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Em busca do elo perdido: Rousseau e a crise da modernidade

 

Eguimar Simões Vogado

Universidade Estadual Paulista / Araraquara

 

 

Mesmo considerando a Antigüidade grega precursora da Europa moderna (a Grécia é sempre citada como o berço da civilização européia e ocidental), é preciso relativizarmos essa afirmação. Percebe-se unidade na cultura grega no fato de que pensamento, fala e escrita se estabeleciam na condição de que os gregos pensavam, falavam e escreviam em grego. O homem grego era horizontal e verticalmente inteiro, sendo a alma a sede do conhecimento e o corpo intermediador na prática e aquisição desse conhecimento. O sentido da honra colocava-o em uma unidade horizontal, diacrônica, com antepassados e descendentes. A Grécia soube abrir-se ao mundo, elegendo o que havia de valioso nas outras culturas e refletindo e condenando seus próprios traços de incivilidade ou intolerância. Mesmo as guerras fratricidas parecem fazer parte de uma harmonia, de um arranjo social que garantia espaço para a manifestação da violência enquanto componente colateral ao processo civilizatório.  Entre a Grécia e a Europa do tempo de Rousseau, ocorreram profundas transformações políticas, sociais e econômicas, que tiveram início com o império romano e seu expansionismo; passando pela substituição da influência militar romana pelo poder político, belicista e opressor baseado na religião, sob os auspícios da Igreja, a separação dos povos e a divisão da Europa em reinos controlados pelo papado, o aparecimento da escrita e a Renascença que impôs limites ao poder secular da Igreja.  

Rousseau surge no momento em que os diversos atores da cena política francesa encontram-se em total descontentamento com as condições existentes e procurando, cada qual a seu modo, encontrar uma saída para a situação. Os comerciantes burgueses, a aristocracia feudal, a igreja e o monarca lutam desesperadamente para manter o espaço ocupado e, na medida do possível, avançar sobre o alheio. A França era um barril de pólvora à beira da explosão e as idéias de Rousseau expressaram essa condição e contribuíram para antecipar a chama que acendeu o estopim.

A idéia que queremos trazer à apreciação, no entanto, tem como ponto de partida o trecho do Discurso Sobre a Desigualdade em que Rousseau analisa a origem das línguas. É aqui que encontramos um vértice entre as preocupações de Rousseau e a pesquisa que vimos desenvolvendo e que não trata diretamente das inquietações que tomaram conta do espírito do pensador franco-suíço. O autor que tomamos como objeto de pesquisa, Ariano Suassuna, encontrou na arte e na cultura popular do agreste brasileiro uma espécie de resistência à modernidade, que as mantiveram indiferentes aos avanços da tecnologia, dos costumes e da moda. Foi essa resistência que nos permitiu entrever um aspecto não levado em conta pelo autor francês: antes de submeter-se ao domínio romano, a Europa dividia-se em tribos. As comunidades tribais viviam também em estreita harmonia entre si, e com a natureza, considerando como intrínsecas a essa harmonia as guerras localizadas e as brigas internas pelo poder, o desterro dos derrotados, o surgimento de dissidências e a formação de outras comunidades. 

Rousseau parece não estabelecer uma separação entre a linguagem falada e a escrita. Mas essa separação nos parece fundamental para entender a transformação da Europa ocorrida desde a dominação romana até a invenção da imprensa no século XVI. Essencial também para entender grande parte dos debates sobre estética e política até os tempos atuais. Podemos oferecer como exemplo o esforço para resgatar a tradição oral impetrada por inúmeros escritores, durante o movimento romântico. Além disso, parece inevitável que ao aproximar-se do esgotamento conceitual, muitos artistas parecem retornar às ruas, depois de terem ficado muito tempo mofando em seus gabinetes e estúdios, para compreender, a partir do olhar popular, uma outra razão estética.

O que queremos expor é que no caso da Europa românica, ao contrário do que ocorria com a Grécia, as tribos submetidas à tirania romana se comunicavam numa língua que não era mais a sua e desconheciam a língua na qual o poder romano escrevia seus éditos e documentava a história. Nesse sentido, o percurso desenvolvido pela humanidade resulta de um embate entre os povos que registraram sua cultura, seus valores e sua história através da escrita e outros, muitos dos quais jamais serão respeitados e serão esquecidos para sempre, porque sua tradição, baseada na oralidade, desaparecerá com eles.

Nesse sentido, dominar a escrita corresponde a tomar as rédeas do poder. Por essa razão, julgamos que a mais importante contribuição da cultura romana para os outros povos europeus terá sido a determinação desses povos de ter o seu próprio idioma e de reescrever a história com suas próprias palavras. 

