Volta

 

Rousseau e a origem do mal

 

Israel Alexandria Costa

Universidade Católica do Salvador

 

 

O tema do mal, clássico em nossa tradição filosófica, é um dos aspectos mais destacados e aprofundados das observações de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sobre a condição humana e, em especial, dos homens de seu século: o leitor logo se dá conta de que seus discursos se desdobram em torno desse tema e, nesse sentido, Salinas Forte destaca que a visão de Rousseau sobre a história humana é profundamente negativa. De fato, no Discurso sobre as ciências e as artes (1750), o genebrino acusa o progresso que o mal faz de um dia para o outro e denuncia que a depravação é real; no Discurso sobre a desigualdade (1755), insiste que os homens se encontram avaros, ambiciosos e maus e que a extensão conceitual e existencial desse mal não parece ser pequena; na Carta XXI, terceira parte de Nova Heloísa, Rousseau lança, sob a máscara de milord Edouard, um desafio ao amante de Júlia, que reclama de um mal particular: "procura na ordem das coisas, se encontras algum bem que não esteja misturado com o mal" (1).

Rousseau não se destaca por ser o único, em seu tempo, a dar o testemunho da chamada existência do mal, mas sim pelo modo como ele o faz. No século XVIII, há certa tradição cristã — que nosso autor parece subtender ser o cristianismo professado pelo Arcebispo de Beaumont — cuja característica essencial é a de ser uma espécie de cristianismo da revelação, contra o qual Rousseau opõe o princípio de uma consciência moral a-histórica. Essa tradição oferece como testemunhas da existência do mal as imagens do inferno, do demônio, da queda, do paraíso perdido, do deicídio judeu, dos martírios dos santos, etc. No partido dos philosophers, destaca-se Voltaire, que oferece Cândido (1759) para testemunhar um verdadeiro pot-pourri de acontecimentos funestos nos diversos pontos do globo. Rousseau compartilha com tais testemunhos, mas oferece algo mais: a testemunha do mal que habita o território incompartilhável dos sentimentos. O mal apontado pela via desse testemunho não pode ser testemunhado por nenhum outro a não ser pelo próprio Rousseau, simplesmente porque se trata daquele mal singular, próprio de cada um. Exige-se uma exclusividade para testemunhar o sentimento do mal, ao mesmo tempo que uma universalidade desse testemunho, porquanto cada um de todos pode ser a testemunha de seu próprio sentimento do mal. Rousseau opera, com esse novo modo de testemunho do mal, uma espécie de revolução copernicana. O mal deixa o seu caráter de objeto que orbita na periferia do homem (acontecimentos) e passa a residir no centro da subjetividade humana (sentimentos). Em Rousseau, o acontecimento do mal (testemunhável por aquele que vê o que outro mostra, ou por aquele que ouve o que outro diz) não é a mesma coisa que o sentimento do mal (testemunhável por qualquer um, independentemente de qualquer outro). A testemunha do sentimento do mal não precisaria de ninguém a não ser de si mesma para ver ou ouvir o sentimento do mal; esse se mostraria e falaria por si só no interior de cada indivíduo humano.

Para testemunhar esse mal que pertence ao plano dos sentimentos, o indivíduo Rousseau lança mão de um recurso um tanto esquizóide. Ele cria para si uma espécie de alter ego que funciona como um anteparo do mal, um sofredor, estranho à pessoa daquele que emite os juízos. Esse outro-eu-sofredor do qual Rousseau representa o papel de juiz é chamado Jean-Jacques — essa dualidade que se opera na subjetividade do autor é evidenciada num título de uma de suas obras: Rousseau juiz de Jean-Jacques (1776). Rousseau é o homem da sociedade, uma camada artificial que recobre e desfigura uma base natural, que é Jean-Jacques: "o homem da natureza é imediatamente o eu de Jean-Jacques" (2) — observa Starobinski ao destacar que a noção rousseauniana de homem da natureza não é nada mais que a parte interior e mais profunda da subjetividade do próprio Rousseau. Desse modo, o discurso do testemunho do mal, em Rousseau, não pode ser apenas o discurso daquele que testemunha os acontecimentos históricos do mal, mas também o daquele que testemunha o mal que só aparece sob a forma de um sentimento subjetivo. A compreensão desse dualismo na subjetividade de Rousseau importa para o entendimento não só de suas ambigüidades e de seus paradoxos, mas também para o do que seria esse tão polêmico sentimento de consciência, que o autor afirma ser a pedra de toque fixa e universal para a vida moral do homem à parte das referências histórico-morais. Não sem razão, Starobinski notará que o discurso pelo qual Rousseau elucida as máximas de seu sentimento da consciência é aquele pelo qual ele utiliza a experiência pessoal para (...) levá-la ao plano do universal.

