Volta
Rousseau:
transformação da espécie e contradição do sistema social
Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd
Universidade Federal de
Uberlândia
Qual é a origem do mal? Se boa parte dos filósofos postularam que a miséria e a
crueldade dos homens, tal como nós conhecemos, revelam certas
características permanentes da natureza humana e que são suas
conseqüências, Rousseau suspeita, de acordo com a maior parte das
concepções religiosas da humanidade, que algum acontecimento capital
transformou o gênero humano. Na origem, foi prometida uma sorte melhor aos
homens. “Nada é tão triste quanto o destino dos homens em geral”, observa
Rousseau. (1) Eles apresentam, porém, um desejo
incontrolado pela felicidade e a sensação de que foram feitos, ao nascerem,
para alcançá-la. Este sentimento universal, que costumamos afastar como uma
esperança sem fundamento, constitui verdadeiramente um pressentimento da
verdade?
Não é mais
plausível que a natureza, apesar de tudo, tendo estabelecido ordem em todos
os lugares, tenha destinado o homem a uma tal
desordem. Que as diversas espécies naturais tenham sido produzidas por
Deus, por uma teleologia natural, ou por um processo evolutivo, está claro
que elas são todas bem ordenadas, que possuem desejos naturais para as
necessidades de seu corpo e faculdades naturais para obter as coisas que
desejam. É somente em nossa espécie que as necessidades, os desejos e as
faculdades não se reconciliam; é somente entre os homens que existem as
guerras, a escravidão, o assassinato e o suicídio. É, precisamente por
isso, raciocina Rousseau, que os homens atuais são tão extraordinariamente
maus, pois é improvável que sua maldade seja natural. Desse modo, qual
acontecimento histórico deve tê-los transformado?
O que conduz
Rousseau, todavia, a levar à sério esta estranha
hipótese é que ele foi um dos primeiros a tomar consciência do caráter
marcantemente “histórico” do ser humano, da extrema maleabilidade de sua
natureza no curso do tempo. Os pensadores clássicos tendiam a considerar a
natureza fundamental do homem como dada e imutável – mesmo se a forma e o grau de seu desenvolvimento pudesse variar
com as circunstâncias. Foi John Locke quem dirigiu o ataque mais célebre a
esta concepção, defendendo que só o desejo elementar de prazer e a aversão
elementar à dor são inatas, e que todo o resto da
“natureza” humana foi adquirido pela associação ou o hábito. De um lado, o
individualismo teórico de Locke – em virtude do qual ele concebe o espírito
como um feixe de idéias discretas e a sociedade como uma reunião de
indivíduos independentes – o leva a compreender a maleabilidade humana como
a simples capacidade em adquirir diversas idéias ou inclinações
particulares, resultantes das experiências que o homem pode fazer em
determinada ocasião. Para Rousseau, entretanto, o espírito e o caráter do
homem são constituídos sob certas formas dominantes, a partir de estruturas
de ordem conceitual e pessoal que tendem a ser trabalhadas pela forma
dominante do meio social. Nesta perspectiva, Rousseau interpreta a
maleabilidade humana de modo bem mais radical que Locke, pois ele pensa que
as diversas estruturas econômicas, sociais e políticas produzem seres
humanos com estilos de vida e modos de consciência fundamentalmente
diversos. Eis aí, diferentemente de Locke, a conclusão revolucionária do
genebrino: o gênero humano dos primórdios da civilização não é o gênero
humano da atualidade. Em suma, Rousseau é um dos primeiro a descobrir “a
História”. E, por isso, ele vem a ser igualmente o primeiro a tornar
possível e aproveitável a hipótese segundo a qual a espécie humana tal como
nós a conhecemos no presente, com sua maldade manifesta e universal, conheceu uma transformação total em relação a sua forma
de origem.
