Volta

 

Algumas reflexões sobre a crítica de Nietzsche a Rousseau 

Jorge Luiz Viesenteiner

Universidade Estadual de Campinas
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

 

1.  Considerações Gerais

 

Nietzsche e Rousseau são tomados como dois filósofos cujos pensamentos são profundamente antagônicos entre si. Se por um lado essa afirmação encontra eco ao longo de ambos os escritos, por outro lado, não deixa de ser um posicionamento insuficiente e, em muitos casos, visivelmente preconceituoso. Primeiramente, é digno de referência o fato de que não se trata de uma descaracterização da pessoa Rousseau por parte de Nietzsche, uma vez que como registrado pelo filósofo alemão, sua “práxis bélica” compreende o combate contra idéias e “jamais a pessoas” (Ecce homo: Por que sou tão sábio, 7). Além disso, trata-se de um combate contra um oponente reconhecidamente triunfante e forte o suficiente para gerar profundo respeito no próprio Nietzsche. No texto Miscelânea de opiniões e sentenças de 1879, por exemplo, ele já reconhece o valor que possuía o par Platão/Rousseau (KSA, Humano demasiado humano II, 480). Como se vê, Nietzsche está ciente da forte influência que Rousseau representa para o pensamento moderno, especialmente como um dos pilares-chave para a compreensão da modernidade decadencial.

O registro de Nietzsche e Rousseau como pensadores inconciliáveis também não deixa de ser insuficiente. Ambos são pensadores da décadence. Trata-se de compreender que possuem o mesmo problema em comum, vale dizer, o diagnóstico de uma crise de civilização e seu efeito devastador para o próprio homem. A ideologia do progresso da Filosofia das Luzes já havia sido percebida e registrada por Rousseau no seu premiado Discurso sobre as ciências e as artes, recebido da Academia de Dijon, em 1750. Nele, Rousseau faz o diagnóstico da decadência da cultura ocidental e já delineia os efeitos deste processo que desemboca numa espécie de rebanho de homens, nas palavras de Rousseau, os “escravos felizes”: “A necessidade levantou os tronos; as ciências e as artes os fortaleceram. Potências da terra, amai os talentos e protegei aqueles eu os cultivam. Povos policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis esse gosto delicado e fino com que vos excitais, [...] em uma palavra: a aparência de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas” (ROUSSEAU, 1973a, p. 342s).

Chame de “escravos felizes” ou, segundo Nietzsche, o anúncio de Zaratustra dos “últimos homens” (Zaratustra, Prólogo, 5), ambas as metáforas expressam o resultado do desenvolvimento de um determinado processo que culmina no rebaixamento e mediocrização do próprio homem; num rebanho de homens dependentes, espetacularizados e arrebatados por uma ideologia progressista de bem-estar e felicidade hedonista.

As referências acima são registros que representam a insuficiência do estigma de pensadores irreconciliáveis. Do diagnóstico da crise cultural, passando pela sua demonstração através da desigualdade até a solução empreendida por Rousseau – que se dará no Contrato Social – diversos são os elementos de aproximação dos dois filósofos. Acrescentem-se também as inúmeras simplificações feitas por Nietzsche do pensamento rousseauniano. Assim, é sempre interessante lembrar que se trata do Rousseau de Nietzsche, quer dizer, de como ele o compreendeu.

Mas, por um lado, se o problema da civilização é comum a ambos, por outro o tratamento fornecido às questões levantadas distanciam-se relevantemente. Segundo Nietzsche, o diagnóstico de Rousseau da decadência receberá um tratamento tão decadencial quanto o próprio prognóstico; a cura é tão doentia quanto a própria enfermidade. Rousseau ganha relevância no cenário moderno precisamente neste ponto. Assim, como “típico homem moderno, idealista e canalha numa pessoa” (KSA 12, 9[116] p. 402s), Rousseau é, segundo Nietzsche, mais uma expressão da décadence que não poderia ter exercido outro papel a não ser o que representou: uma espécie de redentor cujo remédio fornecido é, indiretamente, para ele mesmo. A bem da verdade, ao lado de Wagner e Schopenhauer, Rousseau é o terceiro elemento que encerra o tripé de interlocutores de Nietzsche utilizados para interpretar a modernidade decadencial.

