impossível conceber a idéia da propriedade nascendo de algo que não a mão-de-obra, pois não se compreende como, para apropriar-se de coisas que não produziu, o homem nisso conseguiu pôr mais do que o seu trabalho. Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe conseqüentemente direito sobre a gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. (13)

 

É, portanto, através do direito àquilo que se produz (o que é cultivado na terra), estende-se o direito àquilo que não se produziu (a terra ela mesma), direito este temporário e regulado pelo tempo de cultivo, o que significa não haver um direito à terra em si mesma. Por justo e equânime que isto nos pareça - e Rousseau não o nega, mas apenas pretende ressaltar o caráter convencional de toda lei e de todo direito -, constitui a fonte artificial da desigualdade na medida em que permite às desigualdades naturais se intensificarem exponencialmente, e isto pela apropriação continuada dos meios (de produção) em razão do direito descontinuado aos fins (bens produzidos)!

 

Estando as coisas nesse estado, teriam assim continuado se os talentos fossem iguais e se, por exemplo, o emprego de ferro e a consumação dos alimentos sempre estivessem em exato equilíbrio. Mas a proporção, que nada mantinha, logo se rompeu; os mais fortes realizavam mais trabalho, o mais habilidoso tirava mais partido do seu, o mais engenhoso encontrava meios para abreviar a faina, o lavrador sentia mais necessidade de ferro ou o ferreiro mais necessidade de trigo e, trabalhando igualmente, um ganhava muito enquanto outro tinha dificuldade de viver. Assim, a desigualdade natural insensivelmente se desenvolve junto com a desigualdade de combinação, e as diferenças entre os homens, desenvolvidas pelas diferenças das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes em seus efeitos e, em idêntica proporção, começam a influir na sorte dos particulares. (14)

 

Com efeito, Locke não garante com sua doutrina meritocrática aquilo que é fundamental para Rousseau em uma sociedade: o patriotismo. Locke procura fundamentar, antes, uma democracia que favoreça a igualdade de oportunidades de progresso pessoal - o progresso da nação seria apenas um resultado do somatório de progressos pessoais de uns em detrimento de outros -, e isto enquanto uma recusa de um determinado status quo vigente em seu tempo. De todo modo, a teoria lockeana, nesses termos, deixa impensado que o aprofundamento dos processos de acumulação leva a gargalos incontornáveis, onde o mérito de um indivíduo muito pouco vale após gerações e gerações de subordinação de uma classe assalariada a uma classe empreendedora sedimentada, pois os respectivos pontos de partida já são desiguais. Isto é antevisto por Rousseau, explicitamente, em sua crítica à educação, tão fundamental à reprodução de modelos que permitam a subsistência da sociedade civil, partindo mesmo de sua legitimidade, de sua vantagem e mesmo de sua necessidade enquanto resultado da racionalidade humana, naturalmente tendente à associação. Diz ele, com grande profundidade, partindo do pressuposto de que são as conveniências sociais e os hábitos socialmente adquiridos a instaurarem um sistema de progressiva diferenciação entre os homens: “a educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que não o são, como também aumenta a que existe entre os primeiros na proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão andam pelo mesmo caminho, cada passo, que um e outro dêem, trará uma vantagem a mais ao gigante” (15). Toda ideologia contemporânea em torno da educação para a cidadania leva em consideração apenas o primeiro aspecto, deixando impensado o segundo (exclusor). Os mesmos meios (oportunidades) dados a um e outro - digamos, ao miserável e ao abastado - de maneira alguma contribuirão à sua igualdade, mas sim, endossarão um afastamento cada vez maior, e isto, paradoxalmente, sob um princípio de igualdade natural que não tem outra função senão o direito, por parte da sociedade, de exigir de todos os mesmos resultados, punindo aqueles que não os atingem. Caso efetivamente considerássemos os homens em suas diferenças, não teríamos qualquer critério para avaliar suas obras, e isto de maneira radical! Não se trata de pluralismo, mas do fim da meritocracia. Não devemos ter direito à diferença enquanto iguais - i.e., enquanto humanos racionais e livres -; deveríamos, antes, ter igual direito à diferença enquanto diferentes, e isto significa: direito à singularidade. Ora, mas não é justamente disto que abríramos mão em prol de nossas associações?