Para mostrar,
porém, que está hipótese não é apenas possível, mas verdadeira, Rousseau
deve primeiro justificar seu pressentimento incerto de que o gênero humano
era originalmente bom; ele deve antes de tudo revelar qual acontecimento
real de nossa história pode ter nesse ponto transformado e corrompido esta
natureza original. Para estabelecer estes dois pontos, Rousseau se contenta
em desenvolver de modo sistemático a concepção da natureza humana adotada
por Hobbes e, sob uma forma ou outra, pela maior parte dos pensadores que
lhe sucederam. Contrariamente ao que havia suposto Aristóteles, segundo um
raciocínio teleológico, o homem não é um animal político e civilizado. Por
natureza, os homens não vivem em sociedades complexas, políticas, mas numa
espécie de “estado de natureza” primitivo e pré-político.
A bondade original do homem torna-se
evidente, diz Rousseau, desde que subtraímos à sua natureza atual todas as características
que só poderiam ser adquiridas no seio da sociedade organizada. Segundo o
argumento bem conhecido do Segundo Discurso, os homens naturais, vivendo
dispersos nos bosques, ou se reunindo na seqüência em tribos com laços
frágeis, não puderam desenvolver consideravelmente sua razão, sua previsão
e sua imaginação; eles, também, não puderam formar muitos desejos além dos
desejos naturais do sono, da nutrição e do sexo – e seguramente nenhum
daqueles que tornaram os homens, no presente, tão maus. E se consideramos a
abundância natural para a nutrição que lhe fornecia a natureza, a
abundância natural ao sexo que lhe forneciam as fêmeas (que não tinham
ciclo de ovulação ou períodos de indisposição), do mesmo modo, a ausência
de vaidade ou do amor-próprio (que requer mais laços sociais e inteligência
que esses homens naturais não tinham), e, enfim, a presença de sentimentos
rudimentares de piedade dissuadindo-os de fazer o mal gratuitamente, somos
levados a concluir que o homem deve ter existido essencialmente em paz
consigo mesmo e com os outros de sua espécie. Rousseau não nega,
certamente, que no estado de natureza um homem (e principalmente um
selvagem que pertença a uma tribo) possa ocasionalmente ter feito mal a
outra pessoa, o que ele afirma é a impossibilidade do selvagem tomar gosto
e criar hábito pela ação má, nas suas próprias palavras: “É bem provável
que um selvagem faça uma má ação, mas não é possível que adquira o hábito
de agir mal, pois isso não lhe serviria para nada (…). Lastimo dizer: o
homem de bem é aquele que não tem necessidade de enganar a ninguém, e o
selvagem é esse homem”. (2) Em razão do pouco desenvolvimento
das suas faculdades, os homens se limitam naturalmente a si mesmos, e, por
isso, são naturalmente bons.
Ora, se a espécie
é por esta razão originalmente boa (razão ligeiramente diferente daquela
invocada pelo argumento introspectivo e pelo argumento psicológico), que
acontecimento histórico pode ter transformado a sua natureza? A resposta é
evidente. Num certo ponto recuado de sua história – aproximadamente dez mil
anos, como nós sabemos no presente -, os homens abandonaram seu meio
natural para formar grandes sociedades organizadas dispondo da agricultura,
da divisão do trabalho, da propriedade privada e do governo coercitivo.
Este acontecimento, que transforma o mundo do homem de modo radical e
artificial, deve seguramente ter alterado sua natureza maleável de diversas
maneiras. Assim sendo, é legítimo invocar este acontecimento histórico
considerável, cuja realidade não pode ser posta em dúvida, para explicar a
maldade que esta criatura originalmente boa manifesta na atualidade.