Embora instigante, o caminho dessa reflexão em torno da existência do mal em Rousseau deve sofrer um desvio em razão da proposta a que se filia este texto: o de falar sobre as origens.

O trato sobre a origem do mal está evidenciado em todas as célebres obras de Rousseau. No Discurso sobre as ciências e as artes, ele acusa que um certo mal originado pela ação humana vem agigantando-se na medida em que se dá o progresso das luzes: "nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram" (3). No Discurso sobre a desigualdade, Rousseau julga ir às raízes mais profundas dessa obra humana que deu origem ao mal e a intuição fundamental sobre a natureza dessa investigação já está presente quatro anos antes dessa obra, a crer no que se lê em Carta ao Rei da Polônia (1751): "a primeira fonte do mal é a desigualdade" (4). O texto dessa carta deixa claro que Rousseau estabelece a ordem social como locus privilegiado da investigação sobre a origem do mal. No Emílio (1762) — em especial no opúsculo enxertado em meio ao livro IV, a Profissão de fé do vigário saboiano — a questão ganha um tratamento maduro e de inestimável valor filosófico. Num excerto significativo desse opúsculo, Rousseau aponta para a causa fundamental da origem do mal: "é o abuso de nossas faculdades que nos torna infelizes e maus" (5) [grifo meu].

Proponho que a sentença acima seja lida num sentido estrito. Ao afirmar que é o abuso de nossas faculdades que nos torna maus, Rousseau parece rejeitar as interpretações que diriam ser as nossas faculdades em si mesmas, ou unicamente o mero uso que se possa fazer delas sem o concurso de qualquer outros fatores, o que nos tornaria infelizes e maus. Importa distinguir aqui (i) a existência mesma das faculdades e (ii) o emprego que fazemos delas — e, quanto a esse emprego, distinguir, mais uma vez, entre "uso" e "abuso". Rousseau estaria a dizer que o que nos torna infelizes e maus não são as nossas faculdades elas mesmas, mas um certo emprego que fazemos delas. Duas conseqüências podem ser extraídas dessa interpretação: (i) Rousseau não autoriza qualquer investigação sobre a origem do mal no território da existência das faculdades humanas em si mesmas e desloca essa busca para o território do emprego que o homem faz delas; (ii) na abordagem do emprego que o homem faz de suas faculdades, não devemos pressupor qualquer necessidade imperiosa de que ele as empregue mal. Rousseau deixa em aberto a possibilidade de que o homem pudesse ter feito um bom uso de suas faculdades. A inferência que podemos fazer dessa observação tem grande importância filosófica: a origem do mal é um acontecimento contingente e não necessário.

A essas duas conseqüências corresponderiam ainda dois diferentes tipos de investigação: (i) a das faculdades em si mesmas, que se atrelaria ao estudo do homem em seu estado primitivo (ou, se quiser, de natureza) e; (ii) a do emprego humano dessas faculdades, atrelada ao estudo do homem no estado civil (ou, se quiser, de sociedade). Essa última investigação constituiria, em Rousseau, o que podemos chamar de discurso da ação moral.

Num segundo excerto da Profissão de fé, em que Rousseau trata da condição moral do homem, nos damos conta de que é no território da moralidade que deve ser buscada a possibilidade da origem do mal: "murmurar contra o fato de Deus não o impedir de fazer o mal é murmurar por tê-lo feito de uma natureza excelente, por ter posto em suas ações a moralidade (...)" (6) [grifo meu].