Acredito ser esta a utopia rousseauniana. Utopia na medida em que o direito natural à preservação de nossa singularidade tende a ser negligenciado em benefício de nossos interesses e paixões, pelo que a sociedade resulta do fim dessa singularidade própria do bom selvagem em nome de uma recíproca adequação, que não implica outra coisa senão a perda dessa singularidade que nos é própria. Ora, mas se nossos interesses e paixões também constituírem nossa singularidade - uma questão a se colocar -, não temos mais aqui uma utopia, e sim um verdadeiro paradoxo!

A conseqüente opressão dos “anões” pelos “gigantes” só é possibilitada na medida em que ambos se submetem a uma norma comum, são feitos iguais perante uma lei (isonomia). A partir do momento em que reconhecem sua interdependência - pois o “gigante”, em dado momento, quer produzir mais do que suas capacidades naturais permitem, enquanto que o “anão”, não possuindo seus próprios meios de produção, deve se submeter às regras daquele para suprir suas necessidades -, e, portanto, como “iguais”, suas diferenças ganham legitimidade, e é justamente neste contexto que podem se intensificar, até sua generalização. Ou seja, quando toda a terra se torna propriedade de alguém, às gerações futuras dos não-proprietários cabe apenas a servidão. Trata-se da obscuridade das noções de opressão e dominação, sobre o que diz Rousseau:

 

Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver como, por serem os laços da servidão formados unicamente pela dependência mútua dos homens e pelas necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem sem antes tê-lo colocado na situação de não viver sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de natureza, nele deixa cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais forte. (16)

 

Os ricos, temendo perder o que é seu, são os primeiros a convocar à união pelo direito de propriedade, engajados na exigência de leis e um governo que os proteja, voltando contra os ofensores suas próprias armas. Nisto teriam sido primeiramente enredados os mais grosseiros, que “possuíam demasiada ambição para poder por muito tempo dispensar os senhores”. (17)  Afinal, os primeiros que ousam atentar contra os bens mais caros e naturais, justamente os únicos que ainda detêm - a saber, a liberdade e a vida -, não podem fazê-lo senão por ambição, orgulho e vaidade, vícios segundo os quais se deixam até mesmo oprimir. Para Rousseau, parece muito difícil “reduzir à obediência aquele que não procura comandar e o político mais esperto não conseguiria submeter homens que só desejassem ser livres”, mas somente aqueles para quem a dominação se torna “mais cara do que a independência”, só sendo pensável que consintam em “carregar grilhões para por sua vez poder aplicá-los”. (18)  Por que? Porque apenas aquele que vê legitimidade no mando admite a obediência. E, assim, conclui Rousseau:

 

Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. (19)

 

Desse modo, Rousseau aponta o processo de desigualdade civil como tendo sido constituído de três momentos: o estabelecimento da lei e do direito de propriedade, que autoriza a diferença entre ricos e pobres; a instituição da magistratura, que faria valer tal lei e tal direito autorizando a diferença entre poderosos e fracos; e a transformação do poder legítimo em poder arbitrário, que levará à dicotomia entre senhores e escravos. (20)

 

 

Notas

 

(1) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005a. (Coleção Os Pensadores). Vol. II. p. 98.

(2) Id., ibid., p. 47.

(3) Id., ibid., p. 46-47. É de se notar que Rousseau não apenas estende o nominalismo ao que se entendia em seu tempo por “lei natural” como antecipa, de certo modo, uma crítica ao imperativo categórico kantiano, apresentado na Fundamentação da metafísica dos costumes, escrita trinta anos após. Não se trata, contudo, de afirmar total a adequação de tal “antecipação”, de que não se pode ocupar o presente trabalho.

(4) Id., ibid., p. 51-52.

(5) Id., ibid., p. 44-45.

(6) Id., ibid., p. 82.

(7) Id., ibid., p. 44.

(8) ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas no qual se fala da melodia e da imitação musical. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005b. (Coleção Os Pensadores). Vol. I. p. 292.

(9) Id., 2005a, p. 75.

(10) Id., Ibid., p. 80.

(11)  Id., ibid., p. 87.

(12) V. id., ibid., p. 90.

(13) Id., ibid., p. 95-96.

(14) Id., ibid., p. 96.

(15) Id., ibid., p. 82.

(16) Id., ibid., p. 83.

(17) Id., ibid., p. 100.

(18) Id., ibid., p. 110.

(19) Id., ibid., p. 100.

(20) Cf. id., ibid., p. 110.

 

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