Rousseau nos propicia a oportunidade de pensarmos a história da Europa não como uma linha contínua que parta da Grécia em direção ao século das Luzes, mas como uma sucessão de eventos ocorridos numa mesma região que se formou como se formam geologicamente as rochas, por sobreposição de camadas. No fundamento de tudo, encontram-se as tribos com sua cultura baseada na tradição oral, com sua mitologia que os mantinha ligados à natureza e a tempo e espaço dominados pelos ciclos naturais, os quais se repetem dentro de uma eternidade apaziguadora. Tem-se a seguir a invasão romana com seus impostos e a malícia de seus jogos políticos. O espaço deixado pelas forças romanas é, então, ocupado pela Igreja com suas práticas contraditórias e opressivas. Vale observar que os deuses cultuados pelas tribos européias não causavam incômodos aos romanos, mas é a partir da transformação do cristianismo em religião oficial do Império, que começam as perseguições, as catequeses e as fogueiras “purificadoras”. 

É na luta travada pelos povos europeus para consolidarem seus próprios idiomas, sua história e registrar os feitos heróicos de seus líderes que vemos um paralelo entre o assunto principal do Romance da Pedra do Reino, de Suassuna, e o momento europeu. Como se um pedacinho da Europa medieval houvesse sido transportado para o interior agreste do sertão nordestino, Suassuna nos leva a desvendar muito da importância das romanças e das narrativas épicas presentes na base da formação das nações européias e conservadas em sua essência no pensamento e na cultura popular do sertão do Nordeste brasileiro.

Vale pensarmos que a linguagem oral é mais livre e que, por isso mesmo, permite a criação de mitos e lendas e a conservação, no mais recôndito da alma, de valores até então considerados desaparecidos para sempre. A linguagem escrita é cientifica e documental, conserva a memória e permite avanços tecnológicos. Também é prescritora de normas e condutas. A oralidade consagra e mantém o mito, enquanto a linguagem escrita garante a supremacia de alguns homens sobre seus iguais; consolida a hegemonia de uns povos sobre outros.  

É possível enxergarmos muito dessas forças primitivas somarem-se no espírito irrequieto e libertário de Rousseau, mesmo que seu discurso o torne aparentemente distante delas. Questionar a propriedade privada é, de certa maneira, resgatar um conceito tribal de existência. Tudo na tribo é coletivizado, o trabalho, a colheita, a preparação das crianças, a propriedade das terras. As festas marcam os ritos de passagem e revestem-se de sentidos válidos universalmente. A linguagem gestual precede e acompanha a linguagem oral. As danças, as festas e os rituais coletivos traduzem a perenidade da existência (porque o entendimento é o de que sempre haverá quem as realize). A noção de tradição, muitas vezes, confundida com atraso e conservadorismo político é um dos valores perdidos com a modernidade e Rousseau também reflete essa ruptura, nas suas dualidades existenciais: ora protestante, ora católico, ora suíço, ora francês, ora aristocrata, ora porta-voz do insatisfação liberal. Ele parece catalisar em si todo o inconformismo da história: o explícito e o subjacente. Mas o mundo é uma coleção de fragmentos e dar sentido a isso parece fazer dele um misto de lúcido e louco.         

O que dá sentido à expressão “crise da modernidade” não é apenas a percepção e a consagração da subjetividade quase como uma religião, mas, ao lado disso, e como conseqüência imediata dela, estabelece-se a alteridade, a consciência de que o outro pode constituir-se em obstáculo entre o que somos e o que sonhamos. Rousseau, em  Les rêveries d’un promeneur solitaire, propõe-se um exercício filosófico que consiste em isolar-se do mundo e buscar no mais profundo de sua alma o sentido de sua existência. Sem admitir nem mesmo a presença de um leitor ideal, escrevendo para si mesmo, ele expressa os signos essenciais da modernidade: o isolamento e a crise de identidade. Evidencia que seu sofrimento em razão do outro, ou outros, seus detratores, amenizou-se a partir do momento em que passou a tratá-los com indiferença, a manifestar alegria em substituição do pesar que experimentara. Temos, com Rousseau, mais algumas pistas sobre o que caracterizaria a crise da modernidade: afastamo-nos de nosso deus único devido à sua indiferença em relação ao sofrimento dos mortais e à sua tirania, mas refletimos essas qualidades. Analisando a pólis como espelho do mito e o mito como reflexo da concepção que os gregos tinham da natureza, concluiremos o quanto o mundo moderno perdeu em comunhão (transformada em objeto de desejo) e ganhou em diversidade e pluralidade de mitos e pensares. O homem moderno deixa de ser uno com seu grupo e com a natureza; sua condição na modernidade é a do isolamento e incompletude. Em Rousseau, das Rêveries, temos os traços mais significativos da modernidade e que parecem representar o sentido mesmo dos paradoxos e da crise que se vive desde sua origem até os dias atuais.

 

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