* * *
Este argumento, bem entendido,
permanece altamente hipotético, mas se acha contudo
confirmado, insiste Rousseau, pela observação empírica – sob a condição de
que esta observação seja realizada corretamente, o que não foi o caso no
passado. De fato, um dos “projetos” menores de Rousseau foi de reformar o
estudo empírico do homem (por isso, muitos hoje em dia o consideram o
fundador da antropologia). A maioria dos pensadores clássicos e cristãos,
induzidos ao erro por seus pressupostos teleológicos, praticava o erro de
buscar o “natural” na civilidade e no desenvolvimento antes que no
primitivo e no infantil. Mesmo os pensadores que rejeitaram explicitamente
a teleologia permaneceram, sob uma forma ou outra, cativos deste erro. Os
filósofos, realmente, vivem nas cidades e são, de
todos os homens, os que aceitam mais facilmente a nobreza da razão; por
isso, eles foram sempre inclinados – conscientemente ou não – a identificar
o homem urbano e racional com o homem enquanto tal. A filosofia, também,
deve fazer um esforço consciente sobre si mesma para se livrar deste
preconceito profissional: ela deve aprender a ir ao campo (como fez
Rousseau), a se misturar aos humildes agricultores e camponeses, para se
entregar ao “estudo dos diversos povos em suas províncias recuadas” (3), viajar para estes lugares distantes onde os homens permaneceram
no estado selvagem, e preferir a companhia das crianças àquela dos adultos.
E mesmo quando os
filósofos observam os primitivos selvagens, eles devem constantemente lutar
contra uma tendência reinante, a saber: considerá-los sob um ponto de vista
teleológico, como simples modos deficientes dos adultos civilizados. É em
virtude desta tendência, por exemplo, que “jamais conhecemos a criança”,
embora estejamos cercados por elas. “Os mais sábios, afirma Rousseau,
prendem-se ao que aos homens importa saber, sem
considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram
sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem”. E
acrescenta: “eis o estudo a que mais me apliquei, para que, mesmo que meu
método fosse quimérico e falso, sempre se pudessem aproveitar minhas
observações”. (4)
Em outras palavras, Rousseau tenta revolucionar o estudo empírico da
natureza humana mostrando que ela requer certas faculdades e certos
esforços até então insuspeitos: vontade do pensador em abandonar certos
pressupostos próprios para fundar sua dignidade de pensador, resistência
escrupulosa a toda forma de pensamento teleológico, vivacidade da
imaginação empírica e do sentido histórico.
Aplicando este
novo empirismo, Rousseau percebe que “todas as nações, quando assim
observadas, parecem valer bem mais; quanto mais se aproximam da natureza,
mais domina a bondade em seus caracteres” (5) Inversamente, ele
observa, “quanto mais se reúnem, mais se corrompem. As doenças do corpo,
assim como os vícios da alma, são o efeito
infalível dessa associação muito numerosa. De todos os animais, o homem é
aquele que menos pode viver em rebanho” (6) “As cidades são o abismo da espécie
humana”. Nas cidades como na aristocracia, ouvimos sem cessar os homens
lamentarem de suas vidas e atribuírem as suas infelicidades à natureza. E,
portanto, “ouso, de fato afirmar que não há, talvez, no alto Valais um
único montanhês descontente com sua vida quase automática, e que não
aceitasse de bom grado, em troca até mesmo do Paraíso, a proposta de
renascer sem cessar para assim vegetar perpetuamente. Essas diferenças
fazem-me crer que é muitas vezes o abuso que fazemos da vida que a torna
penosa” (7) Desse modo, a observação e o raciocínio
sugerem que a sociedade artificial deformou os homens, que, em seu meio
natural e pré-civilizado, eram bons e felizes.