 

 

2.  A Crítica de Nietzsche a Rousseau

 

Nietzsche é um crítico radical no que se refere ao tratamento dado por Rousseau ao problema da civilização. O problema do “retorno à natureza” reivindicado por Rousseau, seu envenenamento até a medula pelo ressentimento, o rousseaunismo como lógica da revolução e as questões pertinentes ao legislador, são algumas das análises que podem ser feitas a partir dos escritos de Nietzsche. Não há um tratamento sistemático dessas questões, mas há uma série de fragmentos, especialmente os póstumos que registram os aspectos da crítica a Rousseau. Ressaltemos que nosso texto, originalmente, possui um tratamento mais detalhado destas questões, mas que foi encurtado a pedido dos editores.

É possível dizer que Rousseau vivencia um tremendo dilema na relação cultura/história/natureza. Trata-se do fato de que o homem se torna moral unicamente pelo processo histórico, ou seja, através da uma profunda mudança ocorrida no homem com a transição para a sociedade civil: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto de justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava” (ROUSSEAU, 1973c, p. 42). Porém, ao mesmo tempo em que homem acaba se tornando completamente moral pelo processo histórico, é precisamente “neste mesmo processo, a base de seu pensamento [de Rousseau – JLV] sobre o homem, que é ao mesmo tempo responsável pela produção não de uma humanidade moral e racional, mas de uma humanidade corrompida e degenerada” e, por conseqüência, “conduz a uma destruição da simplicidade, transparência e felicidade auto-suficiente do homem” (ANSELL-PEARSON, 1996, p. 5). O processo histórico é o principal inimigo de Rousseau, uma vez que os males são “obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza” (ROUSSEAU, 1973b, p. 247).

Com base nisto, Rousseau é impelido a delinear, segundo Nietzsche, seu gigantesco projeto de reivindicação por um certo “retorno à natureza”, com todas as aspas necessárias. É preciso registrar ainda que a reivindicação rousseauniana brota de uma espécie de idealização do homem tal como ele o imaginara no estado de natureza, quer dizer, um homem a-moral (ROUSSEAU, 1973b, p. 257) e equipado com a virtude natural da piedade (ROUSSEAU, 1973b, p. 258ss).

A reivindicação por uma re-naturalização do homem em Rousseau traduz o afeminamento dos instintos e soa reacionário e impotente, para Nietzsche. Uma exigência cuja seiva é nutrida por uma idealização do homem natural e que o impele a uma necessidade de melhoramento da natureza humana. Não é possível um “voltar para trás” (KSA 12, 10[53] p. 482); ao homem cabe, antes, ser cada vez mais natural, ascender e jamais retornar à natureza: “também eu falo de um ‘retorno à natureza’, ainda que propriamente não seja um retornar, mas um ascender – um ascender à natureza e naturalidade elevada, livre, embora terrível, que joga, que tem o direito de jogar com grandes tarefas...” (Crepúsculo de los ídolos, Incursões de um extemporáneo, 48). Ora, tornar-se mais natural não significa fazer brotar aquela espécie de compaixão ou piedade; antes disso, “mais natural” é se tornar mais profundo, desconfiado, ‘imoral’, mais forte, desconfiador de si mesmo” (KSA 12, 9[185] p. 449):  “o ‘homem bom’ como homem natural foi uma pura fantasia” (KSA 12, 9[184] p. 447ss). A idealização do homem conduz Rousseau a um vingativo processo de moralização, procedimento típico dos moralistas que em todos os tempos quiseram melhorar a humanidade, domesticá-la ao invés de cultivá-la.

O conflito gerado pelo distanciamento do homem de suas principais características naturais através do processo histórico põe a nu um elemento presente em Rousseau e, ao mesmo tempo, um tema caro à filosofia de Nietzsche: o ressentimento. Embora não seja o caso investigá-lo aqui, digamos que, sobrevivendo secretamente nos subterrâneos da alma rousseauniana, a dinâmica comum aos ressentidos e sofredores é a vingança, quer dizer, buscar “instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento” (Genealogia da moral. Terceira dissertação, 15).