O concurso e a combinação dos dois excertos citados da Profissão de fé podem servir de chave para a leitura das obras de Rousseau sobre o tema das origens. No Discurso sobre a desigualdade, a noção de bondade parece coincidir com aquele estado de natureza originária, em que as faculdades humanas se encontram todas presentes, mas em seu estado de latência moral, isto é, sem o livre uso humano delas — que constitui o cerne da ação moral. A alteração desse estado se dá mediante uma atividade moral, ou seja, um ato humano enquanto agente livre no sentido do fazer uso dessas faculdades latentes. A conjunção desses dois elementos — natureza e moralidade — uma vez reconhecidos como constitutivos da condição humana, significa que o homem não apenas existe, mas que existe moralmente. A leitura de Rousseau nos faz ver na expressão existência moral uma noção complexa na medida em que ele nos ensina que se deve conceber o homem como um ser que começa por simplesmente existir (homem da natureza) antes de falarmos em existência moral propriamente dita (homem da sociedade). A dimensão da natureza diria respeito à dimensão da mera existência humana em seu estado originário, ou seja, àquele estado em que o homem vive apenas do que lhe foi dado. A dimensão da moralidade diria respeito a um modo de existir mediante aquilo que o homem livremente fez do que lhe foi dado. O discurso da moralidade não diria respeito à criação ou à aniquilação das faculdades dadas e nem mesmo ao mero uso delas, mas apenas a um tipo especial de uso: um uso enquanto agente livre. Rousseau se esforçará por mostrar que as conseqüências desse tipo de uso, para nós, não são pequenas, a crer na grande extensão do mal que resulta daí. Por meio de sua ação moral, o homem passa a ter uma absoluta independência, uma absoluta responsabilidade e uma absoluta autonomia sobre a importunidade de seus crimes, de sua infelicidade e de seus sofrimentos, assim como sobre o deleite frente à beleza, à justiça e à felicidade. Em suma, o homem é o único responsável pelo bem que goza tanto quanto pelo mal que o atormenta. Enquanto ser moral, o homem é ativo, livre e responsável por si mesmo e essa atividade moral repercute grandemente em seus efeitos práticos, sejam estes maléficos ou não. Os embates travados por Rousseau contra Philopolis, Voltaire e o Arcebispo de Beaumont realçam, respectivamente, os aspectos práticos das decisões humanas acerca de sua própria independência, responsabilidade e autonomia enquanto agente moral.

Esses opositores, na verdade, parecem falar outra linguagem independente daquela na qual Rousseau se enfronha, por isso é preciso atentar antes para a tradução rousseauniana desses textos que para as idéias ou intenções de seus autores. Nesse viés, vemos um Philopolis que traduz o Discurso sobre a origem da desigualdade como uma obra que merece acusações na medida em que a origem da sociedade termina por se confundir com a origem do mal, ressaltando que o autor genebrino, ao tempo em que acusa o mal da desigualdade, pugna para que esse mal seja remediado. A acusação contra a sociedade, soando equivocada para Philopolis, merecia uma objeção, um libelo que pretendesse justificar a Providência sob a alegação de que os homens deveriam aquietar-se diante da sabedoria suprema porque tudo está bem e que procurar remediar o mal particular da sociedade seria atacar a obra de Deus. Rousseau oferece uma réplica curiosa: reconhece a legitimidade do apelo da razão à Providência, mas corta a relação de dependência entre Providência e mal moral (ou social) e, por isso, não admite que tal apelo justifique qualquer forma de quietismo. Nesse sentido, Rousseau acusa haver uma contradição em Philopolis: agir historicamente enquanto discursa contra a necessidade de agir historicamente; inquietar-se ao pregar o quietismo. Ele parece querer lembrar a Philopolis que, ao lado da absoluta liberdade humana, existe também uma absoluta responsabilidade e que nenhum ato da vida humana em sociedade fica sem conseqüências históricas: o ato de fazer discursos estaria longe de ser um ato coerente com o quietismo. Esse tentáculo da enorme responsabilidade dos atos humanos, que teria sido desprezada no discurso de Philopolis, fica ressaltada diante da constatação rousseauniana de que o homem em sociedade, que fala e tem o poder do discurso, não pode reivindicar o direito ao quietismo, pois, para ser verdadeiramente quietista, deveria ficar quieto, calado e não se inquietar com fazer discursos. Um discurso a favor do quietismo seria, apesar da intenção do discursante, uma prática em si mesma antiquietista na medida em que é atividade discursiva.