Se o argumento de
Rousseau, todavia, permanecesse aí, ele seria incerto e hipotético. Pois
ele se contenta em afirmar que uma “coisa qualquer” indeterminada no curso
da transição capital para a vida social e civilizada deve ter deformado os
homens e causado sua atual maldade. E sob esta forma, ele se expõe à uma objeção evidente e comum: este “algo” (“quelque chose”) que perverteu
o homem não seria a própria sociedade – que, apesar de tudo, é apenas o
produto dos indivíduos que a compõem -, mas a maldade latente do próprio
homem. Permitindo aos homens o desenvolvimento, a sociedade revela as
tendências viciosas que neles permanecem adormecidas. Não é, também, a
sociedade enquanto tal que é corruptora, mas a previsão, que ensina ao
homem o medo da morte, a imaginação, que lhe sugere mil novos desejos, e a
razão, que excita seu amor-próprio. Desde então, é possível pensar que o
bruto não desenvolvido e sub-humano descrito por
Rousseau é bom, e mesmo, que ele é o verdadeiro homem natural; isto, porém,
só adquire uma importância relativa na argumentação rousseauniana. O fato
crucial permanece, um certo grau de maldade é
inseparável do desenvolvimento das faculdades superiores que constituem a
verdadeira humanidade do homem.
Mas esta objeção
tão importante para a maior parte das discussões que trataram do princípio
da bondade natural, sonega o essencial. Ela permanece no argumento
histórico e não considera a última etapa, a mais importante, da
demonstração de Rousseau: o quarto argumento, o argumento “social”. Guiado
pelas conjecturas históricas, Rousseau passa ao presente e a uma forma
radicalmente diferente de análise – à ciência política no sentido amplo, a
um exame da base e da estrutura fundamental da sociedade enquanto tal. E
esta análise autônoma, sociopolítica, lhe permite descobrir algo que não
foi percebido antes: “uma secreta oposição entre a constituição do homem e
a de nossas sociedades”. Esta descoberta foi realmente o acontecimento
crucial para Rousseau, na medida em que ela lhe revela que o efeito
corruptor da sociedade não resulta do desenvolvimento de nossas faculdades
superiores e de nossa maldade latente, como a objeção evocada mais acima
dava a entender, mas da própria sociedade, de uma “contradição do sistema
social” até então desconhecida.
Contrariamente aos
que sugerem as apresentações habituais do princípio de Rousseau, não são
suas novas conjecturas históricas ou antropológicas sobre o estado
primitivo de natureza que constituem a verdadeira essência de seu argumento
em favor da bondade natural do homem; foi sua nova teoria da sociedade.
Rousseau deixa clara a sua intenção na “história de [suas] idéias” esboçada
em algumas páginas da Carta a Beaumont.
Tendo tomado consciência da notável maldade dos homens e buscando a sua
causa, Rousseau escreve: “Eu a encontrava em nossa ordem social que,
em todos os pontos contraria a natureza que nada destrói, tiraniza-a
sem cessar e lhe faz sem cessar reclamar seus direitos. Segui esta contradição
em suas conseqüências e vi que ela explicava sozinha todos os vícios
dos homens e todos os males da sociedade. De onde eu concluí que não
era necessário supor o homem malvado por sua natureza, desde que podíamos
marcar a origem e o progresso da sua maldade”. (8) (J.-J. Rousseau. Lettre à Beaumont. In: Œuvres
Complètes. Tomo IV. Op. cit., pp. 966-967).
A descoberta da
contradição estrutural da sociedade, portanto, conduz Rousseau a adotar o
princípio da bondade natural do homem, isto é, permite pôr em evidência e
retratar como um fenômeno histórico a origem social da maldade existente no
homem moderno.
Notas
(2) J.-J. Rousseau. Narcisse ou l’amant de lui-même. In: Œuvres
Complètes. Tomo II. Paris: Pléiade,
Gallimard, 1964, p. 970, nota.
(3) J.-J. Rousseau. Émile ou de l’éducation. In: Œuvres Complètes. Tomo IV. Op. cit., p. 852.
(4) Id., ibid., pp. 241-242.
(5) Id., ibid., p. 852.
(6) Id., ibid., pp. 276-277.
(7) J.-J. Rousseau. Lettre à Voltaire du 18 août 1756. In: Œuvres
Complètes. Tomo IV. Op. cit.,
p. 1063.
(8) J.-J.
Rousseau. Lettre à Beaumont. In: Œuvres Complètes. Tomo IV. Op. cit., pp.
966-967.
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