Procurando um culpado para o sofrimento, Rousseau vai desferir seu ódio envenenador precisamente contra a própria sociedade, ou seja, como reflexo de suas insatisfações pessoais, sua vingança é um desejo obstinado de reforma. O remédio, pois, que Rousseau procura fornecer para um projeto de reforma social – registrado sob a rubrica de contrato social – é uma espécie de psicotrópico para, indiretamente, entorpecer e narcotizar sua experiência sofredora individual: “Homens como Rousseau sabem utilizar suas fraquezas, lacunas e vícios como adubo para seu talento, por assim dizer. Quando ele lamenta a corrupção e degeneração da sociedade como triste conseqüência da cultura, isso tem por base a experiência pessoal; a amargura proporciona agudeza à sua condenação geral e envenena as flechas que ele dispara; ele se desoprime inicialmente como indivíduo, e pensa em buscar um remédio que seja útil diretamente à sociedade, mas também indiretamente, por meio dela, a ele próprio” (Humano, demasiado humano, 617).

Todos os procedimentos de Rousseau são, doravante, motivados por um sentimento envenenador que é resultado de uma quase inconsciente impotência para suportar a si mesmo. O ressentimento de Rousseau expresso num ódio contra a sociedade desencadeia os mais furiosos e radicais sentimentos de vingança contra toda ordem social existente. Com base nisto, a sociedade e todo processo histórico de moralização do homem – fonte de todas as corrupções e degenerações sobre ele – deverá, pois, ser doravante reformada. O espírito de vingança é desencadeado contra a sociedade mesma, mas que tem por seiva, como se viu, a própria procura por um culpado pelo sofrimento.

O pensamento de Rousseau encontra expressão especialmente nos programas de reforma social realizados a partir do séc. XVIII. Mais do que isso, Rousseau é a lógica da Revolução Francesa. Motivado por uma idealização da natureza humana pautada no seu estatuto de piedade e, além disso, impulsionado pelo veneno do ressentimento contra toda ordem existente, Rousseau acaba predizendo e até invocando a rebelião com fins de reforma social. Como se vê, o devir, o processo histórico são as principais fontes de conflito em Rousseau. Não é à toa o registro nietzscheano que reza: “o ódio contra o devir, contra a diligente consideração do devir é comum a toda moral e revolução” (KSA 13, 15[53] p. 444).

A exigência rousseauniana pela revolução pode ser entrevista em algumas passagens especialmente no final do Discurso sobre a desigualdade. Trata-se de uma desesperada e ressentida reivindicação da legitimidade da rebelião na ingênua crença de que a abolição revolucionária dos comandantes políticos traria, logo em seguida, uma ordem justa, igualitária e fraterna: “A rebelião que finalmente degola ou destrona o sultão é um ato tão jurídico quanto aqueles pelos quais ele, na véspera, dispunha das vidas e dos bens de seus súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam, assim, segundo a ordem natural e, seja qual for o resultado dessas revoluções breves e freqüentes, ninguém pode lamentar-se da injustiça de outrem, mas unicamente de sua própria imprudência ou de sua infelicidade” (ROUSSEAU, 1973b, p. 286).

Dois registros são essenciais na passagem acima. O primeiro é conferir ao ato revolucionário que “destrona o sultão” o caráter de “ordem natural”. A bem da verdade, ele indica a inconsciente necessidade de auto-consolo diante de um mundo que oprime e degenera. O movimento revolucionário como uma espécie de lógica da ordem natural expressa a crença otimista e consoladora numa certa “ordenação moral do mundo” (Ecce Homo: Por que sou um destino, 3). O segundo registro é perceber a “infelicidade” do homem como a fonte de lamento e impulsionador do espírito revolucionário. A nosso ver, esta referência é paradigmática a propósito do procedimento dos ressentidos explicado acima. Ora, a fórmula equacionada na alma do ressentido que diz: “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado!” (GM III, 15), impele violentamente para a alternativa da revolução e, neste caso, o agente culpado que deve ser objeto de vingança só pode ser a ordem social.

O idealismo do espírito revolucionário acaba se colocando na fronteira da mais terrível opressão. A ingenuidade da revolução, acreditando que uma vez destituída a classe comandante do poder, acaba por consolidar em seguida a emersão da mais perfeita das ordens sociais pautadas na justiça, igualdade e liberdade de todos, sobrevive subterraneamente nos escritos de Rousseau. Uma das críticas ferozes de Nietzsche a Rousseau caminha precisamente nesta direção: “Há visionários políticos e sociais que com eloqüência e fogosidade pedem a subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só. Nestes sonhos perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos, soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade, Estado, educação” (HDH, 463).