No bojo do que tradicionalmente nos é apresentado como um "embate" entre Rousseau e Voltaire acerca do tema das relações entre mal e Providência, encontra-se um exame apurado sobre a extensão dos efeitos da ação moral. Na interpretação rousseauniana do Poema sobre o desastre de Lisboa, Voltaire aparece como alguém que teria minimizado a extensão dos efeitos da ação moral do homem ao atribuir a origem dos males concernentes ao terremoto de Lisboa à obra da Providência. Considerando que os males da vida humana teriam parecido a Voltaire grandes demais para que sua origem fosse atribuída apenas à ação humana, Rousseau concebe o projeto de fazer o seu (aparente) interlocutor voltar a si ao ver que a grandeza desses males é proporcional à grandeza da liberdade moral do homem e que, afinal, a Providência não é má. Na Carta sobre a Providência, Rousseau une ao seu discurso de que a ordem providencial é indiferente à ordem social uma espécie de otimismo tímido, chegando a citar Leibniz e Pope para contestar o pessimismo agressivo de Voltaire. Destaca-se nessa obra a comparação entre os males físicos no estado de natureza e os males físicos no estado de sociedade. Estes últimos, segundo Rousseau, encontrar-se-iam agigantados pelos vícios humanos. Para confirmar sua posição, Rousseau propõe uma reinterpretação dos males concernentes ao terremoto de Lisboa, deixando de lado qualquer insinuação de que a Providência seria responsável por eles.

No tocante à defesa rousseauniana da tese da autonomia humana na redenção do mal, poderíamos pensar no "embate" travado entre Rousseau e o Arcebispo de Beaumont. Ao pugnar pela tese da bondade natural e da autonomia humana para redimir-se do mal, Rousseau vai de encontro a um ponto decisivo que, segundo Cassirer, servia de sustentação ao corpo doutrinário da totalidade das instituições religiosas do século XVIII: o dogma da perversidade intrínseca da natureza humana. A crítica a esse dogma marca o momento em que o problema do mal passa a ser — conforme observa o professor Genildo Silva — estratégico para se detectar o nó do pensamento religioso de Rousseau. A razão da oposição rousseauniana é relativamente simples: se o homem tem uma natureza má, então ele só pode fazer o bem por força de um agente exterior, e, ainda que esse agente seja o próprio Deus, é necessário reconhecer que o homem não seria realmente livre se as suas ações não fossem absolutamente espontâneas e sim movidas por uma vontade estranha ao próprio homem.

Para melhor ilustrar os aspectos do que se poderia chamar de "oposição" entre Rousseau e Beaumont, conviria traçar um paralelo entre duas exegeses que orbitam em torno do esquema da queda humana. A primeira exegese seria de fundo beaumontiano e enfatizaria o caráter exógeno da ação pela qual o mal passa a integrar o universo humano; a segunda, de fundo rousseauniano, destacaria uma origem do mal como resultado de forças endógenas. Nesta, a queda do homem passa a ser explicada por meio de um processo exclusivamente empírico-antropológico, firmando uma absoluta autonomia humana frente ao projeto de redenção do mal.

 

 

Notas

 

(1) ROUSSEAU, Júlia, 3ª Parte, XXII, §8, Campinas-SP: HUCITEC/UNICAMP, 1999, p. 340.

(2) STAROBINSKI, J.-J. Rousseau: a transparência e o obstáculo, São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 85.

(3) ROUSSEAU, Discurso sobre as ciências e as artes, p. 337.

(4) Id., Carta ao Rei da Polônia, §50, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 386.

(5) Id., Emílio, IV, §68PF, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 379.

(6) Id., Ibid., IV, §67PF, p. 378.

 

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