A título de arremate, H. Ottmann registrou assim a posição nietzscheana sobre Rousseau como tradutor da “substância revolucionária”: “Segundo Nietzsche, Rousseau foi a peça-chave para a história da decadência no século 18, por um lado, e a combinação de ressentimento e reação, por outro lado. Foi precisamente a “substância revolucionária” da decadência que tomou forma em Rousseau. [...] As paixões não domesticadas do Eu foram uma expressão de fraqueza e não de força, e que acabaram desembocando na Revolução Francesa, a vitória do moderno instinto de vingança, nivelamento canalha (OTTMANN, 1999, p. 157).

Um último elemento teórico de análise entre Nietzsche e Rousseau se refere ao problema do legislador. A figura do legislador, que em Rousseau recebe um estatuto quase sobre-humano, surge inicialmente a partir do desenvolvimento de um outro tema também caro a Rousseau: a lei. A vontade geral e unicamente ela é a responsável pela produção da lei, que por seu turno, é também uma das responsáveis por educar o homem para o estado civil e, portanto, torná-lo moral. Na instituição da lei, pois, não deve haver quaisquer indícios de que uma vontade particular se sobrepôs em relação à vontade geral, uma vez que a lei deve representar exclusivamente aquilo sobre o que a vontade geral estatui, sendo geral também “a matéria sobre a qual se estatui” (ROUSSEAU, 1973c, p. 60). A lei, portanto, é o ato da vontade geral em que todo povo decreta para todos, expressando por excelência os desejos da vontade geral.

O próprio Rousseau, porém, acaba levantando no capítulo sobre a lei uma séria dificuldade, que por sua vez, delineará precisamente a necessidade do legislador. Trata-se de perceber que, se por um lado, a lei é a justa universalização dos desejos da vontade geral educando o homem para que cada um se torne moral, por outro lado, e aqui se localiza a dificuldade, não é possível se tornar moral e saber justamente o que se deseja sem que antes já esteja constituída a vontade geral. Para que a vontade geral estabeleça a lei universalizada e absolutamente coerente com seus desejos são necessárias pessoas já morais e inseridas no processo histórico da sociedade civil: “Como uma multidão cega, que freqüentemente não sabe o que deseja porque raramente sabe o que lhe convém, cumpriria por si mesma empresa tão grande e tão difícil quanto um sistema de legislação? O povo, por si, quer sempre o bem, mas por si nem sempre o encontra. A vontade geral é sempre certa, mas o julgamento que a orienta nem sempre é esclarecido. É preciso fazê-la ver os objetos tais como são, algumas vezes tais como eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o caminho certo que procura, defendê-la da sedução das vontades particulares [...]” (ROUSSEAU, 1973c, p. 62).

Se a multidão é cega e, portanto, a vontade geral não é infalível, Rousseau conclui que “todos necessitam, igualmente, de guias [...]. Eis donde nasce a necessidade de um Legislador” (ROUSSEAU, 1973c, p. 62). Além da clara consciência dos problemas em comum da nação o legislador realiza outra tarefa capital para o todo social. Nos termos de Rousseau: “Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la; substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e moral. Em uma palavra, é preciso que destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio. Na medida em que tais forças naturais estiverem mortas e aniquiladas, mais as adquiridas serão grandes e duradouras, e mais sólida e perfeita a instituição, de modo que, se cada cidadão nada for, nada poderá senão graças a todos os outros, e se a força adquirida pelo todo for igual ou superior à soma das forças naturais de todos os indivíduos, poderemos então dizer que a legislação está no mais alto grau de perfeição que possa atingir” (ROUSSEAU, 1973c, p. 63).

Duas questões são fundamentais na referência supracitada para fins de confronto com Nietzsche. A primeira questão é quanto à tarefa de “mudar a natureza humana”, destituindo-a de certas características para conferir-lhe outras que são verdadeiramente morais. O legislador, neste caso, acaba por exercer o mesmo papel daqueles representados, segundo Nietzsche, pelos melhoradores da humanidade. Transformar a natureza humana implica no seu melhoramento para torná-la moral. Este é o processo que opera não a partir do cultivo mas da domesticação. Trata-se da clássica diferenciação nietzscheana da moral do cultivo e da moral da domesticação. Alguém que estimula, facilita e até completa o processo de moralização do homem, enfim, alguém que “torna moral”, só pode ser alguém que tenha uma “vontade incondicional do contrário” (CI, Os melhoradores da humanidade, 5), que Nietzsche indica como “o inquietante problema por trás do qual eu andei durante longo tempo: a psicologia dos melhoradores da humanidade” (Idem). A grande questão por traz do processo de transformação da natureza humana operado pelo legislador está no fato de que ele põe em curso um movimento que é radicalmente contrário àquilo que inicialmente se objetiva, isto é, o processo de moralização ocorre por meios exclusivamente “imorais” (CI, Os melhoradores da humanidade, 5).

A segunda questão referente à passagem acima se refere ao estabelecimento de uma forte dependência social entre os homens. Ao legislador cabe tornar o homem moral a partir da transformação de sua natureza, garantindo uma unidade maior entre vontade particular e geral, a fim de estabelecer, finalmente, uma sociedade de indivíduos mutuamente dependentes, ou seja, fornecendo ao homem qualidades “das quais não possa fazer uso sem socorro alheio”. A dependência, como se sabe, é típica do procedimento daqueles que se agregam e almejam a tranqüilidade do rebanho resultando numa vida de paz, conforto e felicidade. A mútua dependência conjugada com a exigência de união entre vontade particular e vontade geral, evocada pela propaganda política de justiça e igualdade entre todos, pode desembocar, ao contrário, precisamente na injustiça e em maneiras sofisticadas e ocultadas de aniquilação de toda diferença.

Em todo caso, a clara diferença entre o legislador de Rousseau e o legislador de Nietzsche – os “precursores da grande política” (KSA 11, 35[45] p. 532) – consiste precisamente em que o primeiro se dirige especialmente para a coletividade enquanto que no segundo se trata de uma auto-legislação. Segundo Nietzsche, o legislador – aquele responsável por superar em si a tradição da “pequena política” (ABM, 208), da política que tem em Rousseau sua principal expressão – só pode ser gerado a partir da mais dura auto-disciplina e auto-legislação que ele impõe a si mesmo: “São dadas, agora, as condições propícias para uma ampla formação de domínio, cuja igualdade ainda não está fornecida. E isto ainda não é o mais importante; tornou-se possível o surgimento de uma federação internacional de classe que coloca para si mesma a tarefa do grande cultivo de uma raça de senhores, os futuros “senhores da terra”; – uma nova, impetuosa aristocracia construída sobre a mais dura auto-legislação em que se fornecerá à vontade do homem selvagem e do tirano-artista uma duração de séculos: – uma forma superior de homem que é grato ao seu excesso de vontade, saber, riqueza e influência, grato por ter se servido da Europa democrática como seu instrumento mais brando e flexível, a fim tomar nas mãos o destino da Terra, de moldar o “homem” propriamente como artista. Basta, é chegado o tempo em que se seguirá uma nova orientação da política” (KSA 12, 2[57] p. 87s).

E bem diferente do estabelecimento de um contexto de íntimo mutualismo, o legislador é aquele que percebe a necessidade de “livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitos” (ABM, 43), um reverenciador de si mesmo e artista da guerra e do combate. Porém, paradoxalmente, aquele que experimentou até a medula o mesmo processo de moralização, mas que, ao final, representa em si o fruto do longo processo que consiste em produzir alguém capaz de prometer: “o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo, supramoral” (GM II, 2).

 

 

   Referências Bibliográficas

 

  1. ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche contra Rousseau: a study of Nietzsche’s moral and political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  2. NIETZSCHE, Friedrich W. Kritische Studienausgabe (KSA). Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1980.
    _____. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  3. _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
  4. _____. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  5. _____. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  6. _____. Crepúsculo de los ídolos. Trad. Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1973.
  7. _____. Ecce Homo. Trad. Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1971.
  8. ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre as ciências e as artes. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973a.
  9. _____. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973b.
  10. _____. Do contrato social. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973c.
  11. OTTMANN, H. Philosophie und Politik bei Nietzsche. 2., verb. und erw. Auflage. Berlin/New York: de Gruyter, 1999.

 

 

Início do documento